Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

o grande desconhecido ~


Os três corpos do homem ~

O problema dos corpos humanos tem longa e confusa tradição, baseada em revelações antigas e entremeada de superstições populares. Na tradição cristã firmou-se a teoria dos dois corpos referidos pelo Apóstolo Paulo na 1ª Epistola aos Coríntios: o corpo animal ou material e o corpo espiritual. Kardec pesquisou o assunto com a insistência e o rigor que o caracterizavam e chegou a conclusões objectivas de que o homem é dotado de três corpos, que são:

a) o corpo animal ou material mencionado por Paulo, que é o corpo orgânico sujeito à destruição pela morte;

b) o corpo espiritual referido por Paulo, que Kardec verificou ter uma constituição semi-material, com energias espirituais e materiais em mistura, destinado a ligar a alma ao corpo e a servir à ressurreição logo após a morte; esse corpo não está sujeito à morte material, mas à transformação após a morte para servir na ressurreição, e sujeito à destruição por abusos do espírito no plano espiritual inferior e às modificações exigidas por futura reencarnação, para se adaptar a novas formas e a novas determinações genésicas e hereditárias;

c) o corpo espiritual superior, desprovido de matéria, em que o espírito, livre daquele envoltório, vive a vida eterna de que falam as religiões; esse corpo é inacessível à nossa percepção, a não ser como uma centelha etérea, segundo a expressão Kardeciana; é o corpo natural do espírito no seu estado de pureza espiritual e só pode ser usado pelas entidades que atingiram a finalidade das reencarnações, deixando o plano da erraticidade.

A trindade humana, constituída de EspíritoPerispírito e Corpo, realiza assim a transformação de que trata o Apóstolo Paulo, atingindo a síntese suprema da evolução nos corpos inferiores. Dessa maneira, o corpo espiritual superior reflecte na sua estrutura angélica real e indestrutível:

a) A Trindade Universal de Deus, Espírito e Matéria;

b) A Trindade doutrinária de Ciência, Filosofia e Religião.

São essas as duas Trindades Superiores, referentes à concepção do Cosmos e à concepção da Doutrina Espírita.

Temos assim a comprovação, no mais alto plano da realidade espiritual, do princípio doutrinário enunciado em O Livro dos Espíritos: Tudo se encadeia no Universo.

Por outro lado, essa comprovação da eterna sequência das coisas e dos seres revela-nos a integração do Espiritismo na realidade cósmica, na correspondência perfeita da Realidade Total com a fragmentária realidade parcial das coisas finitas e dos seres perecíveis, que na verdade não perecem nunca, passando apenas pela lei universal da metamorfose, que a tudo impulsiona sem cessar nas linhas ascensionais da transcendência. Ela nos revela, também, a perenidade da Doutrina Espírita cujas marcas, segundo Kardec, são encontradas em todas as fases a-históricas e históricas da evolução terrena.

Esta concepção cósmica do Espiritismo, que ressalta dos textos de Kardec, como vimos, confirma a Doutrina das Ideias, de Platão, que nos apresenta o mundo fragmentário da matéria como reflexo estilhaçado da Realidade Superior, una e perfeita na Mente de Deus. Platão é o reflexo do pensamento de Sócrates, e Kardec considerou a ambos como precursores da Ideia Cristã. Na actualidade temos a mesma confirmação no rápido e espantoso desenvolvimento da Ciência terrena, que comprovou no nosso tempo a realidade do Espiritismo com a descoberta dos fenómenos paranormais, da plenitude do Universo (onde o nada não existe e o nada não é nada, segundo a expressão de Kardec), a existência das múltiplas dimensões da Realidade, na natureza subjectiva e portanto espiritual do homem na existência, a descoberta tecnológica do perispírito (corpo bioplásmico), a interpenetração dos mundos num mesmo espaço, o poder assombroso do pensamento, a possibilidade de invasão do Cosmos por naves e astronautas e assim por diante.

A luta contra a realidade, na defesa de ilusões teológicas e ideológicas, não cessou e até mesmo se acirrou. Recursos escusos do meio científico, do campo religioso e de certos Estados, cujas estruturas política e social repousam em pressupostos do século passado, são mobilizados contra essas conquistas, num desesperado anseio de diminuir-lhes o alcance e a significação. Na URSS e sua órbita a questão é de sufocar a qualquer custo todas as possibilidades científicas que se oponham ao materialismo de Estado. Nos Estados Unidos e outras potências ocidentais são os interesses políticos e eleitorais que se mobilizam na defesa dos interesses religiosos de igrejas e seitas retrógradas, apegadas a princípios arcaicos, envelhecidos de quatro a seis mil anos, para asfixiar ou minimizar as novas descobertas. Chega-se ao ponto, em instituições científicas ou para-científicas, de tentar encobrir a realidade do plasma físico, de que se compõe o corpo bioplásmico, com o frágil disfarce do efeito corona. Os valores falhados dos dogmas religiosos e os interesses materiais imediatos dos clérigos e dos seus rebanhos fanáticos são super-postos à verdade crua e ardente das pesquisas científicas, para salvaguarda das estruturas simoníacas das instituições religiosas, em que dormem à tripafórra os devoradores de dízimos estabelecidos pelos rabinos judeus no Templo de Jerusalém, numa civilização agrária e pastoril. A estrutura do Estado é também ameaçada pelo fantasma de matéria radiante do corpo bioplásmico, que afecta poderosos interesses criados, tradições invioláveis, a glória de messias e profetas que descobriram tábuas de ouro nas montanhas provando que o Cristo pregou em terras da América, semeando verdades mirabolantes para os apaches de cara pálida e os fogosos peles-vermelhas de penachos coloridos.

Este quadro grotesco da realidade mundial no nosso tempo não precisa de pinceladas à Van Gogh para torná-lo mais forte e impressionante. Basta a sua realidade nua para mostrar a rede de mentiras em que caímos no passado, com as falsas culturas religiosas que, nascida das entranhas do paganismo ingénuo, da idolatria supersticiosa e do fabulário mitológico, se revigorou nas estruturas sócio-económicas do profissionalismo religioso.

As mesmas forças que se opuseram, de maneira agressiva e violenta, ao desenvolvimento das pesquisas científicas no Renascimento, continuam a agir, agora de maneira mais subtil e por isso mais profunda, mais penetrante e ameaçadora, contra o avanço e desenvolvimento da Ciência no nosso tempo. Claro que essa batalha inglória será vencida pela simples evidência da realidade, que nunca pediu nem pede licença aos homens para aparecer e impor-se. Mas essas forças retrógradas conseguem retardar a libertação do homem, num mundo em que a maioria absoluta da população não tem possibilidade de penetrar nos segredos da Ciência, nem tempo disponível para tentar essa façanha, permanecendo à margem da cultura do século e por isso mesmo obrigada a contentar-se com as crenças e superstições de um passado remoto.

A constituição semi-material do perispírito, segundo Kardec, foi confirmada pela descoberta russa de que o corpo bioplásmico é formado de plasma físico. Para os russos, isso seria uma prova favorável à ideologia do Estado, mas a prova seguinte, de que esse corpo sobrevive à morte do corpo, escapando às possibilidades tecnológicas de sua captação visual ou fotográfica, incidiu na condenação materialista, por atentar contra o dogma do homem-pó. É essa a mais espantosa contradição do nosso século. A própria potência que enviou à órbita da Terra o primeiro Sputnik e tanto exalta o poder do homem, negando a existência de Deus, nega ao homem e à sua personalidade, a sua inteligência criadora, o direito que a Ciência concede a todas as coisas e seres: o da continuidade de após o acidente natural da morte. Tudo morre e renasce, menos o homem, a mais complexa e perfeita organização psico-biológica, com o mais poderoso cérebro e a mais penetrante das mentes.

A ojeriza (*) materialista é contra a teoria da sobrevivência individual. Tudo morre e renasce, segundo eles, revertendo-se ao pó para novas elaborações ocasionais. Os valores espirituais ficam na dependência exclusiva dos caprichos de algum alquimista medieval que nunca morreu. Não obstante, sustentam a teoria da evolução contínua, incessante e criadora, que o homem pode controlar. Há tantas contradições nas doutrinas religiosas do mundo, quanto nas doutrinas materialistas. Por isso, onde uma delas domina, os cientistas e pensadores sinceros e objectivos, que buscam a realidade, experimentam no nosso século as mesmas discriminações, condenações e expurgos. A realidade da sobrevivência individual do homem, provada na Universidade de Kirov, deslumbrou os seus descobridores e revelou as possibilidades inesperadas que pode abrir para a evolução terrena, mas os comissários do povo, agindo contra a vontade generalizada de um povo de intensa e profunda tradição espiritual, rejeitaram a descoberta em nome do povo. Mas a verdade é que a explosão mediúnica no mundo não pede licença a comissários, nem a padres, pastores ou cientistas para continuar a existir.

A luta do homem para vencer a sua esquizofrenia, restabelecendo a unidade do espírito perante a realidade material do mundo, vem das selvas aos nossos dias. A razão humana, servida pela experiência, venceu os conflitos do caos aparente da Natureza e estabeleceu as conexões necessárias entre não física e a realidade física para dominar o caos. Todas as filosofias e todas as ciências se desenvolvem nesse sentido, mas o chamado Materialismo Científico ergueu a sua barreira, juntamente com a barreira teológica – ambas formadas de dogmáticas exclusivistas – para impedir a ferro e fogo que o homem alcance o real. Hoje, para que a verdade se estabeleça na cultura humana, é necessário que o Espiritualismo formalista e o Materialismo Científico se neguem a si mesmos, revertendo-se na síntese hegeliana de uma cultura objectiva e aberta.

Ernst Cassirer, no seu ensaio sobre A Tragédia, da Cultura, cujo desenvolvimento superou a capacidade humana de dominá-la, esqueceu-se deste problema fundamental que Kardec já havia colocado há mais de um século. A grande tragédia cultural do nosso tempo não é o acúmulo cada vez maior de conhecimentos e a atomização das especialidades, mas a impossibilidade material de vencer as barreiras dogmáticas, cada vez mais reforçadas pelos interesses criados nos dois campos dogmáticos.

Os três corpos do homem têm funções gerais e específicas, desdobrando-se em planos sucessivos de manifestação, a partir do contexto humano. Vejamo-los nesse encadeamento em que eles parecem um foguete espacial, indo da Terra ao Infinito, no abandono sucessivo dos estágios inferiores:

a) o corpo material é o que define, na concepção terrena, o que geralmente se considera como a condição humana. Provindo da evolução animal, Paulo teve razão em chamá-lo corpo animal. Todo o seu sistema psico-biológico é a resultante do processo evolutivo terreno. Todos os seus instrumentos de captação da realidade funcionam em ritmo de estímulo e resposta. A sua razão constitui-se de categorias formadas na experiência. Não obstante, o seu espírito supera esse condicionamento através de percepções extra-sensoriais, de intuições imediatas e globais de um conjunto gestáltico que vai arrancando-o do imediatismo vivencial para lançá-lo no plano existencial consciente. A organização animal do corpo é mantida e dominada pelo espírito, onde razão e consciência se desenvolvem paralelamente. A evolução de um homem verifica-se pelo desenvolvimento da razão e da consciência num plano superior de critério cada vez mais espiritualizado. O homem se liberta de suas raízes animais e prepara-se para a transcendência. Frederic Myers, psicólogo inglês dos fins do século passado, considera que o inconsciente humano é uma segunda consciência, a que chama de subliminar. Enquanto a consciência subliminar detém as faculdades necessárias à vida terrena, a consciência supra-liminar auxilia aquela, através de emersão de ideias, sensações profundas e intuições, a desenvolver-se no plano extra-sensorial. É da consciência supra-liminar que provêm as captações extra-sensoriais. É nela que encontramos a fonte da genialidade e dos fenómenos paranormais. Essa consciência pertence ao perispírito.

b) O perispírito, corpo espiritual ou corpo bioplásmico, possui, na sua estrutura extremamente dinâmica, os centros de força que organizam o corpo material. É o modelo energético previsto com grande antecedência por Claude Bernard. Os pesquisadores russos compararam esse corpo, visto através das câmaras Kirlian de fotografia paranormal, em conjugação com o telescópio electrónico de alta potência, a um pedaço de céu intensamente estrelado. Esse é o corpo da ressurreição espiritual do homem, dotado de todos os recursos necessários para a vida depois da morte. Esse corpo de plasma físico e plasma espiritual vai perdendo os seus elementos materiais na vida espiritual, na proporção exacta da evolução do espírito. Nas pesquisas russas verificou-se que, na produção de fenómenos mediúnicos de movimentação de objectos sem contacto, levitação e transporte, o elemento empregado é o plasma, o que confirma as pesquisas de Richet e de Notzing sobre o ectoplasma. Essa é uma das razões por que esses fenómenos só são produzidos por Espíritos inferiores, que Kardec comparou a carregadores do espaço ao serviço de entidades superiores. Os exames de porções de ectoplasma em laboratório revelam apenas a constituição física do mesmo. O elemento mais importante e vital do ectoplasma é a energia espiritual, que não permanece nas porções colhidas pelos pesquisadores. Nesse corpo, segundo os pesquisadores russos, as condições de doença e saúde e a previsão de doenças nas plantas, nos animais e no homem são feitas com grande precisão através das variações de cores do plasma e um sistema de sinais coloridos ainda em estudo.

c) O corpo espiritual superior destina-se à vida nos planos mais elevados do Mundo Espiritual. Não se pode considerá-lo como um instrumento de comunicação, pois constitui-se do próprio espírito na sua exterioridade natural. Kardec assinala que esses Espíritos Puros não têm mais nada com a matéria, nem a matéria os afecta. Mas como têm forma e são criaturas humanas elevadas ao máximo grau da perfeição espiritual que os homens podem atingir, o seu corpo é de luz. Na verdade, não dispomos de palavras nem de ideias para imaginá-los ou descrevê-los. No seu plano superior não veríamos nem sentiríamos nada. No tocante a eles, a pesquisa de Kardec reduziu-se a diálogos com os seus instrutores. Por outro lado, socorreu-se da lógica, como sempre fez, para dar as informações que encontramos na Escala Espírita.

Kardec considera esses Espíritos Puros como os Ministros de Deus, através dos quais a administração de toda a Realidade Cósmica se processa em todos os sentidos. Quando nos conhecermos a nós mesmos, segundo a recomendação do Oráculo de Delfos a Sócrates, poderemos imaginar o que são essas criaturas e como vivem e agem no Inefável, segundo a concepção pitagórica. Antes disso, é inútil nos esforçarmos para defini-las. Só com o desenvolvimento de toda a nossa perfectibilidade possível, como queria Kant, conseguiremos obter os parâmetros capazes de nos dar uma pálida visão dessa vida superior. Kant referia-se à perfectibilidade possível na vida terrena. Acima desta existem os planos espirituais progressivos e, depois deles, o plano da Angelitude, que é precisamente o dos Espíritos Puros.

Não podemos atrever-nos a solucionar esse problema, cujos dados nos escapam. Há questões que não podem ser tratadas no nosso estágio evolutivo. Mas já é importante possuirmos algumas informações provindas de entidades que passaram pelos testes rigorosos de Kardec. O Espírito Puro é para nós uma abstracção, como abstracção também é a Matemática, de que nos servimos para medir e pesar o mundo. O que precisamos evitar, no estudo dos corpos do homem, é o fascínio da imaginação, que costuma levar-nos além de toda a realidade possível.

Várias instituições espiritualistas do mundo criaram complicadas teorias sobre os corpos do homem, chegando a dar-lhes o número atordoante e cabalístico dos véus de Isis. No próprio movimento espírita, que devia aprofundar o conhecimento da sua própria doutrina, ainda tão mal conhecida e pior compreendida, pretensos mestres introduziram conceitos estranhos sobre esse problema. Kardec negou-se a estas fascinações do maravilhoso, lutou para afastar da mente humana os resíduos mágicos do passado, dando à Doutrina Espírita a clareza positiva da Ciência, sempre apoiado na razão e na pesquisa. O seu esquema tríplice dos corpos do homem é uma síntese luminosa de todos os esforços da Humanidade para compreender essa questão de importância fundamental. Não podemos deixar-nos levar pela vaidade ingénua e fátua de aparecer como sábios perante as multidões incultas, vangloriando-nos como pavões do colorido fictício da nossa plumagem. O Espiritismo busca a verdade pura, que é sempre simples, pois não necessita de visagens para impor-se às mentes perquiridoras e sensatas. Deixemos de caudas brilhantes fascinando os imaturos e tratemos de amadurecer no exame objectivo da realidade acessível ao nosso conhecimento imediato. Aprendamos a distinguir a pureza lógica do Espiritismo das fábulas religiosas e espiritualistas que se cevam, através dos milénios, no gosto do homem pelo maravilhoso. Não há maravilha maior do que a da Obra de Deus na sua realidade pura. Qual o fabulário mitológico que pode sobrepor-se ao mistério e à beleza de um só microscópico sistema solar atómico ou de uma folha verdejante de relva brotando entre as pedras da calçada? O tempo das figurações simbólicas já passou, para a Humanidade Terrena, como a dos Contos da Carochinha já passou para as crianças de hoje. Elas mesmas, as crianças, exigem a verdade das coisas naturais em substituição às fantasias imaginosas do passado. Os espíritas não têm o direito de menosprezar as lições do Espírito de Verdade, ministradas por Kardec, em favor de mentiras ridículas que vão buscar poeira de civilizações mortas, cujo próprio desaparecimento atesta que se esgotaram no tempo. Tenhamos a humildade de nos contentar com os nossos três corpos, ao invés de buscarmos em ruínas milenares os corpos das múmias faraónicas soterradas na areia. Estudemos o nosso passado de ilusões e atrocidades para nos corrigirmos no presente, mas não tentemos colocá-lo acima da realidade límpida e positiva que o Espiritismo nos proporciona.

/…
(*) Sentimento de má vontade, aversão, antipatia gerado pela intuição, por uma percepção, um ressentimento.


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XIV – Os três corpos do homem, 14º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

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