Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (X)

   As duas primeiras revelações só poderiam ser o resultado de um ensino directo; deveriam impor-se à fé pela autoridade da palavra do mestre, não estando os homens suficientemente evoluídos para participarem na sua elaboração.

  Notemos no entanto entre elas uma variante muito sensível que diz respeito à evolução dos costumes e das ideias, apesar de terem sido feitas no mesmo povo e no mesmo meio, mas com cerca de dezoito séculos de intervalo. A doutrina de Moisés é absoluta, despótica; não admite discussão e impõe-se a todo o povo pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente aceite e só se impõe pela persuasão; foi controversa mesmo em vida do seu fundador, que não desdenhou discutir com os seus adversários.

  A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e de maturidade intelectual, em que a inteligência desenvolvida não se pode resumir a um papel passivo, em que o homem não aceita nada às cegas e quer ver para onde é conduzido, saber o porquê e o como de cada coisa, devia ser simultaneamente produto de um ensinamento e fruto do trabalho, da pesquisa e da livre observação. Os Espíritos só ensinam o estritamente necessário para se entrar no caminho da verdade, mas abstêm-se de revelar o que o homem pode encontrar por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, de controlar e submeter o todo ao cadinho da razão, deixando-o até por vezes adquirir experiência à sua custa. Fornecem-lhe o princípio, os materiais: compete-lhe a ele retirar daí benefícios e pô-los em acção (n.º 15).

  Tendo os elementos da revelação espírita sido dados em simultâneo, numa quantidade de pontos, a homens de todas as condições sociais e com diversos graus de instrução, é bem evidente que as observações não podiam ser feitas em todo o lado com os mesmos resultados; que as consequências a retirar daí, a dedução das leis que regem esta ordem de fenómenos, numa palavra, as conclusões a consolidar as ideias, só podiam sair do conjunto e da correlação dos factos. Ora, cada centro isolado, circunscrito a um círculo restrito, não vendo frequentemente mais do que uma só ordem de factos por vezes aparentemente contraditórios, não tendo geralmente a ver com uma mesma ordem particular de Espíritos e, além disso, entravados pelas experiências locais e pelo sectarismo, encontravam-se na impossibilidade material de abarcar o conjunto e, por isso mesmo, impotente para ligar as observações isoladas a um princípio comum. Apreciando cada um os factos sob o ponto de vista das suas convicções anteriores ou da opinião particular dos Espíritos que se manifestam, em breve teria havido tantas teorias e teses como centros, das quais nenhuma teria podido ser completada por falta de elementos de comparação e de controlo. Numa palavra, cada um deles se teria imobilizado na sua revelação parcial julgando possuir toda a verdade, por não saberem que em cem outros sítios se obtinha mais ou melhor.

  Por outro lado, é de notar que em sítio nenhum o ensino espírita foi dado de forma completa; este atinge um tão grande número de observações, em temas tão diversos que exigem quer conhecimentos quer aptidões mediúnicas especiais, que teria sido impossível reunir num mesmo ponto todas as condições necessárias. Devendo o ensino ser colectivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho disseminando os temas de estudo e de observação, como, em certas fábricas, a confecção de cada parte de um mesmo objecto é repartida por diversos operários.

  A revelação foi-se assim fazendo parcialmente, em diversos lugares e por uma quantidade de intermediários, e é desta maneira que ainda prossegue neste momento, pois nem tudo foi ainda revelado. Cada centro encontra, nos outros centros, o complemento do que obtém e é o conjunto, a coordenação de todos os ensinamentos parciais que constituem a doutrina espírita.

  Era então necessário agrupar os factos esparsos para verificar a sua correlação, reunir documentos diversos, as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos e sobre todos os temas, para os comparar, os analisar, estudar-lhes as analogias e as diferenças. Sendo as comunicações feitas por Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos, era necessário apreciar o grau de confiança que a razão permitia conceder-lhes, distinguir as ideias sistemáticas individuais e isoladas das que tinham a sanção do ensino geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas; eliminar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e da lógica sã, utilizar os erros de forma igualitária, os ensinamentos fornecidos pelos Espíritos, mesmo os de mais baixo nível, para conhecimento do mundo invisível, para formar com isso um todo homogéneo. Era preciso, numa palavra, um centro de elaboração independente de qualquer ideia preconcebida, de qualquer preconceito de seita, resolvido a aceitar a verdade tornada evidente, fosse ela ou não contrária às suas opiniões pessoais. Este centro formou-se por si, por força das coisas e sem intuito premeditado (i).

  (i) O Livro dos Espíritos, a primeira obra que fez entrar o Espiritismo na via filosófica, pela dedução das consequências morais dos factos, que abordou todas as partes da doutrina, tocando nas questões mais importantes que levanta, foi, desde a sua aparição, o ponto de encontro na direcção do qual, espontaneamente, convergiam os trabalhos individuais. É notório que a publicação deste livro data da era do Espiritismo filosófico, que permanecera até então no domínio das experiências de curiosidade. Se este livro conquistou as simpatias da maioria, foi por ser a expressão dos sentimentos dessa mesma maioria e porque correspondia às suas aspirações; foi também porque cada um podia encontrar ali a confirmação e uma explicação racional para o que obtinha em particular. Se tivesse estado em desacordo com os ensinamentos gerais dos Espíritos, não teria tido nenhum crédito e teria rapidamente caído no esquecimento. Ora, a quem se uniram? Não foi ao homem, que não é nada por si mesmo, cavilha obreira que morre e desaparece, mas sim à ideia, que não morre quando emana de uma fonte superior ao homem. Esta concentração espontânea das forças dispersas deu lugar a uma correspondência imensa, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, onde se reflectem simultaneamente os trabalhos parciais, os sentimentos múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações e as fraquezas; arquivos preciosos para a posteridade, onde será possível julgar os homens e as coisas com base em peças autênticas. Na presença destes testemunhos irrecusáveis, que acontecerá depois a todas as falsas alegações, às difamações da inveja e do ciúme? (N. do A.)

  Deste estado de coisas resultou uma dupla corrente de ideias: umas, indo das extremidades para o centro; outras, regressando do centro para a circunferência. Foi assim que a doutrina caminhou prontamente para a unidade, apesar da diversidade de fontes de onde emanou; as teses diferentes foram caindo a pouco e pouco, devido ao seu isolamento, perante o ascendente da opinião da maioria por não encontrarem aí ecos simpatizantes. De imediato se estabeleceu uma comunhão de ideias entre os diferentes centros parciais; falando a mesma língua espiritual, entendem-se e simpatizam de uma ponta à outra do mundo.

  Os Espíritos sentiram-se fortes, lutaram com mais coragem, caminharam com passo mais seguro, quando deixaram de se sentir isolados, quando sentiram um ponto de apoio, um elo que os ligava à grande família; os fenómenos de que eram testemunhas nunca mais lhes pareceram estranhos, anormais, contraditórios, quando conseguiram liga-los a leis gerais de harmonia, abarcar com um olhar o edifício e ver em todo este conjunto um objectivo grande e humanitário (ii).

   (ii) Um testemunho significativo, tão notável como comovente, desta comunhão de ideias que se estabelece entre os Espíritos pela conformidade das convicções, são os pedidos de orações que nos chegam das regiões mais distantes, desde o Peru até aos extremos da Ásia, da parte de pessoas de religiões e de nacionalidades diversas que nunca vimos. Não será este o prelúdio de uma grande unificação em preparação? A prova das raízes sérias que o Espiritismo cria em todo o lado? É notável que, de todos os grupos que se formaram com a intenção premeditada de provocar uma cisão proclamando princípios divergentes, assim como os que, por razões de amor-próprio ou outras, não tendo o ar de estarem sujeitos à lei comum, se julgaram suficientemente fortes para caminharem sozinhos, suficientemente iluminados para não precisarem de conselhos, nenhum conseguiu constituir uma ideia preponderante e vital; todos se extinguiram ou vegetaram na sombra. Como poderia ser de outro modo, já que, para se evidenciarem, em vez de se esforçarem por dar um maior número de satisfações, rejeitaram dos princípios da doutrina precisamente o que lhe confere o maior atractivo, o que nela existe de mais consolador, de mais encorajador e de mais racional? Se tivessem compreendido o poder dos elementos morais que constituíram a unidade, não se teriam embalado numa ilusão quimérica; mas, tomando o seu pequeno círculo pelo Universo, só viram nos aderentes uma súcia que poderia facilmente ser derrubada por uma contra-súcia. Era enganar-se estranhamente sobre as características essenciais da doutrina e esse erro só poderia trazer decepções; em vez de quebrar a unidade, quebraram o único elo que lhes poderia dar força e vida. (Ver Revista Espírita, Abril 1866, pp. 106 e 111: O Espiritismo Sem os Espíritos; O Espiritismo Independente). (N. do A.)

   Mas como saber se um princípio está a ser ensinado em todo o lado ou se não passa do resultado de uma opinião individual? Não estando os grupos isolados em condições de saber o que se diz noutros sítios, era necessário que um centro reunisse todas as instruções para fazer uma espécie de despojamento das vozes e levar ao conhecimento de todos a opinião da maioria (iii).

  (iii) É este o objectivo das nossas publicações, que podem ser consideradas o resultado desse despojamento. Todas as opiniões são aí discutidas, mas as questões só são formuladas em princípios depois de terem sofrido a consagração de todos os controlos, porque só eles lhes podem conferir a força de lei e permitir que se façam afirmações. É por isso que não preconizamos com ligeireza nenhuma teoria e é nisso que a doutrina, procedendo do ensino geral, não é de modo nenhum o produto de uma tese preconcebida; é também o que lhe dá a força e garante o futuro. (N. do A.)

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 49 a 53 (X), 12º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

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