Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 6 de novembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME
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   – Girólamo, filha,
prosseguiu, com inesquecível expressão , é coração atormentado, dirigido por um espírito gravemente enfermo.
Louco nas suas ambições desvairadas, prepara a taça espumante de fel

para fazer-nos sorvê-la, enveredando por longo e estreito corredor que o conduzirá demoradamente, séculos a fio, pela senda de terríveis flagícios, que ele mesmo elabora desde agora, para purificar-se depois, dolorosamente.

   Perdoemo-lo por antecipação, evitando sintonizar com funestas ideias que o infelicitam e que logo mais explodirão como maremoto furioso, tentando levar-nos de roldão… Antiga vítima nossa, guarda cicuta no espírito invigilante e, qual animal acusado no reduto em que se refugia, sem sol, prepara-se para desferir a agressão do desforço. Serás a sua primeira vítima… Reveste-te, porém, de coragem para o supremo holocausto. Os filhinhos amados estão também no seu plano… Pagareis, todos, assim, velho débito ao sofredor que se torna algoz. É claro que as Leis Superiores da Vida dispõem de meios eficazes para a justa cobrança, sem a necessidade de novos verdugos… Enfermidade, luto e dor, desastre e acidente, amor e bondade., renúncia e abnegação, sacrifício e devotamento são também instrumentos superiores de que se utilizam os Mensageiros Divinos no acerto de contas das diversas consciências em falta com a Consciência Cósmica… No entanto, precípites e desequilibrados, não compreendem os homens que somente as virtudes evangélicas, quando praticadas, poderão redimir e salvar a criatura humana. Estaremos contigo, com todos…

   “Bom ânimo, filha! Jesus na manjedoura é um poema de amor falando às belezas da vida; Jesus na cruz é um poema de dor falando sobre as grandezas da Eternidade.

   “Não recusemos o cálice. Roguemos forças para sorvê-lo, se necessário, até a última gota.

   “Jesus, o Amigo dos sofredores, e a Senhora das Dores nos ajudarão.

   “Coragem, filha, coragem! Confia e ama!...”

   A visão celeste se desfez e Lúcia subitamente despertou. Banhada em suores, fitou os vitrais da janela ogival, parecendo ver ainda, em névoa clara e flutuante, o amado rosto, repetindo: “Ama, ama…”

   Levou a mão à cabeça e, assistida pela companheira devota, enxugou o pranto e o suor, recobrando paulatinamente a lucidez. Desejou narrar o sonho ditoso que a arrebatara, mas preferiu silenciar.

   Da parte inferior da casa, escutou os lamentos e as vozes desesperadas das carpideiras, que se deixaram conduzir por histeria profissional. Compreendeu que terminara o ofício fúnebre e que logo mais ocorreria o sepultamento na capela, em cujo solo jaziam os despojos da Senhora duquesa.

   Amparada pela serva amiga e companheira, desceu as escadas do hall, algo enfraquecida pelas últimas experiências de que se vira objecto.

   O esquife estava sendo erguido por Girólamo e os diversos membros da confraria da Madonna Assunta, de Siena. Repicaram dolentes os sinos; a gritaria infrene estrugia no ar.

   Recobrou as forças e avançou.

   À porta, ajoelhou-se para acompanhar com afecto os despojos humanos do seu benfeitor e se surpreendeu ante o olhar feroz do sobrinho do Senhor di Bicci di M., que a varara implacável. Pálido e de olheiras fundas, era a expressão da alucinação recalcada. Imediatamente, Lúcia recordou-se da visão dominadora que a visitara e baixou a cabeça.

O Bispo, momentaneamente emocionado, começou a litania do “De profundis”:
“Muitas vezes me angustiaram desde a minha mocidade,
“Diga, agora, Israel:
“Muitas vezes me angustiarm desde a minha mocidade,
“Contudo não prevaleceram contra mim.
“Sobre as minhas costas lavraram os aradores;
“Prolongaram os seus sulcos.
“Jeová é justo:
“Ele corta as cordas dos perversos.
“Sejam envergonhados e repelidos para trás…”
“… A bênção de Jeová seja sobre vós;
“Nós vos abençoamos em nome de Jeová.” (*)

   O cortejo atravessou o átrio, vencendo a distância entre o palácio e a capela gótica, de portas abertas de par em par.

   No mausuléu de mármore de Carrera, trabalhando, para guardar os despojos da família, a lápide paralela à da Senhora duquesa estava aberta e pedreiros se encontravam a postos.

   Depois da aspersão da água benta e das palavras finais, o ataúde foi colocado e a laje cimentada, sendo posteriormente aposto o selo com as armas da casa.

   Estavam concluídas as homenagens àquele que fora o duque Giovanni di Bicci di M.

   Mergulhada em sombras, a torre alta do palácio, símbolo do poder dos senhores, parecia uma sentinela triste e solitária.

   As entidades religiosas recolheram os estandartes, foram retirados os paramentos, começou-se a desmontar o catafalco e os primeiros convidados deram início à partida. Lentamente, o silêncio se foi abatendo sobre o solar, enquanto a chuva, miúda e impertinente, acompanhada de trovões e relâmpagos ao longe, oferecia o lúgubre espectáculo da Natureza em convulsão. O dia sombrio passou, vagaroso, e, quando a noite desceu fragorosa sobre o burgo, todos, cansados e opressos, buscaram o repouso mais cedo.

   As crianças participaram das exéquias do genitor sem a perfeita compreensão do que ocorrera. Ficaram retidas, quanto possível, na parte superior da casa, evitando-se, por orientação de Lúcia, tudo quanto as pudesse perturbar. Carinhosa, a serva recolhera os pequerruchos logo após o falecimento do amo e dissera, em linguagem compatível à idade deles, o que ocorrera, prometendo-lhes a sua dedicação integral até à morte. Afeiçoadas à ama zelosa, com a mente povoada de sonhos e a imaginação sôfrega, os filhinhos do Senhor duque experimentaram as lágrimas da tristeza momentânea e foram recolhidos ao leito pelo cuidado da moça diligente. O dia longo e triste, passaram-no, ora fitando das escadas altas o que ocorria na parte inferior, ora assistidas por dedicada serva, designada especialmente para tal fim.

   Com os crepes pesados da noite e a boca silenciosa da sombra, o palácio somente escutava a tempestade que não amainava, de todo, lá fora.

   No amplo quarto de Girólamo, encontraram-se o moço agitado e Assunta, ardente de paixão pelo enamorado, cujas migalhas de afecto e ternura disputava leonicamente, de alma e encrespada pela febre tormentosa da ânsia de tudo liquidar, o jovem despediu a companheira e rogou-lhe soledade para pensar. No dia imediato, necessitaria definir situações para o tentame contava, desde já, com a sua valiosa quão indisfeita ordem, de modo a que se pudesse comprovar a sua inocência. Nada poderia falhar. O repouso, portanto, era-lhe ala dos servidores e procurou o repouso.

   Girólamo, todavia, não conseguiu conciliar o sono. As mãos frias e trémulas atestavam-lhe a tensão emocioal. O suor lhe escorria em bagas. Embora recolhido no leito, quase delirando sob e expectativa de como concretizar os planos que lhe ardiam nalma, experimentava a pressão da própria insânia. 

(*) Salmo 129, também chamado da Penitência; versículos 1 a 5 e 8.

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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 2 de 4) texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, Edgar Maxence)

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