Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*)
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographiques) (X)

Os desertos do espaço 🌈

  Um deserto imenso, sem fronteiras, estende-se para lá do aglomerado de estrelas de que acabámos de falar e envolve-o. Ermos se sucedem a ermos e as planícies incomensuráveis do vazio estendem-se ao longe. Encontrando-se os amontoados de matéria cósmica isolados no espaço como ilhas flutuantes de um imenso arquipélago, se quisermos apreciar de qualquer maneira a ideia da enorme distância que separa a pilha de estrelas de que fazemos parte das aglomerações mais próximas, é preciso sabermos que estas ilhas estelares estão disseminadas e são raras no vasto oceano dos céus e que a extensão que as separa umas das outras é incomparavelmente maior do que aquela que lhes mede as dimensões respectivas.

  Ora, lembramo-nos que a nebulosa estelar mede, em números redondos, mil vezes a distância das estrelas mais próximas tomada como unidade, quer dizer uns cem mil triliões de léguas. A distância que se estende entre elas, sendo muito mais vasta, não poderia ser expressa em números acessíveis ao entendimento do nosso espírito; só a imaginação nas suas mais elevadas concepções é capaz de ultrapassar esta imensidão prodigiosa, os seus ermos mudos e privados de qualquer aparência de vida e considerar de qualquer maneira a ideia desta infinidade relativa.

  No entanto, este deserto celeste que envolve o nosso Universo sideral e que parece estender-se como os confins longínquos do nosso mundo astral, é abarcado pela vista e pelo poder infinito do Altíssimo que, para lá destes céus dos nossos céus, desenvolveu a trama da sua Criação ilimitada.

  Para lá destas vastas solidões, com efeito, os mundos resplandecem na sua magnificência assim como nas regiões acessíveis às investigações humanas; para além destes desertos, vogam no límpido éter esplêndidos oásis e renovam constantemente as cenas admiráveis da existência e da vida. Ali, desenvolvem-se os longínquos agregados de substância cósmica que o olho profundo do telescópio entrevê através das regiões transparentes do nosso céu, essas nebulosas a que chamais irresolúveis e que vos aparecem como leves nuvens de poeira branca perdidas num ponto desconhecido do espaço etéreo. Ali, revelam-se e desenvolvem-se mundos novos cujas condições variadas e estranhas às que são inerentes ao vosso globo lhes dão uma vida que as vossas concepções não conseguem imaginar nem os vossos estudos constatar. É aí que resplandece em toda a sua plenitude o poder criador; para quem venha das regiões ocupadas pelo vosso sistema, ali estão em acção outras leis cujas forças regem as manifestações da vida e os caminhos novos que trilhamos nesses países estranhos abrem-nos perspectivas desconhecidas (**).

/…

(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)

(**) Dá-se em astronomia o nome de nebulosas irresolúveis àquelas a que não foi ainda possível distinguir as estrelas que as compõem. Tinham sido consideradas primeiro como montes de matéria cósmica em vias de condensação para formar mundos, mas hoje pensa-se geralmente que esta aparência se deve ao afastamento e que com instrumentos suficientemente fortes todas seriam resolúveis.

Uma comparação familiar pode dar uma ideia, apesar de muito imperfeita, das nebulosas resolúveis: são os grupos de faíscas projectadas pelo fogo-de-artifício no momento da sua explosão. Cada uma das suas faíscas representará uma estrela e o conjunto será a nebulosa ou o grupo de estrelas reunidas num ponto do espaço e submetidas a uma lei comum de atracção e movimento. Vistas a uma certa distância, estas faíscas mal se distinguem e o seu grupo tem o aspecto de uma pequena nuvem de fumo. Esta comparação não seria exacta caso se tratasse de matéria cósmica condensada.

A nossa Via Láctea é uma dessas nebulosas; conta com cerca de trinta milhões de estrelas ou sóis que ocupam nada menos de algumas centenas de triliões de léguas de extensão e no entanto não é a maior. Suponhamos somente uma média de vinte planetas habitados circulando à volta de cada sol, o que faria cerca de seiscentos milhões de mundos só para o nosso grupo.

Se nos pudéssemos transportar da nossa nebulosa para uma outra, estaríamos ali como no meio da nossa Via Láctea, mas com um céu estrelado com um aspecto totalmente diferente; e esta apesar das suas dimensões colossais em relação a nós, aparecer-nos-ia, ao longe, como um pequeno floco lenticular perdido no infinito. Mas antes de atingirmos a nova nebulosa, seríamos como o viajante que sai de uma cidade e percorre um vasto país desabitado antes de chegar a outra cidade; teríamos atravessado espaços incomensuráveis desprovidos de mundos e de estrelas, aquilo a que Galileu chama os desertos do espaço. À medida que fôssemos avançando, veríamos a nossa nebulosa a fugir atrás de nós, diminuindo de extensão à nossa vista ao mesmo tempo que à nossa frente, se apresentaria aquela para a qual nos dirigíamos, cada vez mais distinta, semelhante à massa de fagulhas do fogo-de-artifício. Transportando-nos em pensamento para as regiões do espaço, para além do arquipélago da nossa nebulosa, veremos à nossa volta milhões de arquipélagos semelhantes e de formas diversas, contendo cada um milhões de sóis e centenas de mundos habitados.

Tudo o que nos pode identificar com a imensidão do infinito e com a estrutura do Universo é útil para o alargamento das ideias tão reduzidas pelas crenças vulgares. Deus engrandece aos nossos olhos à medida que vamos compreendendo melhor a grandeza das suas obras e a nossa pequenez. Nós estamos longe, como se vê, dessa crença implantada pela Génese de Moisés, que faz da nossa pequena Terra imperceptível a principal criação de Deus e dos seus habitantes o objecto único da sua solicitude. Compreendemos a vaidade dos homens que julgam que tudo no Universo foi feito para eles e dos que se atrevem a discutir a existência do Ente supremo. Dentro de alguns séculos, espantar-se-ão por uma religião, feita para glorificar Deus o ter rebaixado a tão mesquinhas proporções e que tenha rejeitado, por ser concepção do Espírito do mal, as descobertas que só podiam aumentar a nossa admiração pela sua omnipotência, iniciando-nos nos mistérios grandiosos da Criação; ainda se admirarão mais quando souberem que foram rejeitados porque deviam emancipar o espírito dos homens e retirar a preponderância aos que se diziam representantes de Deus na Terra. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – Os desertos do espaço (de 45 a 47), 32º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

terça-feira, 28 de novembro de 2023

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...)

Desprendimento e exteriorização (Projecções telepáticas)

(por Léon Denis)

Chegamos agora a uma ordem de manifestações que se produzem à distância sem o concurso dos órgãos, tanto em vigília quanto no sono. Esses fenómenos, conhecidos pelo termo um tanto genérico e vago de telepatia, não são, dissemos, actos doentios e mórbidos da personalidade, como certos observadores o têm acreditado, mas, pelo contrário, casos parciais, rebentos isolados da vida superior no seio da humanidade. Deve ver-se neles o primeiro aparecimento dos poderes futuros com que o homem terrestre será dotado. O exame desses factos levar-nos-á a reconhecer que o “eu” exteriorizado durante a vida e o “eu” que sobrevive após a morte são idênticos e representam dois aspectos sucessivos da existência de um único e mesmo ser.

A telepatia, ou projecção à distância do pensamento e mesmo da imagem do manifestante, faz-nos subir mais um degrau na escala da vida psíquica. Aqui, encontramo-nos na presença de um acto poderoso da vontade. A alma comunica-se a si própria, comunicando a sua vibração, o que demonstra à evidência que a alma não é um composto, uma resultante nem um agregado de forças, mas sim, pelo contrário, o centro da vida e da vontade, centro dinâmico que governa o organismo e lhe dirige as funções. As manifestações telepáticas não têm limites. O poder e a independência da alma nelas se revelam soberanamente, porque o corpo nenhum papel representa no fenómeno. É mais um obstáculo do que um auxílio. Produzem-se, por esse motivo, ainda com maior intensidade, depois da morte, como veremos a seu tempo.

“A auto-projecção, diz Myers(ii) é o único acto definido que o homem parece capaz de executar, tanto antes como depois da morte corporal.”

A comunicação telepática à distância foi estabelecida por experiências que se tornaram clássicas. Podemos citar as do Sr. Pierre Janet, hoje professor da Sorbonne e, do Dr. Gilbert, do Havre, no seu sujet Léonie que eles, de noite, a um quilómetro de distância, fazem vir ao seu encontro por meio de chamamentos sugestivos. (iii)

Desde então as experiências foram-se multiplicando com êxito constante. Apontemos apenas vários casos de transmissão de pensamento a grande distância.

Os Annales des Sciences Psychiques, Paris, 1891 (i), pág. 26, relatam uma experiência de transmissão mental de imagem, feita a 171 quilómetros de distância, de Paris a Ribemont (Aisne). Os operadores eram os Senhores Debaux e Léon Hennique.

Daily Express, de 17 de julho de 1903, refere notáveis ensaios de troca de pensamentos, que se efectuaram nos escritórios da Review of Reviews, em Norfolk Street, Strand, Londres. Essas experiências eram fiscalizadas por uma comissão de seis membros, da qual faziam parte o Dr. Wallace, de Harley Street, 39 e, o eminente escritor W. Stead. As mensagens telepáticas foram enviadas pelo Sr. Richardson, de Londres e, recebidas pelo Sr. Franck, de Nottingham, a uma distância de 110 milhas inglesas.

Finalmente, o Banner of Light, de Boston, no seu número de 12 de agosto de 1905, informa-nos que uma americana, a Sra. Burton Johnson, de Des Moines, conquistou recentemente o recorde nesse género de transmissão. Sentada no seu quarto do Hotel Vitória, recebeu quatro vezes mensagens telepáticas de Palo Alto (Califórnia), que fica à distância de três mil milhas. Trata-se, diz o jornal, de factos devidamente comprovados, rigorosamente fiscalizados e que não deixam subsistir quaisquer dúvidas.

A transmissão dos pensamentos e das imagens opera-se, dissemos, indistintamente, tanto durante o sono, como no estado de vigília. Já expusemos vários casos; serão encontrados outros, em grande número, nas obras especiais. Mencionemos, por exemplo, o de um médico chamado telepaticamente durante a noite e o de Agnés Paquet, citados por Myers(iv) Acrescentemos o caso da Sra. Elgee, que, estando no Cairo, teve a visão de um amigo que, naquele mesmo momento, em Inglaterra, pensava nela ardentemente. (v)

“Nos últimos dias de sua vida, a minha mãe via-me muitas vezes junto de si, em Tours, conquanto eu andasse então muito longe dali, em viagem pelo oriente da França.”

Todos estes fenómenos podem ser explicados pela projecção da vontade do manifestante, que evoca no percipiente a própria imagem do agente.

Nos casos a seguir, veremos a personalidade psíquica, a alma, destacar-se completamente do invólucro corpóreo e aparecer na sua forma de fantasma. A esse respeito são inúmeros os testemunhos.

Relatamos noutra obra (vi) os resultados dos inquéritos da Sociedade de Pesquisas Psíquicas, de Londres. Permitiram eles que se recolhessem cerca de mil casos de aparições, à distância, de pessoas vivas, apoiados por atestados de alto valor. Os testemunhos foram consignados em muitos volumes, sob a forma de autos. Foram assinados por homens de ciência pertencentes a academias ou a diversos corpos científicos. Entre estes nomes figuram os de GladstoneBalfour, etc.

Atribui-se, geralmente, a estes fenómenos, carácter subjectivo; mas essa opinião não resiste a um exame atento. Certas aparições foram vistas sucessivamente, por várias pessoas, nos diferentes andares de uma casa; outras impressionaram animais, como cães, cavalos, etc. Em certos casos, os fantasmas actuam sobre a matéria, abrem portas, deslocam objectos, deixam indícios no pó que cobre os móveis; ouvem-se vozes, que dão informações a respeito de factos ignorados, sendo mais tarde essas informações reconhecidas como exactas.

No número destes casos devemos incluir o da Senhora Hawkins, cujo fantasma foi visto simultaneamente por quatro pessoas e do mesmo modo; (vii) as visões de Mac-Alpine, de Carrol, Stevenson; (viii) a de um marinheiro que, estando a velar junto de um camarada moribundo, viu aparecer uma família inteira de fantasmas, trajando luto; (ix) o caso de Clerk em que o irmão moribundo apareceu a uma negra que nunca o conhecera. (x)

Na França, foram recolhidos numerosos factos da mesma natureza e publicados pelos Annales des Sciences Psychiques, do Dr. Dariex e do Prof. Charles Richet e por Camille Flammarion, na sua obra O Desconhecido e os Problemas Psíquicos.

Vamos citar um caso recentíssimo. Os grandes jornais de Londres, o Daily Express, o Evening News, o Daily News, de 17 de maio de 1905, o Umpire, de 14 de maio, etc., narram a aparição, em plena sessão do Parlamento, na Câmara dos Comuns, do fantasma de um deputado, o Major Sir Carne Rasch, retido nesse momento em casa por causa de uma indisposição. Três outros deputados atestam a realidade da manifestação. Sir Gilbert Parker exprime-se da seguinte maneira: (xi)

“Eu queria tomar parte no debate, mas esqueceram-se de me chamar. Quando voltava para o meu lugar, dei com os olhos em Sir Carne Rasch sentado perto do seu lugar do costume. Como sabia que ele tinha estado doente, fiz-lhe um gesto amigável, dizendo-lhe: “Estimo que esteja melhor”; mas ele não deu nenhuma resposta, o que me causou admiração. A fisionomia do meu amigo estava muito pálida. Ele estava sentado, quieto, com a fronte encostada à mão; a expressão do seu rosto era impassível e dura. Pensei um instante no que havia de fazer. Quando me voltei para Sir Carne, ele havia desaparecido. Imediatamente fui à sua procura, esperando encontrá-lo no vestíbulo; mas Rasch não estava lá; ninguém aí o vira...

O próprio Sir Carne não duvidava de ter realmente aparecido na Câmara sob a forma do seu duplo, por causa da preocupação em que estava de dar ao Governo o apoio do seu voto.”

No “Daily News” de 17 de maio de 1905, Sir Arthur Hayter junta o seu testemunho ao de Sir Gilbert Parker. Diz que ele também não só viu Sir Carne Rasch, como chamou a atenção de Sir Henry Campbell Bannerman para a sua presença na Câmara.

A exteriorização, ou desdobramento, do ser humano pode ser provocada pela acção magnética. Fizeram-se experiências que tornam impossível a dúvida. O paciente, adormecido, desdobra-se e vai produzir, à distância, actos materiais.

Citamos o caso do magnetizador Lewis. (xii) Em outras circunstâncias semelhantes foi a aparição fotografada. Aksakof, na sua obra Animismo e Espiritismo, cita três desses casos; outros factos análogos foram observados pelo Capitão Volpi e por W. Stead, director do Borderland.

No caso Istrati e Hasdeu – este último senador da Romania – a forma desdobrada do professor Istrati impressionou placas fotográficas, à noite, à distância de 50 quilómetros do lugar onde estava o seu corpo adormecido. Assim, a objectividade da alma, com a sua forma fluídica manifestando-se em pontos afastados daquele onde o corpo se encontra em descanso, está demonstrada de maneira positiva e não pode ser contestada seriamente.

Ao demais, basta consultar a História para se reconhecer que o passado está cheio de factos deste género. Os fenómenos de bilocação dos vivos são frequentes nos anais religiosos. O passado não é menos rico em narrações e testemunhos a respeito dos Espíritos dos mortos e essa abundância de afirmações, essa persistência através dos séculos são bem próprias para indicar que, no meio das superstições e dos erros, alguma coisa de realidade deve existir.

Com efeito, a comunicação e manifestação à distância entre Espíritos encarnados (i) conduzem, lógica e necessariamente, à comunicação possível entre Espíritos encarnados e desencarnados. A esse respeito, assim se expressa Myers: (xiii)

“Nós podemos impressionar-nos reciprocamente à distância e, se os nossos Espíritos encarnados podem assim actuar, de maneira independente do organismo carnal, há nisto uma presunção favorável à existência de outros Espíritos independentes dos corpos e susceptíveis de nos impressionarem do mesmo modo.”

Os habitantes do espaço têm facultado muitas provas experimentais da lei da comunhão universal na fraca e estreita medida em que na Terra ela pode ser verificada com rigor.

Devemos apontar, entre outros factos, a experiência da Sociedade de Pesquisas de Londres, à qual o mundo sábio é devedor de tantas descobertas no domínio psíquico. Estabeleceu ela um sistema de permutas de pensamentos entre os Estados Unidos e a Inglaterra, simplesmente com a ajuda de dois médiuns em transe, que serviram para transmitir uma mensagem de um Espírito para o outro Espírito. A mensagem consistia em quatro palavras latinas e o latim era língua que os médiuns não conheciam.

Esta experiência foi feita sob a vigilância e fiscalização do Prof. Hyslop, da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque e, foram tomadas todas as precauções necessárias para serem evitadas as fraudes. (xiv)

Quando se estuda, nos seus diversos aspectos, o fenómeno da telepatia, as visões gerais que daí resultam aumentam pouco a pouco e somos levados a reconhecer nele um processo de comunicação de alcance incalculável. A princípio, esse fenómeno foi-nos apresentado como uma simples transmissão, quase mecânica, de pensamentos e imagens entre dois cérebros; mas o fenómeno vai revestir as formas mais variadas e impressionantes. Depois dos pensamentos vêm as projecções, à distância, dos fantasmas dos vivos, as dos moribundos e, finalmente, sem que nenhuma solução de continuidade interrompa o encadeamento dos factos, as aparições dos mortos, quando o vidente, na maior parte dos casos, nenhum conhecimento tem do falecimento das pessoas que aparecem. Há aí uma série contínua de manifestações, que se vão graduando nos seus efeitos e concorrem para demonstrar a indestrutibilidade da alma.

A acção telepática não conhece limites; vence todos os obstáculos e liga os vivos da Terra aos vivos do espaço, o mundo visível aos mundos invisíveis, o homem a Deus; une-os da maneira mais estreita, mais íntima.

Os meios de transmissão que ela nos revela constituem a base das relações sociais entre os Espíritos, o seu modo usual de permutarem as ideias e as sensações. O fenómeno que na Terra se chama telepatia não é outra coisa senão o processo de comunicação entre todos os seres pensantes na vida superior e a oração é uma das suas formas mais poderosas, uma das suas aplicações mais elevadas e mais puras. A telepatia é a manifestação de uma lei universal e eterna.

Todos os seres, todos os corpos trocam vibrações. Os astros exercem influência através das imensidades siderais; do mesmo modo, as almas, que são sistemas de forças e focos de pensamentos, impressionam-se reciprocamente e podem comunicar-se a todas as distâncias. (xv) A atracção estende-se às almas como aos astros; atrai-os para um Centro comum, eterno e divino. Uma dupla relação se estabelece. As suas aspirações sobem para ele na forma de apelos e orações. E, sob a forma de graças e inspirações, descem os socorros.

Os grandes poetas, escritores, artistas, os sábios e os puros conhecem esses impulsos, essas inspirações súbitas, esses clarões de génio que iluminam o cérebro como relâmpago e parecem provir de um mundo superior, cuja grandeza e inebriante beleza reflectem, ou então são visões da alma. Num arrojo extático ela vê entreabrir-se esse mundo inacessível, percebe-lhe as radiações, as essências, as luzes.

Tudo isso nos demonstra que a alma é susceptível de ser impressionada por meios diferentes dos órgãos, que ela pode recolher conhecimentos que excedem as faculdades humanas e provêm de uma causa espiritual. Graças a esses clarões, a esses relâmpagos, ela entrevê, na vibração universal, o passado e o futuro; percebe a génese das formas, formas de arte e pensamento, de beleza e santidade, da qual perenemente derivam formas novas, numa variedade inesgotável como o manancial de onde emanam.

Consideremos estas coisas sob um ponto de vista mais directo; vejamos as suas consequências no meio terrestre. Já pelos factos telepáticos se acentua a evolução humana. O homem conquista novos poderes psíquicos que lhe permitirão, um dia, manifestar o seu pensamento a todas as distâncias, sem intermediário material. Esse progresso constitui um dos mais magníficos estádios da humanidade para uma vida mais intensa e livre. Poderá ser o prelúdio da maior revolução moral que se tenha realizado no nosso Globo. Dessa forma seria realmente vencido, ou consideravelmente atenuado, o mal.

Quando o homem já não tiver segredos, quando se lhe puder ler no cérebro os pensamentos, ele já não se atreverá a pensar no mal e, por conseguinte, a fazer o mal. Assim, a alma humana elevar-se-á sempre, subindo pela escala dos desenvolvimentos infinitos. Tempos virão em que a inteligência há de predominar cada vez mais, desembaraçando-se da crisálida carnal, estendendo, afirmando o seu domínio sobre a matéria, criando com os seus esforços meios novos e mais amplos de percepção e manifestação. Apurando-se, por sua vez, os sentidos, verão eles ampliar-se-lhes o círculo de acção. O cérebro humano tornar-se-á um templo misterioso, de vastas e profundas naves, cheias de harmonias, vozes e perfumes, instrumento admirável ao serviço de um Espírito que se tornou mais subtil e poderoso.

Ao mesmo tempo em que a personalidade humana, alma e organismo, a pátria terrestre se transformará. Para que se opere a evolução do meio é preciso que primeiramente se efectue a evolução do indivíduo. É o homem que faz a humanidade e esta, por sua acção constante, transforma a morada daquele. Há equilíbrio absoluto e relação íntima entre o moral e o físico. O pensamento e a vontade são a ferramenta, por excelência, com a qual tudo podemos transformar em nós e à nossa volta.

Tenhamos apenas pensamentos elevados e puros; aspiremos a tudo o que é grande, nobre e belo. Pouco a pouco sentiremos regenerar-se o nosso próprio ser e, com ele, do mesmo modo, todas as camadas sociais, o globo e a humanidade! E, em nossa ascensão, chegaremos a compreender e praticar melhor a comunhão universal que une todos os seres. Inconsciente nos estados inferiores da existência, essa comunhão torna-se cada vez mais consciente, à medida que o ser se eleva e percorre os graus inumeráveis da evolução, para chegar, um dia, ao estado de espiritualidade em que cada alma, irradiando o brilho das potências adquiridas nos impulsos do seu amor, vive da vida de todos e a todos se sente unida na obra eterna e infinita.

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(ii) F. Myers (i) - La Personnalité Humaine, pág. 250.
(iii) Ver Bulletin de la Société de Psychologie Physiologique, I, pág. 24.
(iv) Phantasms of the living, I, 267. Proceedings, VII, págs. 32 e 35.
(v) Idem, II, 239.
(vi) Ver Depois da Morte, 3ª parte; e No Invisível, cap. XI.
(vii) Phantasms of the Living, II, 18.
(viii) Proceedings, X. 332, Phantasms of the Living, II, 96 e 100.
(ix) Phantasms of the Living, II, 144.
(x) Phantasms of the Living, II, 61.
(xi) The Umpire de 14 de maio de 1905, reprodução feita pelos Annales des Sciences Psychiques (i), julho de 1905.
(xii) Revue Scientifique du Spiritisme, fevereiro de 1905, pág. 457.
(xiii) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 25.
(xiv) Pode ler-se a narração desse facto na Daily Tribune, de Chicago, 31 de outubro de 1904, e nos Proceedings da S.P.R.
(xv) Sir William Crookes (i), num discurso na British Association em 1898, sobre a lei das vibrações, declara que ela é a lei natural que rege “todas as comunicações psíquicas”. Parece que a telepatia até se estende aos animais. Existem factos que indicam uma comunicação telepática entre homens e animais. Ver, nos Annales des Sciences Psychiques, agosto de 1905, págs. 459 e seguintes, o estudo bem documentado de E. Bozzano (i)Perceptions Psychiques et les Animaux.


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, VI – Desprendimento e exteriorização (Projecções telepáticas), 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa)

domingo, 12 de novembro de 2023

O Homem e a Sociedade ~


Capítulo VII
~ Rumo ao Estado Metapsíquico ~

 Se é possível que o espiritual exista na natureza humana, a sua descoberta só poderá obter-se mediante a exploração extrassensorial, segundo a prática da parapsicologia. O raciocínio metafísico e teológico já não convence o espírito crítico da idade actual. Daí que Lecomte du Nouy expressava acertadamente: “Não podemos combater os tanques com a cavalaria, nem os aviões com arcos e flechas. Utilizou-se a ciência para solapar os fundamentos da religião. Devemos empregar a ciência para consolidá-la.” (i)

 A parapsicologia não é uma evasão da realidade material; pelo contrário, é uma tomada de posse dessa realidade, para transformá-la noutra, mais lógica e firme, mediante o descoberta do númeno que a anima. É indubitável que esse espírito que rege a realidade visível será conquistado pela investigação parapsicológica e mediúnica, desde que, por temor às conclusões da verdade espiritual, não se detenha na periferia do Ser.

 Apesar das reservas que se adoptem, para que a parapsicologia se abstenha de toda a hipótese que transcenda o domínio estritamente cientifico(ii) abre-se perante ela uma zona extracientífica que tem relação com o que se pode chamar o ser transcendente do homem. De maneira que manter a parapsicologia nessa ordem psíquica que se assenta apenas em actividades e funções do psiquismo humano, segundo deseja Robert Amadou, é não reconhecer a possível razão que assiste ao filósofo parapsicológico, em favor da imortalidade da alma, quando se defronta com essas tremendas realidades metapsíquicas que apresentam os fenómenos supranormais, como são as materializações de seres vivos, comprovadas e admitidas pelos maiores sábios da humanidade.

 O experimentalismo crítico e analítico das ciências parapsicológicas será o único factor positivo que deterá a acção demolidora do materialismo. Não nos esqueçamos de que o chamado realismo marxista é mais poderoso que os milagres e as apelações da teologia. Acreditamos que os únicos elementos espirituais, que poderão salvar o sentido religioso do homem são as realidades do fenómeno espiritista, acompanhadas pelos esforços experimentais da parapsicologia. (iii)

 Nos tempos novos, já não se trata de conformismo nem de crenças sem provas: esta atitude será agora a de uma parte mínima da humanidade, mas nunca a dessa maioria ateísta e antiespiritualista que nega enfaticamente hoje o que aceitou até ontem de maneira cândida. Se é certo que existe uma necessidade de acreditar, o desenvolvimento mental do homem exige novo modo de aceitar as crenças: aspira a crer sobre as bases de um seguro realismo religioso, sem medo de se enganar.

 Contudo, os chefes das diversas igrejas existentes, em vez de acatarem como uma realidade escatológica o espiritismo, combatem-no em nome do Diabo, sem perceber que estão desperdiçando uma das melhores oportunidades para refutar com ele as consequências do materialismo.

 Se é certo que o período actual da parapsicologia é o que corresponde à era biológica, segundo o critério de Joseph B. Rhine, a partir de agora devíamos considerar a necessidade de inaugurar a era ontológica da parapsicologia. O problema do Ser, tão estudado no presente, através do que a filosofia denomina Conhecimento do homem, exige do trabalho parapsicológico a demonstração de novas noções ontológicas, que possam tapar a brecha, segundo Rhine, observada na natureza. Essa brecha é, indubitavelmente, o mistério do homem, isto é, a dramática questão apresentada pela filosofia existencial com respeito ao sentido do Ser, relegado apenas à náusea, à angústia, ao nada e à morte.

 Que é o homem? Que somos? De onde viemos? E para onde vamos?

 Eis aqui as apaixonantes questões que merecem uma resposta categórica.

 Francisco Romero, um dos maiores filósofos argentinos, referindo-se ao tema do homem e à posição da filosofia em face desses problemas, escreveu o seguinte:

 “O que a presente situação carece exigir da filosofia é uma definição precisa e concreta do homem, uma especificação nítida da sua posição no conjunto e do sentido da sua vida, de acordo com os mais firmes resultados do pensamento e da experiência psicológica e histórica: em suma, uma noção do homem, mais minuciosa, exaustiva e terminante do que as proporcionadas até agora.” (iv)

 Como vemos, a necessidade espiritual de um conhecimento definitivo do homem está no íntimo de todos. A filosofia, mais do que em nenhuma outra época, aspira a solucionar o problema do homem. O Ser continua a ser um problema metafísico e religioso, apesar de tudo o que foi dito até agora. A situação dramática em que se encontra a filosofia torna-se mais desesperadora à medida que as teorias, hipóteses e petições de princípio se vão acumulando. Não nos esqueçamos que são numerosos os sistemas e as ideologias filosóficas e religiosas que pretendem interpretar o homem. Não obstante, nenhuma dessas formulações se mostrou capaz de derrotar esta sinistra concepção materialista do mundo: a filosofia do nada. Por outras palavras, o fúnebre sentido desta definição do existencialismo niilista: o homem, é um ser para a morte eterna.

 O filósofo alemão Fritz J. Von Rintelen, num belo trabalho, exprimiu-se assim: “Nenhum sentimento já evoca a Deus, mas tão-somente ao Nada.” (v)

 Esta conclusiva afirmação reflecte o verdadeiro sentir dos tempos novos. Já não se trata de afirmar a realidade espiritual do homem e da existência, mas procura matar-se o homem, levá-lo ao suicídio, através de um existir fundado no nada. A impressão que se poderia ter é a de que um demónio negador se alojara na mente humana, procurando apenas destruir o Ser espiritual que a anima.

 De acordo com o sector materialista da humanidade é mais racional e, até mais científico, dizer que o homem morre para sempre, do que supor que viverá eternamente, na vida do espírito. Parece que, para o homem moderno, seria preferível ser pó ou nada a ser espírito imortal. E, segundo outros argumentos, é mais moral e até mais natural morrer para sempre do que viver eternamente.

 A disputa suscitada pelo existencialismo, entre essência e existência, seria facilmente resolvida se a filosofia e a religião levassem em conta as manifestações espirituais dos fenómenos metapsíquicos e parapsicológícos.

 Jean-Paul Sartre, em O Ser e o Nada, esforça-se por fazer prevalecer o Nada sobre o Ser ou a essência espiritual do homem.

 Vemos nas suas páginas que o nada foi convertido em valor filosófico, para sustentar a morte eterna e definitiva do indivíduo. Mas não devemos espantar-nos com essa valorização do nada, já que, segundo a bíblia, Deus fez o homem do nada. Consequentemente, esse instinto do nada existencial ressurge com o existencialismo ateu, em forma catastrófica, do inconsciente da espécie, levando de roldão o ético e toda a finalidade transcendente do homem e do Universo.

 O Nada, para Deus, era um valor criador; por isso, diz a bíblia que o Criador fez o mundo surgir do nada. Daí se conclui que o Ser e o mundo, como afirma o existencialismo niilista, estão condenados ao nada, o que vale dizer que esse existencialismo, não obstante o seu rigoroso ateísmo, é uma filosofia vinculada a Deus e à bíblia.

 A metapsíquica e a parapsicologia descobriram, entretanto, que o nada não é verdadeiro; comprovaram que na vida social existe o que Richet chamou de inabitual e, que os fenómenos transcendentais desse campo revelam uma teleologia, tanto para o Ser como para a civilizaçãoA metapsíquica prova que o mundo objectivo pode descentralizar-se, para que a essência psíquica se manifeste na vida espiritual da humanidade. Além disso, estabeleceu que a existência não é atributo exclusivo do homem e do seu mundo, mas que o existir é próprio de outros seres e entidades inteligentes, situados no mundo invisível que nos circunda.

 A decadência espiritual do homem e da cultura contemporânea reclamam a colocação de problemas metafísicos e sociais, com o objectivo de alcançar novas interpretações da existência mais edificantes para o destino do espírito encarnado. Chegou a hora de uma metapsíquica existencialresistir a isso é deter a marcha das verdades espirituais. Charles Richet, provando este facto singular e dramático da evolução, declarou: “Amanhã, talvez a metapsíquica terá o direito de elevar-se mais alto, nos rumos de uma moral, uma sociologia e uma teodiceia novas.” (vi)

 Com efeito, a lei dos três estados, de Auguste Comteo teológico, o metafísico e o positivo, permite-nos acrescentar agora um quarto estado: metapsíquicoDesta maneira poderíamos inaugurar uma nova forma de conhecer as três grandes manifestações da história: a sociedade, o Espírito e a divindade. Acreditamos que o melhor campo de investigação metafísica é o próprio homem, porque nele está presente esse quarto estado, que Comte não chegou a conhecer: o estado metapsíquicoMas esse campo, para ser efectivo, deverá entrosar-se com a interpretação espírita do homem e da vida, já que nesta se encontra o fundamento filosófico, teosófico e religioso da continuidade do Ser. (vii)

/…
(i) Leconte du Nouy, O Destino Humano.
(ii) Revue Metapsychique, R. P. Reginaldo Omez, 1950.
(iii) O facto básico de deixar estabelecida a realidade de psi envolve um princípio de grande significação, aplicável a este problema da sobrevivência espiritual. Pois se não houvesse nenhuma evidência de algo que transcenda as leis físicas, se não houvesse nada que desafiasse os limites da interpretação mecanicista do homem e do mundo vivente, não valeria a pena pensar ainda no problema da sobrevivência. (Revista de Parapsicologia, n° 2 - ano 1955).
(iv) Miradas Sobre el Hombre, La Nación - Buenos Aires, 1950. (Edição de 21 de março).
(v) Lá Mística de Ia Muerte y Ia Filosofia Contemporanea, Critério, Buenos Aires, n.° 1.117.
(vi) Tratado de Metapsíquica, Charles Richet, pág. 37, edição espanhola, 1925.
(vii) Na Revista Espírita, de abril de 1858, Kardec aceitou a sugestão de um correspondente de acrescer à lei dos três estados, de Comte, o estado psicológico da evolução humana, iniciado com o espiritismo. O autor renova essa proposição, como vemos, com outra denominação. Essa coincidência e o desenvolvimento actual das pesquisas psíquicas, mostram que Kardec e o correspondente da “Revista” estavam certos. O leitor pode verificar o facto no volume I da colecção da “Revista”, lançada pela Edicel. É o editorial do número de abril, intitulado: “Período Psicológico”. (Nota de J.H.Pires).


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo VII Rumo ao Estado Metapsíquico, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~
(VI)

 O apanágio mais glorioso da natureza humana não passaria de grosseiro engodo, se pudesse prevalecer a teoria mecânica do Universo. A Verdade, o Bem, o Belo desaparecem nela. Em vão os adversários nos alegam a sua conduta exemplar, inatacável.

 No caso, não se trata das consequências de sua vida pessoal e sim das de sua doutrina. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se a si mesmo, não pode o ateísmo constituir-se em moral. “O materialismo – diz judiciosamente Patrice Larroque (i) – para mais nada serve, senão para tirar à vida humana a sua gravidade e o seu valor, dando razão aos seres miseráveis, cuja habilidade consiste em explicar, com a maior segurança possível, as misérias e fraquezas do próximo.”

 Queremos francamente acreditar que todos os materialistas, em o serem, não se tornem só por isso corrompidos. Não nos fazemos eco dos que os acusam de “viverem mergulhados na embriaguez e no deboche”. Conhecemos homens e mulheres cuja vida pode apontar-se como modelo de moralidade, embora não crendo na existência de Deus e da alma. Não, não podemos deixar de confessar que, no seu próprio sistema, essa honestidade é apenas uma questão de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos e benevolentes, afectuosos e moralizados, em suma, se praticam a caridade, se não sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem a integridade e a pureza de carácter à fortuna ilícita, não é devido ao seu sistema e sim a uma convicção íntima, que os guia a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua filosofia. Sim: não são moralizados por serem cépticos, mas, a despeito de o serem.

 Pois, na verdade, que significa uma moralidade sem base, sem motivo e sem finalidade?

 Certo, não duvidamos possa haver uma moral independente do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer confissão religiosa. No que não cremos é numa moral independente da ideia de Deus. Se só existissem as verdades de ordem física, se fossem místicas as que possuímos como de ordem moral, a própria moral não passaria de utopia e a honestidade de mera tolice.

 Outras propensões, existem, porém, que não procedem da matéria.

 “O homem que passa os dias sofrivelmente a trabalhar, ou, antes, que não consome todo o tempo em prover a existência física – diz um grande astrónomo (ii) – experimenta necessidades nas quais não intervêm os sentidos, penas e gozos, que nada têm de comum com as misérias da vida. E, uma vez manifestadas com certa intensidade, ele não pode confundi-las com os apetites animais. Sente-as como de outra espécie e de uma ordem mais elevada. Mas isso não é tudo. O homem não é sensível somente aos jogos da imaginação, às suavidades dos costumes sociais, mas sim especulativo por natureza. Não contempla o mundo e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se fossem fenómenos seriados e apenas dignos de interesse pelas relações que mantêm com ele. Ao contrário, considera-os como sistematizados, dispostos e coordenados com desígnio. A harmonia das partes, a sagacidade das combinações, causam-lhe a mais viva admiração. Assim, é levado à conjectura de uma potência, de uma inteligência superior à sua e capaz de produzir e conceber, quanto se lhe depara na Natureza. Pode chamar a essa potência, infinita, uma vez que lhe não percebe limite nas obras com que se lhe manifesta. Quanto mais examina, observa, indaga, maiores magnificências descobre e mais grandezas entrevê.

 “Vê que tudo o que lhe pode facultar a mais longa existência e a maior inteligência, já como fruto de experiência própria, já como património de esforço alheio, só pode conduzi-lo aos limites da Ciência. Como estranhar, então, que um ser assim constituído comece por agasalhar a esperança e acabe convicto de que o seu princípio espiritual não acompanhe as vicissitudes da carcaça, que lhe sobreviva ao desaparecimento? Como admirar se convença ele, que, longe de extinguir-se, passará a uma vida nova, na qual, liberto dos mil entraves que aqui lhe tolhem o voo, dotado de sentidos mais subtis, de faculdades mais altas, matará a sede na fonte de sabedoria que tão sequioso buscara na Terra?”

 A hipótese materialista exclui todas estas grandezas morais, todas estas altas aspirações e esperanças consoladoras. Os nossos adversários, porém, tomam facilmente o seu partido: “Façamos abstracção – diz o autor de Força e Matéria – de toda a questão de moral e de utilidade. A Natureza não existe para a Religião, nem para a Moral, nem para os homens. Não seríamos ridículos – vejam bem, ridículos – se fôssemos chorar como crianças só porque as nossas torradas têm pouca manteiga?” Que tal vos parecem as... torradas? Pelo que nos toca, confessamos não compreender o gracejo em assunto de tamanha relevância.

 Diante dos grandes factos de ordem moral e intelectual, parece-nos haver perdido todo o senso da verdade para subordinar estas virtudes, as “virtudes”, aos movimentos da matéria. Como atribuir a esse predomínio, com Moleschott, que o “homem deva, em parte, o lugar privilegiado na escala zoológica, à faculdade de alimentar-se tanto de vegetais como de carne”? O mesmo vale dizer, com Helvétius, que “o homem só deve à conformação das mãos a superioridade que desfruta em relação aos outros animais”.

 Como admitir que Büchner, apregoando a matéria como base de toda a força espiritual, de toda a grandeza terrestre e humana – que aquele mesmo que reconheceu a igualdade do espírito e da matéria e julgue honroso o título de materialista, pois ao materialismo é que o mundo deve a sua grandeza? (iii)

 Como afinar com Spencer nestas declarações:

 “O que denominamos quantidade de consciência é determinado pelos elementos constitutivos do sangue; vemo-lo claramente na exaltação que se dá quando introduzimos na circulação uns quantos compostos químicos, como sejam o álcool e os alcalóides vegetais.” Como Compartilhar da opinião de Littré ao declarar que “a vontade é inerente à substância cerebral, assim como a contractilidade o é dos músculos e, que o livre-arbítrio não é mais que simples modalidade do trabalho cerebral”? (iv)

 Como reduzir a proporções da Física e da Química orgânicas, a simples fenómenos de nutrição e assimilação, essas realizações magníficas do génio e da virtude?

 Terminando este capítulo, regressemos ao objectivo com que o encetámos e constatemos a inconsequência desses filósofos que imaginam, arrogantemente, ter lançado uma ponte entre o espírito e a matéria, sem perceberem que apenas lançaram pedras no abismo. Descrevem eles o movimento atómico das substâncias, metamorfoses de combinações, processos de assimilação e desassimilação e pretendem que essas transformações que levam do pulmão ao cérebro uma molécula de ferro, são de molde a explicar claramente a formação do pensamento. Posto isto, não temem acrescentar: – “Temos provas tão concretas desta verdade, que uma profissão de fé materialista não deve ser considerada apenas como premissa de grande alcance, nem como arrojada profecia, mas como fruto de uma convicção profundamente enraizada” (v).

 Eis o que se pode chamar ousadia! Sabei assim todos vós, ó filósofos e moralistas! que o homem é manufactura do seu alimento, da sua paternidade, do seu clima, do seu solo e da sua educação. Se afagais o nobre intuito de colaborar para a melhoria humana, não é, precisamente, a graduação do nível moral e intelectual do indivíduo o que vos deve preocupar e, sim de como vive e como se alimenta. Se ele tem muito ferro (já que o ferro é uma das maiores apoquentações da época e as raparigas muito necessitam dele; (Carta 11ª) se tem fósforo que baste (já que sangue, cérebro, ovos e esperma, todas as partículas do corpo, em suma, que ocupam os mais altos postos na escala da vida devem à gordura fosforada (vi) o seu carácter mais essencial); (Carta 11ª) se tem bastante sal no espírito e açúcar no coração...

 A questão fundamental é alimentar-se bem e estabelecer uma conveniente harmonia entre os regimes vegetal e animal. Escolhamos então, nos elementos deste último, os mais ricos de substâncias nutrientes e, sobretudo, os que primam por abundância de fósforo, sem chegar, claro, aos extremos de engolir cabeças do dito.

 Mas, à batata, ao arroz, à cenoura, ao nabo, às verduras, prefiramos o feijão, as ervilhas e as lentilhas. Eis os três restauradores do espírito! e eis como se escreve a respeito desses beneméritos legumes.

 Ouçamos esta tirada: “As ervilhas, o feijão e as lentilhas continuam a florescer nos nossos olhos, elas contêm aproximadamente tanta albumina (legumina) quanto o nosso sangue; e duas ou três vezes mais matérias adipógenas que legumina. Embora mais caras e de preparação mais dispendiosa, as ervilhas, o feijão e as lentilhas dão melhor resultado que as batatas. Elas são de molde a produzir um bom sangue e a fortificar os músculos e o cérebro, qual o não faz a batata. As ervilhas, o feijão e as lentilhas, atendendo às suas qualidades nutritivas, são mais baratos que as batatas, pela mesma razão que o ferro é mais barato que a madeira, quando se trate de fabricar trilhos. Ervilha, feijão e lentilha dão energias para o trabalho, pagam por si mesmos o seu custo; ao passo que um regime longo de batatas acarreta debilidade e decadência. O homem que, durante quinze dias, só comesse batatas, ficaria impossibilitado de as arrancar por si mesmo” (vii).

 O prolator deve ter assinado contracto com algum hortelão (ou talvez hoteleiro), exclusivamente devotado a estes omnipotentes legumes. Que lhes faça bom proveito...

 Sob esse novo panegírico das ditas substâncias alimentares, o materialismo desliza suavemente e se insinua sem rumor. Compararam-no certa feita (mas nós temos cá as nossas dúvidas) àquela coisa de que nos fala D. Basílio: um leve ruído resvalando pelo solo, qual andorinha que, prenunciando tempestades, pipila e passa, a espalhar no seu curso a semente envenenada...

 Seja, porém, qual for o efeito dos miríficos farináceos, não será neles que havemos de procurar as manifestações do espírito humano.

 Quando, finalmente, concluem que a influência incontestável e incontestada do regime alimentar sobre o físico e o moral basta para justificar, em absoluto, a suserania da matéria, caem nos excessos do sistematismo, a negarem tudo que se não enquadra no seu sistema e a torcerem os factos para os ajeitar aos seus estreitos moldes. Bastaria, contudo, que ponderassem um pouco mais, para não sustentarem semelhantes erros.

 Quaisquer que sejam o carácter, o propósito e a persistência de ânimo daqueles de quem aqui temos falado, os seus exemplos valem como protesto de afirmações tão insensatas.

 Eis aqui o grande missionário das Índias, Francisco de Xavier. Sigamo-lo na nau que o levou às Índias portuguesas, por ordem de D.João III, a descer o Tejo, envolto na sua estamenha remendada e só com a bagagem do seu breviário – ele, o generoso gentil-homem, o sábio de 22 anos, o já consagrado professor de Filosofia na Universidade de Paris, que tudo abandonava para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com os marinheiros e aos marinheiros se devota; à noite, dorme no convés e tem por travesseiro um rolo de cordoalha.

 Em Goa, foi encontrar-se no meio de uma população miserável, sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e material. Mais tarde, no prosseguimento da abnegada missão, ei-lo a descer as costas de Comorim e a fundar uma igreja no Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar novas raças e novos climas. Sabemos que toda a sua vida foi um rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Fome, sede e torturas inauditas barraram a senda do peregrino da fé.

 Tudo vencia, porém, e avançava para diante como que impelido por uma vontade incoercível “Seja qual for a morte, o suplício que me reservem – dizia –, estou disposto a sofrê-lo mil vezes pela salvação de uma só alma.” A febre e a morte detiveram-no nas fronteiras da China. Em face de exemplos como este, que se poderia concluir das teorias do feijão, das ervilhas e das lentilhas? Em que, como e, quando o regime alimentar teria governado a alma do apóstolo? Teria ele encontrado nessas regiões desconhecidas aquela balança metódica que se oferece ao cidadão e que o capitalista preguiçoso pode encomendar ao seu Vatel? Que relação pode haver entre Brillat-Savarin e Grimodde la Reynière com um Inácio de Loyola e um Vicente de Paula? Os grandes exploradores, à cabeça dos quais se encontram um Dumont-d’Urville, um Cook, um Livingstone, etc., não vingaram, todos eles, os seus desígnios em circunstâncias e condições físicas as mais contrárias e variadas?

 Poder-se-á sustentar que, mudando de terra, de alimentação, de clima, de meio social, de outros elementos e até de corpo, dado a transformação molecular, mudassem também de alma, de fé e de coragem? Pois não é verdade que persistiram íntegros na consecução do ideal, através de vicissitudes tremendas e dos mais fortes obstáculos? (viii) Na verdade, insistirmos seria injuriar o leitor, os nossos sistemáticos adversários à parte, nenhum espírito sensato duvida que matéria e espírito sejam coisas diferentes. Ninguém ignora que, se a assimilação corporal actua no nosso pensamento, assim como a beleza do dia influi na serenidade de nossa alma, isso não impede que seja essa alma um ser pessoal, que chora às vezes quando as aves cantam e as flores exalam perfumes e, outras vezes se entrega serenamente ao estudo, enquanto o céu tempestuoso se funde em raios e trovões (ix).

 Entendam-nos bem e não venham interpretar infielmente as nossas alegações. Nós não dizemos que a matéria seja destituída de toda e qualquer influência sobre o espírito; não dizemos que a alma humana seja completamente independente do organismo e nem mesmo estamos com Platão, ao pretender que o espírito é estranho ao corpo e que há antipatia entre eles.

 Certo, ninguém dirá que uma criatura a morrer de fome esteja disposta a cantar. Quem duvidará de que, após uma jornada fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para dançar?

 Então não sabemos, todos, que a nossa alma se impressiona com e pelos aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos alegra, que uma manhã sombria e chuvosa nos entristece? Que a placidez das belas noites nos penetra intimamente, proporcionando-nos gozos calmos? E dizei: os poemas sonoros, os encantos da música, sinfonias deliciosas, sonatas apaixonantes, nunca vos arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos? Será que, nas vossas disposições habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam as vossas noites, nunca experimentastes o efeito da alimentação e dos vossos hábitos e misteres? Dar-se-á que a maneira pela qual terminastes a vossa tarefa, não tenha afectado os vossos sonhos?

 Numa palavra: será possível ao observador negar a influência permanente e variável que o mundo exterior, sociedade, relações, alimento, frio, luz, obscuridade, cidade ou aldeia e outras causas mil, de nós independentes, não influam nos nossos pensamentos, sentimentos e sensibilidade? Não. Essas influências são reais, admitimo-las e indicamo-las. Montesquieu, cuja declaração é menos exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países frios haverá pouca tendência para os prazeres, que será mais acentuada nos climas temperados e, sempre exuberante nas regiões quentes. Ouvindo as mesmas óperas na Inglaterra e na Itália, notei que a mesma música produzia efeitos diferentes, isto é: enquanto na primeira o auditório se mantinha calmo, na segunda vibrava de forma inconcebível. O mesmo se dá com relação à dor... A grande estatura e os nervos enrijecidos dos povos do Norte são menos vibráteis que os da gente dos países quentes. Lá, há menos sensibilidade na dor. Para sensibilizar um moscovita, quase precisamos esfolá-lo.” Mais adiante, porém, acrescenta que, entre as coisas que governam o homem, importa distinguir “a religião, as leis, as máximas, os exemplos”. Concordaremos com o autor de O Espírito das Leis, com restrições, isto é, no que concerne a influências extrínsecas, por assim dizer; mas daí a admitir que só elas fazem o homem, vai todo um abismo. Uma coisa é dizer que a alma é impressionada por causas situadas fora dela, outra é dizer que essa alma não existe. Chegamos mesmo a nos perguntar como podem os adversários conciliar as duas proposições, quando, no fundo, imaginam que a alma não existe e os pensamentos não passam de produtos da substância cerebral, variáveis com as impressões recebidas. Eis ao que se reduz o homem!

 Abstraindo-nos de todas as provas precedentes acumuladas, a testificação da nossa liberdade viria, enfim, depor a favor da força pensante que nos anima.

 – O panteísmo, fazendo da alma uma partícula da substância divina, a escraviza e arrasta, inevitavelmente, ao fatalismo absoluto.

 – O ateísmo, negando a existência do espírito, faz da alma a escrava da matéria e a conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo.

 Poderíamos, portanto, proceder por eliminação, demonstrando a inanidade dessas doutrinas, forçar o acolhimento da nossa, como a única que concilia os diversos imperativos de nossa consciência. Assim, permitiu de sorte fossem os adversários batidos em todos os quadrantes e que a negação da personalidade ficasse presa ao pelourinho por todos os elementos de nossa convicção.

 Concluindo o arrazoado sobre a existência da alma, afirmamos: a dignidade humana não permite um semelhante atentado ao que constitui o seu supremo farol; antes protesta contra essas tendências exageradas. As influências exageradas actuam mais ou menos em nós, conforme a nossa sensibilidade nervosa; mas, tanto quanto a composição química do cérebro, elas não constituem o nosso valor moral e intelectual. Para arrasar essa hipótese, bem como a precedente, basta considerar a potencialidade da nossa força mental. Com ela, só, podemos afrontar todas essas influências e seguir desdenhosos, de cabeça erguida, por entre essas acções e reacções ambientes.

 Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profunda, pouco nos preocupamos com o estado do céu, se chove ou se faz vento.

 Quando nos abandonamos a um enlevo de alegrias íntimas, pouco se nos dá o dia e o mês em que nos encontramos.

 Quando estudos sérios nos absorvem a atenção, esquecemo-nos de jantar e até de dormir.

 Quando o som das fanfarras atroa os ares e a cidade em alvoroço festeja a liberdade, não lembra saber se estamos em Julho ou em Fevereiro.

 Quando a pátria periclita, o pavilhão francês não se preocupa com a data e o barómetro.

 A vontade suserana não cogita dessas pretensas causas. As profundas emoções do coração desprezam bagatelas. Se a saúde é condição excelente para bem pensar e sentir, não quer dizer que ela só por si promova o estado da alma. Há, na vida, horas mais deliciosas que as dos mais opíparos banquetes e, nas quais se esquecem as iguarias deleitosas aos paladares insaciáveis; horas que eclipsam câmaras sumptuosas, peles caras, jóias brilhantes, todos os prazeres do mundo, enfim, para só nos absorvermos em gozos mais íntimos e mais vivazes... Quantos, na Terra, fruíram esses momentos de felicidade, sabem que acima da esfera material existe uma região inacessível aos tormentos inferiores, onde as almas idealistas se encontram em comunhão com a beleza espiritual incriada.

/…
(ii) Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Herschel.
(iii) Force et Matière, ch. V. Dignité de la Matière.
(iv) Dictionaire de Nysten, article Volonté.
(v) Moleschott – Circulation de la Vie, t. 2º, página 57.
(vi) A propósito desta apologia dos alimentos fosforados, perguntaremos a esses entusiastas se imaginam que os pescadores da Picardia e da Bretanha, que comem muito pescado, se destacam por uma inteligência excepcional.
(vii) Moleschott – Loc. cit. conclus. t. 2º, página 225.
(viii) Moleschott ainda não se penitenciou do seu erro e continua sustentando as mesmas opiniões de 1852. Bom seria que imitasse, até ao fim, o exemplo de Cabanis. Depois dos exemplos que acabamos de citar, concebe-se que um observador de boa-fé proponha, por princípio geral, o seguinte conceito: – “Em toda a série animal vemos funções múltiplas da vida cerebral em correspondência com as fases de crescimento e decrescimento do órgão; vemos a sensibilidade, o “julgamento”, a “consciência”, a coragem e o amor mudarem com o regime alimentar e com o estado de saúde”. Curso de 1865 na Universidade de Zurich.
(ix) A Filosofia não se deixa dominar por esses mistérios. O vitae philosophia dux – exclamava Cícero. (Tese quaest). O virtutis indagatrix espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix legum, tu magistra morum et discipline fuisti: “ad te confugimus, a te opem pertimus”.)


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (6 de 6), 32º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon

sábado, 7 de outubro de 2023

metapsíquica | humana


~~~ a propósito da “Introdução à Metapsíquica Humana”

Não me deterei em analisar o excelente tratado de metapsíquica publicado pelo Sr. René Sudre. Limitar-me-ei em notar que o autor conseguiu sintetizar, em um volume de proporções normais, uma exposição completa, erudita e bem feita de todas as categorias de fenómenos metapsíquicos. Pode mesmo dizer-se que o trabalho não só atinge o fim que o inspirou, senão que constitui também alguma coisa mais do que uma simples “Introdução ao estudo da metapsíquica”.

A sua utilidade torna-se indiscutível, mesmo para os competentes no assunto, que não teriam facilidade de encontrar disposto, com tanta clareza e êxito, o imponente cabedal da fenomenologia examinada.

Quanto à propaganda fecunda que um tratado como este pode exercer nos meios científicos, não lamentarei, sequer, o antiespiritismo superlativamente sofístico do autor, sem o qual a obra perderia, nesse sentido, toda a eficiência naqueles meios ainda dominados pelos preconceitos materialistas.

Sob o ponto de vista pessoal, o meu – que diametralmente diverge daquele em que se coloca Sudre –, é natural, entretanto, me disponha a analisar, discutir e refutar, uma por uma, as principais opiniões e hipóteses antiespíritas, emitidas pelo autor, mormente por me parecer estar ele bem enfronhado no assunto e ser um pensador de talento indiscutível. É, sem dúvida alguma, um valente contendor, com o qual a discussão será de grande proveito, pois que se apresenta na arena terçando as armas mais formidáveis dentre as que são usadas no campo em que milita.

Ernesto Bozzano

I. – O magnetismo animal e os fenómenos espíritas ~

Posto isso, começo, sem preâmbulos, a minha análise crítica, assinalando, desde logo, uma afirmação de natureza histórica feita pelo autor a respeito dos antigos magnetizadores e que é inexacta. Diz ele:

Deleuze e todos os magnetizadores não acreditavam, pois, houvesse comunicação entre os seus sonâmbulos e os seres invisíveis. Não contestavam a realidade das aparições espontâneas, mas as consideravam, em conformidade com a opinião religiosa, como excepcionais e, não acreditavam num intercâmbio possível entre os vivos e os mortos.

Ora, essa descrença geral se transmite aos seus pacientes, que apresentaram todos os fenómenos metapsíquicos completamente desprovidos do carácter espírita.” (pág. 342.)

O grifo do último período é do próprio autor e mostra bem o interesse teórico que ele atribui à circunstância assinalada. Ora, historicamente, essa circunstância é inexacta, ou, melhor ainda, diametralmente contrária ao que supõe Sudre. Se consultarmos os tratados de magnetismo animal, verificaremos, com efeito, as provas evidentes das prevenções que, a tal respeito, dominavam os magnetizadores, prevenções que encontram o motivo principal no medo que o conhecimento de tais manifestações fizesse surgir novos obstáculos à tarefa, que lhes cabia, de e para além disso convencer das curas maravilhosas, conseguidas pelas práticas magnéticas. Mas não é menos verdade que, não obstante tais prevenções, as manifestações de entidades de defuntos se davam repetidamente, pela intervenção sonambúlica. O próprio Deleuze, na sua correspondência (i) com o Dr. Billot, o reconhece e nos seguintes termos:

“Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, se ocupam daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disso um exemplo, ei-lo...”

E Deleuze expõe o caso de uma sonâmbula, cujo finado pai a ela se manifestou, por duas vezes, a fim de aconselhá-la sobre o esposo que devia escolher; esses conselhos envolviam a realização remota de um facto que se veio a realizar, precisamente, na época indicada. (G. Billot, Correspondencesur le Magnétisme Animal, t. III.)

O Dr. Billot responde a Deleuze, relatando um facto maravilhoso, com ele próprio ocorrido: o do “transporte” de uma planta medicinal, que veio cair sobre os joelhos da sua sonâmbula, pela intervenção de uma “rapariga” que, repetidas vezes, se manifestava por intermédio da mesma sonâmbula.

Lembro, além disso, o facto do Barão Du Potet – que, pelo Journal du Magnétisme, provocava constantes polémicas com aqueles dos seus confrades que ousavam publicar qualquer episódio, sobre a manifestação de pessoas falecidas – haver confessado as suas íntimas convicções nesse sentido, quando, em carta particular a Alphonse Cahagnet e, por este último inserta na sua obra, assim se exprimiu: “Tratais, com uma antecipação de vinte anos, destas questões; a Humanidade não está ainda preparada para compreendê-las.”

Torna-se claro o fim oculto da sua pretendida incredulidade; temia que, não estando os homens de ciência absolutamente dispostos a levar a sério as manifestações dos mortos, pela intervenção sonambúlica, viessem as divulgações dessas manifestações criar grave obstáculo à tarefa, já de si tão difícil, de convencer o mundo científico das propriedades terapêuticas do “magnetismo animal”.

Acrescentarei que o Barão Du Potet, quando do seu encontro, anos mais tarde, em Londres, com o Rev. William Stainton Moses, ao mesmo confiou, sem reservas, as suas convicções espíritas, nascidas de factos por ele próprio verificados, sem qualquer provocação de sua parte.

Nessa mesma ocasião, aconteceu-lhe ter, juntamente com Stainton Moses, a visão de um homem, que se havia suicidado algumas horas antes, atirando-se debaixo das rodas de uma máquina a vapor.

Lembrarei, ainda, que o magnetizador Alphonse Cahagnet obteve, com a sonâmbula clarividente Adèle Maginot, longa série de verdadeiros episódios de identificação de pessoas mortas, sendo de notar que essas manifestações se revestiram de tal importância, que Frank Podmore resolveu sobre elas fazer um longo estudo, que fez transcrever no Proceedings of the Society for Psychical Research.

Lembrarei, mais, que o Dr. Charpignon, no seu livro Psysiologie, Médecine et Métaphysique du Magnétisme, na página 120, escreveu:

“A doente se encontra – quero dizer, parece encontrar-se – em comunicação com uma entidade que ninguém vê, ninguém ouve, ninguém toca e que, no entanto, somos quase levados a crer que fala e responde. O primeiro desses factos é extraordinário, o segundo, atordoante!”

E na página 363:

“O primeiro paciente magnético que observámos nunca respondia a qualquer das nossas perguntas sem primeiro dizer: “Vou consultar o outro.” Perguntámos quem era esse outro e foi-nos respondido: “É o Espírito encarregado de me guiar, de me esclarecer.” E de facto esse paciente adquiria, em estado de sonambulismo, faculdades e conhecimentos que lhe eram inteiramente estranhos, quando em estado normal e, que não podiam provir senão de uma entidade superior.”

Dr. Ricard, no seu Traité du Magnétisme Animal, pág. 275, diz:

“A sonâmbula que primeiro me ofereceu alguma coisa digna de nota, nesse género, foi Adéle Lefrey. Atingira ela o termo de sua cura, quando, por entre novas indicações terapêuticas, me disse, em tom de chamar à atenção:

– Ouvis bem, o que ele me ordena.

– Mas quem? – perguntei-lhe. – Quem o ordena?

– Ele, não o ouvis?

– Não, nada oiço, nem vejo.

– Também é natural – retorquiu – dormis; quem está acordada sou eu...”

E na página 282, o Dr. Ricard pergunta à sonâmbula:

“– Recordai-vos do que ontem me dissestes?

– Sim.

– Mas quem é essa personagem misteriosa?

– É o meu anjo da guarda... Vede, ele conversa agora com o vosso...

– Com o meu! Porventura, está o meu anjo assim de vós tão perto?

– Sim, mas ele vos está ainda mais próximo e, apesar de não o verdes, esclarecido sois pelos seus conselhos.”

Lembrarei, enfim, que na La Revue Spirite, número de Outubro, 1925, expus o interessante caso do Dr. Larkin que, tendo levado ao estado de sonambulismo uma jovem camponesa, com o fim de alcançar esclarecimentos sobre o diagnóstico de doentes seus, obteve uma longa série de manifestações da entidade de mortos que, na sua maioria, lhe eram desconhecidos. Delas colheu o Dr. Larkin elementos para ulteriores investigações que, revestidas do maior rigor, lhe trouxeram demonstrações irrefutáveis da autenticidade das personalidades que por essa forma se manifestam. Acabou por se convencer de que a sua sonâmbula recebia comunicações do mundo espiritual.

Não iremos mais adiante. Os exemplos apresentados bastam para destruir a primeira afirmativa do nosso autor, segundo a qual, não acreditando nos antigos magnetizadores em “um comércio possível entre os vivos e os mortos, essa descrença se transmitiu aos seus pacientes, que apresentaram todos os fenómenos metapsíquicos completamente desprovidos do carácter espírita”.

Dado nos foi ver, ao contrário, que não obstante as prevenções dos magnetizadores, os sonâmbulos da primeira metade do século passado viam os Espíritos dos mortos, com eles conversavam e disso produziam provas. Assim, pois, as conclusões pelo autor tiradas da inexacta afirmação feita caem irremissivelmente.

Ora, essas conclusões eram de grande importância, pois delas se podia depreender que, se os primeiros experimentadores do medianimismo moderno não houvessem acreditado nos “Espíritos”, os médiuns, como outrora os sonâmbulos, com os Espíritos nunca se teriam comunicado. Mas o que acabo de mostrar leva-nos, antes, a concluir que os médiuns, apesar de tudo, se comunicam com os “Espíritos”, como já os sonâmbulos da primeira parte do século findo o haviam feito, mau grado as prevenções dos magnetizadores. E se é verdade, como, de facto, é incontestável, que a circunstância assinalada por Sudre tivesse fundamento, viria admiravelmente confirmar o seu ponto de vista, sendo ela de natureza precisamente contrária à que ele lhe empresta, a conclusão se impõe no sentido exactamente oposto àquele a que havia chegado. Precisando melhor: a circunstância por Sudre assinalada, ao contrário de demonstrar que as personalidades medianímicas não passam do produto de uma sugestão combinada com a clarividência do médium (prosopopese-metagnomia), vem justamente provar que os antigos sonâmbulos se comunicavam com os mortos, apesar das prevenções, completamente contrárias, dos seus magnetizadores, o que constitui prova admirável em favor da existência dessas personalidades como seres estranhos aos sonâmbulos, assim como da realidade análoga daqueles que, na actualidade, se manifestam através dos médiuns.

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(Nesta obra, de natureza puramente científica, Bozzano faz uma minuciosa análise com o objectivo de refutar a obra anti-espírita de René Sudre, “Introdução ao Estudo da Metapsíquica". Desenvolvendo argumentação insofismável sobre aparições junto ao leito de morte, fenómenos de materialização e outros, o autor demonstra que a “prosopopese-metagnomia”, hipótese fundamental sustentada por Sudre, para explicar as manifestações metapsíquicas de efeitos inteligentes, de modo algum atinge o fim que teve em vista o autor.)


Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A propósito da Introdução à Metapsíquica Humana, Refutação do livro de René Sudre / Título Original em Italiano; Ernesto Bozzano - Per la difesa dello spiritismo (A proposito della "Introduction à la Métapsychique Humaine" di René Sudre) Società Editrice Partenopea, Napoli (1927). – A propósito da “Introdução à Metapsíquica Humana"; I – O magnetismo animal e os fenómenos espíritas, 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)