Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 29 de dezembro de 2019

agonia das religiões ~


A Dúvida e A Certeza

A dúvida é uma encruzilhada nos caminhos da razão. Quando o pensamento se lança na busca de um objecto e depara com dois caminhos divergentes, pode ficar indeciso. Essa indecisão é a dúvida. Para Sexto Empírico a dúvida é a hesitação entre afirmar e negar, o que vale dizer entre aceitar e rejeitar. Descartes fez da dúvida a condição primeira da busca da verdade, considerando-a como uma suspensão do juízo para se verificar se ele está certo ou errado. Para John Dewey a dúvida nasce de uma situação problemática estimulando a pesquisa. Dessa maneira, Dewey confirma a posição de Descartes, que iniciou a filosofia moderna com a prática da dúvida metódica. Mas como a dúvida criou muitas dificuldades ao pensamento dogmático, as religiões dogmáticas acabaram por condená-la como de origem diabólica. A frase de Tertulianocredo quia absurdum (creio mesmo que absurdo) teve um curso longo no combate às heresias. Como os dogmas eram considerados de origem divina, pontos fundamentais da revelação feita por Deus aos homens, estes não tinham o direito de duvidar, mesmo que os dogmas fossem aparentemente absurdos.

Ainda hoje, essa posição é, comum em numerosas seitas e religiões, até mesmo entre pessoas cultas. Alega-se que a sabedoria humana é loucura para Deus, como Paulo afirmou, o que vale dizer que a sabedoria divina pode parecer loucura para os homens. No Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade. Kardec a aconselha como método de controlo das manifestações mediúnicas e do estudo dos princípios doutrinários. Tendo mostrado que os espíritos são criaturas humanas desencarnadas, libertas do corpo material pela morte, e que muitos deles se manifestam para sustentar ainda opiniões erradas que defendiam na Terra, aconselha a análise constante e o exame atencioso das manifestações, que devem ser rejeitadas quando revelarem conceitos absurdos.

A crítica torna-se, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom senso para criticar. Descartes afirmou que o bom senso é a coisa mais bem repartida do mundo, mas advertiu que o emprego do bom senso depende da boa orientação do entendimento. Kardec dá, em toda a sua obra, instruções e exemplos para o uso do bom julgamento e aconselha a consulta, em casos de dificuldade, de pessoas reconhecidamente capazes de resolver problemas com lucidez. Não havendo no Espiritismo dogmas de fé, tudo pode ser apreciado e discutido em termos de bom senso ou boa razão. Descartes aconselhava a se evitarem dois elementos perigosos ao raciocínio, que são o preconceito e a precipitação. Kardec acrescenta a necessidade de vigilância no tocante à vaidade humana, que leva pessoas cultas ou incultas a se considerarem capazes de reformulações doutrinárias com base apenas nas suas opiniões pessoais.

Estabelecendo o consensus gentium, de Aristóteles, como regra para a aceitação de revelações espirituais, não o fez no sentido aristotélico do termo, mas no sentido espiritual, com o nome de consenso universal. A aplicação desse consenso não implica a aceitação da vox populi ou da opinião das gentes como verdade, mas apenas a coincidência de manifestações mediúnicas sobre os mesmo tema, para médiuns diversos, desconhecidos entre si, em locais diversos e ao mesmo tempo. É esse um meio de controlo a ser usado sob as condições de verificação racional do tema e de confronto do mesmo com os conhecimentos já adquiridos no meio espírita e na cultura geral. Levantou, assim, uma barreira à autoridade individual de um médium isolado que, por mais famoso e seguro que tenha sido nas suas actividades, nem por isso está livre de se deixar empolgar por ideias erróneas. De um critério de verdade que era evidentemente de natureza opiniática, Kardec extraiu uma norma inegavelmente válida para facilitar o uso do bom senso pelos espíritas.

A necessidade de certeza na orientação do conhecimento, num mundo em que tudo se passa no plano das relações, exige um critério científico de avaliação dos dados obtidos na prática doutrinária. Ao não aceitar a revelação espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-a ao controlo da razão, Kardec não violentou a intenção dos Espíritos superiores, que desejavam dele precisamente essa atitude. Tanto assim que desde o inicio o estimularam nesse caminho, esclarecendo que a Humanidade terrena atingira a maturidade suficiente para se libertar do ciclo de revelações pessoais e locais, dadas sempre de maneira mística, através de um mestre, profeta ou Messias, numa determinada região e a um determinado povo. A última dessas revelações havia sido a do Cristo, que apesar de pessoal e local já se abria ostensivamente para a universalidade, escandalizando os judeus apegados a um sócio-centrismo milenar. A Terra entrava numa fase nova de sua evolução; as civilizações isoladas deviam fundir-se através de processos mais amplos e eficientes de comunicação; o mundo greco-romano chegava ao fim objectivado pelo seu desenvolvimento; um longo e doloroso processo de fusão das suas conquistas no campo do pensamento, do direito, da justiça e da espiritualidade deveria iniciar-se no caldeirão da História que foi a Idade Média, segundo a concepção de Dilthey. Essa fusão resultaria na Idade da Razão com o Renascimento, preparando o desenvolvimento da Era da Ciência e da Tecnologia, que levaria o mundo a um progresso cada vez mais acelerado. A influência do Cristianismo impregnaria todas as latitudes do planeta, arrancando da apatia nirvânica as grandes civilizações orientais e obrigando-as a seguir os padrões ocidentais. Era necessário que a passividade mística, fosse substituída pela actividade racional, na luta dos homens em busca da compreensão de suas próprias responsabilidades, na direcção da vida humana.

Cumprida essa programação, a Terra já estava, em pleno século XIX, em condições de receber as luzes renovadoras de uma doutrina de unificação espiritual, capaz de guiá-la aos objectivos mais elevados da sua integração na comunidade cósmica. Muitas inteligências terrenas, aturdidas com as inquietações do nosso tempo, com as crises ameaçadoras de uma fase de transição acelerada, e portanto violenta, perguntam se não estamos errados ao aceitar essa previsão histórica. O mesmo aconteceu na fase de desenvolvimento do Cristianismo. Realmente, a Terra não parece ainda preparada para o salto cósmico que já vem tentando. Mas podemos notar, ao longo da História, que a técnica divina parece apoiar-se num princípio de tensão-máxima para nos fazer avançar. A preguiça humana, a tendência à acomodação, o apego à vida como ela é, só podem ser removidos por meios compulsórios. O chicote do Templo tem de ser vibrado contra os vendilhões que o transformam em mercado, que não pensam em Deus mas apenas no dinheiro. Só pelo impacto da dor o homem se liberta das suas mazelas para encontrar a vida em abundância de que Jesus falou. Os anos, os séculos, os milénios passam rápido na direcção da eternidade sem limites. Não podemos fermentar na Terra indefinidamente, como o faríamos se as leis divinas não nos forçassem a buscar com maior rapidez os objectivos reais da nossa existência.

Kardec viu tudo isso com extrema lucidez, como podemos constatar na leitura das suas obras. Por isso não converteu o Espiritismo numa nova religião estática, segundo o conceito de Bergson, mas ligou-o a todos os campos da cultura para que possa agir como uma religião dinâmica, aquela religião em espírito e verdade de que Jesus falou à mulher samaritana. Não há razão nenhuma para que a religião continue como um departamento estanque e privado, condicionada em sistemas arcaicos, marginalizada no campo cultural em favor de interesses sectários. A religião é um dos campos vitais da cultura e deve integrar-se nela em plenitude. Os seus princípios não podem manter-se alheios ao progresso geral. Por isso, o Espiritismo fundou a Ciência do Espírito, que agora está sendo confirmada pelas conquistas mais recentes das ciências da matéria. Chegámos tarde à complementação do fiat da criação, mas estamos agora no momento em que o espírito se liga à matéria no campo das concepções humanas.

certeza, no nosso mundo, nunca pode ser absoluta. É também relativa, mas corresponde ao máximo possível de exactidão. Esse máximo é indispensável em todo o campo do conhecimento. Não poderíamos ficar no terreno das hipóteses inverificáveis ao tratar de assuntos tão graves como a origem do homem, a sua natureza íntima e o seu destino no sistema cósmico. Kardec, à maneira de Descartes, pôs em dúvida todo o conhecimento religioso. Os fenómenos espíritas, como ele mesmo observou, estavam na moda. Instigado por amigos que conheciam a sua capacidade científica, relutou a princípio – pois duvidara da veracidade desses fenómenos – mas acabou aceitando o convite para assistir a uma experimentação. Ali constatou a realidade, mas não aceitou a sua interpretação espiritual. Procurou explicar a chamada dança das mesas como possível efeito de forças conhecidas: a electricidade, a gravidade, o magnetismo, um suposto poder emanado das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante. Mas não ficou nas hipóteses. Pôs-se a pesquisar. O seu encontro com as meninas da família Boudin, uma de 14 e a outra de 16 anos, médiuns excelentes, permitiu-lhe uma série de experiências decisivas. Foi com elas que recebeu todo o texto de “O Livro dos Espíritos”. Pelas mãos dessas duas jovens nasceu o Espiritismo. E renasceu Allan Kardec, o druida das Gálias antigas, para substituir o Prof. Denizard Rivail (o seu nome verdadeiro) o discípulo emérito de Pestalozzi e sucessor do mestre no desenvolvimento da sua Pedagogia Filantrópica. Dali por diante, durante 15 anos, as pesquisas prosseguiram, 12 anos na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por ele fundada e dirigida. Nesse período de 15 anos Kardec elaborou os cinco volumes da Codificação do Espiritismo, três volumes de introdução à doutrina, um manual de introdução à prática mediúnica, numerosos artigos para a imprensa e os doze volumes da Revista Espírita, contendo em média 400 páginas cada volume.

Em todos esses trabalhos ele foi sempre orientado pelos Espíritos superiores, como se pode ver nas suas anotações em Obras Póstumas. E a sua conduta de pesquisador foi louvada pelo próprio Richet, o fisiologista do século, que discordava das conclusões de Kardec mas reconheceu, no seu Tratado de metapsíquica, o valor do homem que iniciara as Ciências Psíquicas na França e no Mundo. Partindo da dúvida, Kardec chegara à certeza psicológica da sobrevivência do homem à morte corporal. Richet fizera um caminho paralelo, o da sua especialidade científica, para chegar à certeza fisiológica dos fenómenos espantosos de materialização. Depois dele, outros muitos comprovariam a sua descoberta mas não ficariam no meio do caminho. Avançariam como Crookes, Notzing, Zollner, Ochorowicz, Geley, Osty, Aksakov, até à certeza final de Kardec. Estava aberta nas Ciências a fronteira da imortalidade. Dali em diante, os que pretendiam reduzir o homem a ossos e cinzas lutariam sem cessar – até mesmo nas religiões – contra a maior e mais fecunda certeza científica da cultura terrena. Do Espiritismo nasceram todas as ciências do paranormal, até a Parapsicologia contemporânea. Mas os inimigos da certeza ainda continuam, nos nossos dias, diante da evidência fulminante das últimas descobertas científicas – físicas, biológicas, psicológicas e astronáuticas –, a insuflar com as suas bochechas em fúria o fantasma superado da dúvida anti-metódica. Fingem não perceber que esse fantasma é um balão furado com o pavio queimado.

A superação da dúvida no Espiritismo não se fez através dos métodos subjectivos da meditação religiosa e do êxtase místico, mas do método científico de pesquisa. Foi o que Richet reconheceu e louvou em Kardec, como se vê logo no início do seu Tratado de Metapsíquica. Integrado na tradição da busca metodológica, que vinha do século XVI, com a revolução cientifica de Bacon e Descartes, Allan Kardec encarou o problema espiritual de maneira objectiva e, numa posição tipicamente existencial, criou o método apropriado à pesquisa dos fenómenos espíritas. Ao contrario do que alegam até hoje os seus contraditores, demonstrou de maneira exaustiva que os fenómenos espíritas podem ser repetidos quantas vezes for necessário para a confrontação dos resultados experimentais, como os grandes cientistas da época iriam comprovar logo em seguida e como as pesquisas parapsicológicas actuais uma vez mais comprovaram e demonstraram.

Essa subversão metodológica no campo do conhecimento espiritual, até então submetido aos princípios da fé, despertou violenta reacção que ainda hoje não se extinguiu. Kardec partia do homem vivo, do homem no mundo, da criatura de carne e osso para elevar-se a Deus através da indução lógica, desprezando os processos dedutivos da tradição. Atrevia-se a investigar o espírito dos mortos e dos vivos com a mesma naturalidade, sustentando que a alma nada mais era do que o espírito que anima um corpo. E ousava dar uma nova explicação da Génese que incluía a criação do homem por Deus como um facto natural, dialecticamente explicável. A morte perdia o aspecto misterioso alimentado pelas religiões, os videntes e profetas eram considerados como criaturas em que uma faculdade humana natural, a mediunidade, se havia desenvolvido de maneira mais intensa.

Pacientes e incessantes pesquisas – e não revelações místicas – levaram Kardec à descoberta científica da natureza espiritual do homem. E a prova de que realmente o levaram, foi dada posteriormente pelas pesquisas científicas desencadeadas em todo o mundo e hoje confirmadas até mesmo pelo avanço das investigações materiais, por cientistas modernos que alargam a dimensão das Ciências. É assim que a dúvida sobre a continuidade da vida, após a morte, foi vencida pela certeza no campo das investigações espíritas. As religiões que ignorarem este facto culminante da evolução humana na Terra acabarão asfixiadas, por falta do oxigénio da verdade, nos seus círculos estreitos de fanatismo e exclusivismo. Não há somente crise nas religiões, há sinais evidentes de agonia.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 9 – Dúvida e Certeza, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

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