Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*)
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographi-ques) (I)

~ O espaço e o tempo 🌈

  Têm-se dado várias definições de espaço; a principal é esta: o espaço é a extensão que separa dois corpos. De onde certos sofistas deduziram que onde não houver corpos, não haverá espaço; foi no que se basearam os doutores em teologia para estabelecer que o espaço era necessariamente finito, alegando que corpos limitados num certo número não poderiam formar uma sucessão infinita; e que onde os corpos parassem, o espaço também pararia. Definiu-se também o espaço: o lugar onde os mundos se movem, o vazio onde a matéria age, etc. Deixemos nos tratados onde repousam todas estas definições que não definem nada.

 O espaço é uma dessas palavras que representam uma ideia primitiva e axiomática, evidente por si mesma, e as diversas definições que lhe podemos dar só servem para a obscurecer. Sabemos todos o que é o espaço e eu só quero estabelecer a sua infinidade para que os nossos ulteriores não tenham qualquer barreira a opor-se às investigações da nossa maneira de ver.

 Ora, digo que o espaço é infinito por ser impossível imaginar-lhe um limite e que apesar da dificuldade que temos em conceber o infinito, é-nos no entanto mais fácil viajar eternamente no espaço, em pensamento, que pararmos num sítio qualquer para além do qual não encontrássemos mais extensão a percorrer.

  Para imaginarmos, tanto quanto o permitem as nossas faculdades da Terra, perdida no meio do infinito, em direcção a um ponto qualquer do Universo e isto com a velocidade prodigiosa da faísca eléctrica que percorre milhares de milhas em cada segundo, mal tivéssemos saído deste globo, tendo percorrido milhões de léguas, encontrávamo-nos num sítio de onde a Terra já só nos aparecia com o aspecto de uma pálida estrela. Um instante depois, seguindo sempre a mesma direcção, chegávamos às estrelas longínquas que mal se avistam da nossa estação terrestre; e daí, não só a Terra estaria completamente perdida para o nosso olhar nas profundezas do céu como também o vosso próprio Sol no seu esplendor estaria eclipsado pela extensão que nos separa dele. Animados sempre com a mesma rapidez do relâmpago, atravessávamos estes sistemas de mundos à medida que íamos avançando na vastidão, ilhas de luz etérea, vias estelares, paragens sumptuosas onde Deus semeou mundos com a mesma profusão com que semeou as plantas nas pradarias terrestres.

 Ora, há só alguns minutos que caminhamos e já centenas de milhões e milhões de léguas nos separam da Terra, milhares de mundos nos passaram debaixo dos olhos e, no entanto escutai! Na realidade, não avançamos um único passo no Universo

 Se continuarmos durante anos, séculos, milhares de séculos, milhões de períodos cem vezes seculares e incessantemente com a mesma velocidade do relâmpago, não teremos avançado mais! E isto seja qual for o lado para que vamos e em direcção seja a que ponto for a partir deste grão invisível que deixámos e que se chama Terra.

 É isto o espaço!

 O tempo, tal como o espaço, é uma palavra definida por si mesma; fazemos dele uma ideia mais correcta estabelecendo a sua relação com o todo infinito.

  O tempo é a sucessão das coisas; está ligado à eternidade da mesma maneira que estas coisas estão ligadas ao infinito: imaginemo-nos na origem do nosso mundo, nessa época primitiva quando a Terra não balouçava ainda sob o impulso divino; numa palavra, no início da Génesis. Aí, o tempo não saiu ainda do misterioso berço da natureza; e nada pode dizer em que era de séculos nós estamos, dado que o pêndulo dos séculos não está ainda em movimento.

  Mas silêncio! A primeira hora de uma Terra isolada soa na sineta eterna, o planeta situa-se no espaço e imediatamente passa a haver noite e manhã. Para lá da Terra, a eternidade permanece impassível e imóvel apesar de o tempo avançar para muitos outros mundos.

  Na Terra, o tempo substitui-a e durante uma série determinada de gerações, contar-se-ão os anos e os séculos.

 Transportemo-nos agora até ao último dia deste mundo, à hora em que, curvada ao peso da vetustez, a Terra se apagará do livro da vida para não voltar a aparecer: aqui a sucessão de acontecimentos pára; os movimentos terrestres que mediam o tempo interrompem-se e o tempo acaba com eles.

  Esta exposição simples das coisas naturais que dão origem ao tempo, o alimentam e deixam que se acabe, basta para mostrar que, vista do ponto onde nos devemos situar para os nossos estudos, o tempo é uma gota de água que cai da nuvem para o mar e cuja queda é calculada.

  Quantos os mundos na vasta extensão, outros tantos tempos diversos e incompatíveis. Fora dos mundos, só a eternidade substitui estas sucessões efémeras e preenche pacificamente com a sua luz imóvel a imensidão dos céus. Imensidão sem limites e eternidade sem limites são estas as duas grandes propriedades da natureza universal.

  O olho do observador que atravessa, sem nunca encontrar paragem, as incomensuráveis distâncias do espaço e o do geólogo que recua para além do limite das eras ou que desce às profundezas da eternidade hiante, onde um dia se perderão, agem de acordo, cada qual na sua via, para adquirir essa dupla noção de infinito: extensão e duração.

  Ora, mantendo essa ordem de ideias, ser-nos-á fácil conceber que não sendo o tempo mais do que a relação das coisas transitórias e dependendo unicamente das coisas que se medem, se, tomando os séculos terrestres por unidades, os acumularmos milhares sobre milhares para com eles formar um número colossal, este número nunca representaria mais que um ponto na eternidade; tal como os milhares de léguas juntos aos milhares de léguas não passam de um ponto na vastidão.

  Assim, por exemplo, estando os séculos fora da vida etérea da alma, poderíamos escrever um número tão comprido como o equador terrestre e supormo-nos mais velhos esse número de séculos, sem que na realidade a nossa alma conte um dia a mais; e acrescentando a esse número infindável de séculos uma série extensa como daqui ao Sol de números semelhantes, mais consideráveis ainda, e imaginando-nos a viver durante a prodigiosa sucessão de períodos seculares representados pela adição de tais números, quando chegássemos ao fim, o amontoado incompreensível de séculos a pesarem-nos sobre as nossas cabeças seria como se não existissem: à nossa frente permaneceria sempre a eternidade inteira.

  O tempo não passa de uma medida relativa da sucessão das coisas; a eternidade não é susceptível de qualquer medida do ponto de vista da duração; para ela, não há começo nem fim: para ela tudo é presente.

  Se séculos de séculos são menos que um segundo em relação à eternidade, o que será a duração da vida humana?

                                                                                                           Espírito Galileu
  A matéria

  À primeira abordagem, nada parece tão profundamente variado, tão essencialmente distinto como várias substâncias que compõem o mundo. Entre os objectos que a arte ou a natureza nos fazem todos os dias passar debaixo dos olhos, existem dois que revelam uma identidade perfeita ou somente uma paridade de composição? Que diferença do ponto de vista da solidez, da compressibilidade, do peso e das propriedades múltiplas dos corpos, entre os gases atmosféricos e o fio de ouro; entre a molécula aquosa da nuvem e a do mineral que forma o esqueleto ósseo do globo! Que diversidade entre o tecido químico das plantas variadas que decoram o reino vegetal e o dos representantes não menos numerosos da animalidade sobre a Terra!

  No entanto, podemos colocar como princípio absoluto que todas as substâncias conhecidas e desconhecidas, por muito diferentes que pareçam quer do ponto de vista da sua constituição intima, quer da relação da sua acção recíproca, não são, de facto, mais do que modos diversos sob os quais a matéria se apresenta; em quantas variedades se transformou sob a orientação das inúmeras forças que a governam.

  A química, cujos progressos foram tão rápidos desde a minha época, quando os seus próprios adeptos a relegaram ainda para o domínio secreto da magia, esta nova ciência que podemos com razão considerar filha do século observador e como unicamente baseada, muito mais solidamente que as suas irmãs mais velhas, no método experimental; a química, digo eu, usou bem os quatro elementos primitivos que os Antigos tinham consentido em reconhecer na natureza; mostrou que o elemento terrestre não é mais do que a combinação de substâncias diversas variadas ao infinito; que o ar e a água são igualmente decomponíveis e produto de um certo número de equivalentes do gás; que o fogo, longe de ser, também ele, um elemento principal, não passa de um estado da matéria resultante do movimento universal a que está submetida e de uma combustão sensível ou latente.

  Em contrapartida, encontrou um número considerável de princípios até então desconhecidos que lhe pareceram formar, pelas suas combinações determinadas, os diversos corpos que estudou e que agem simultaneamente consoante certas leis e em certas proporções, nos trabalhos executados no grande laboratório da natureza, a estes princípios deu o nome de corpos simples, indicando com isso que os considerava primitivos e não decomponíveis e que nenhuma operação, até hoje, os pode reduzir a partes relativamente mais simples que eles mesmos (ii).

  Mas onde as apreciações do homem param, até ajudados pelos seus sentidos artificiais mais impressionáveis, a obra da natureza continua; onde a pessoa vulgar toma a aparência pela realidade, onde o prático levanta o véu e distingue o início das coisas, o olho do que conseguiu captar o modo de acção da natureza só vê nos materiais que constituem o mundo a matéria cósmica primitiva, simples e una, diversificada em certas regiões na época do seu nascimento, dividida em corpos solidários durante a sua vida, materiais desmembrados um dia no receptáculo da vastidão pela sua decomposição.

  Há questões assim que nós mesmos, espíritos apaixonados pela ciência, gostaríamos de aprofundar e sobre as quais só poderíamos emitir opiniões pessoais mais ou menos conjecturadas; sobre estas questões calar-me-ei ou justificarei a minha maneira de ver; mas esta não faz parte desse número. Aos que então se sentissem tentados a ver nas minhas palavras unicamente uma teoria fortuita, direi: Abarcai, se possível, num olhar investigador, a multiplicidade de operações da natureza e reconhecereis que, se não admitirmos a unidade da matéria, é impossível explicar não direi unicamente os sóis e as esferas, mas, sem ir tão longe, a germinação de uma semente na Terra ou a produção de um insecto.

 Se observamos uma tal diversidade na matéria é porque as forças que presidiram às suas transformações, as condições em que se produziram, sendo em número ilimitado, as combinações variadas da matéria só podiam ser elas mesmas ilimitadas.

 Portanto, quer a substância que encaramos pertença aos fluidos propriamente ditos, quer dizer aos corpos imponderáveis, ou quer esteja revestida com os caracteres e as propriedades ordinárias da matéria, só há em todo o Universo uma única substância primitiva: o cosmo ou matéria cósmica dos uranógrafos.

                                                                                                          Espírito Galileu
/…

(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)
(ii) Os principais corpos simples são: entre os corpos não metálicos o oxigénio, o hidrogénio, o azoto, o cloro, o carbono, o fósforo, o enxofre, o iodo; entre os corpos metálicos: o ouro, a prata, a platina, o mercúrio, o chumbo, o estanho, o zinco, o ferro, o cobre, o arsénio, o sódio, o potássio, o cálcio, o alumínio, etc. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo, A matéria (de 1 a 7), 23º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

domingo, 16 de agosto de 2020

o sentido da vida ~


Conclusões Práticas (II)

Quanto mais um homem se apega às suas ideias pessoais, aos seus caprichos, aos seus sistemas, mais se distancia dos outros, mais se afasta da vida. Quem não conhece esses temperamentos confinados, essas criaturas ranzinzas, cheias de “coisinhas”, que estão sempre de prevenção contra tudo e contra todos? Pois não são outra coisa senão indivíduos agarrados fortemente às raízes do barranco. Eles se defendem da vida e dos homens, querem viver a seu modo, fechados nos seus costumes. Quem quiser tirá-los para fora da cova mental e psíquica em que eles se meteram, por vontade própria, será considerado inimigo. No entanto, se os levarmos a um médico psiquiatra, este os considerará doentes, que de facto o são, e lhes receitará os meios necessários à libertação.

Na vida comum, fora desse terreno específico da patologia psíquica, nós também, quase todos, somos espíritos confinados, somos doentes, apegados à rotina de uma vida sem sentido, lutando contra as águas do rio da vida, que nos querem levar para a libertação. Se quisermos continuar nessa atitude, só poderemos aumentar os nossos sofrimentos e as nossas dores. A lição do Cristo se torna, pois, muito clara, diante dos ensinamentos espíritas. A vida não é fixa, não é sólida, não é estável. É fluente e mutável. Se quisermos salvar a nossa vida, fixando-nos nos nossos hábitos e nas nossas ideias, perdê-la-emos, porque o fluxo constante das coisas nos libertará de súbito; nos atirará para a frente, com ímpeto irresistível. Se, pelo contrário, concordamos em sacrificar a nossa vida por amor do Cristo, ou seja, trocar o nosso apego às pequeninas coisas da existência passageira pela compreensão das verdades eternas, por ele ensinadas; salvá-la-emos.

Compreendamos, pois, antes de tudo, a nossa verdadeira posição diante da vida, e procuremos nos adaptar a ela. Compreendamos que a vida é um fluxo, que temos de viver, não apegados aos nossos hábitos e sistemas, mas, pelo contrário, de mente aberta, de coração leve, prontos a caminhar para a frente. O próprio Espíritismo não é um sistema rígido. A sua natureza é dinâmica, progressiva. Quanto mais avançarem os tempos, quanto mais se acelerar a maturidade espiritual do homem, tanto mais se alargarão os conceitos espíritas, segundo a própria lição de Allan KardecVivamos também dessa maneira, se quisermos começar a viver uma vida espírita.

Depois de havermos tomado essa posição, devemos compreender que ela não representa desinteresse pela vida. Muito pelo contrário, temos de nos interessar vivamente por tudo o que nos rodeia. Pois então não aprendemos que todas as coisas fazem parte do plano geral da evolução, que todas elas representam, para nós, auxiliares do nosso próprio desenvolvimento? Desapegarmo-nos das coisas não quer dizer desprezá-las.

O grande espiritualista hindu, Ramakrishna, dizia aos seus discípulos que eles deviam viver como uma ama-de-leite. E explicava:

“A ama-de-leite, ao referir-se à casa dos seus patrões, diz: “a nossa casa”. Ela sabe, entretanto, que a sua casa está longe, numa aldeia distante, para a qual se dirigem os seus pensamentos. Ao referir-se ao filho dos patrões, que traz nos braços, dirá: “o meu Hari está muito travesso” ou “o meu Hari gosta disto ou daquilo”, e assim por diante. Não obstante, ela sabe que Hari não é seu. Aos que me procuram, digo-lhes que vivam uma vida de desapego, como essa ama-de-leite, que vivam desligados deste mundo, que vivam no mundo mas não sejam do mundo, e tenham ao mesmo tempo a mente dirigida a Deus, a casa celeste de onde todos viemos. Que implorem o amor de Deus, que os ajudará a viver assim.”

Colocado assim, em termos claros, o problema da atitude espírita, resta-nos vivê-la. A princípio, é natural; encontraremos grandes dificuldades. Mas pouco a pouco aprenderemos a olhar a vida e o mundo de um ponto de vista espírita. E então os acontecimentos que habitualmente nos surpreendiam, nos transtornavam e nos causavam dor e angústia, passarão a nos afectar levemente, como simples arrepios do vento na superfície de um lago. Encontraremos a paz da compreensão, a serenidade inalterável da exacta visão das coisas, em que dia a dia mais penetraremos.

Ainda me lembro da estranheza dos vizinhos, por ocasião da morte do nosso jovem e querido J.J., o cronista espírita do jornal O Tempo, cunhado do autor destas linhas, mais praticamente o seu filho, pois crescera em sua casa, órfão de mãe, desde tenra idade. Em casa, uma família de doze pessoas, inclusive quatro crianças, todos eram espíritas. Nenhum sinal de morte foi colocado nas portas ou janelas, nenhum grito de desespero se ouviu, nenhuma lamentação, nenhum semblante funéreo. A morte colhera-o de surpresa, aos vinte anos de idade, e o golpe caiu pesado e fundo sobre o coração de todos. Mas todos compreenderam que o jovem companheiro não havia morrido. Que simplesmente fora levado, antes de nós, pelas águas da vida, rumo ao destino supremo da evolução espiritual. Todos sentiam, mas, ao mesmo tempo, todos compreendiam. E ninguém tinha coragem de lamentar aquele que fora, pois sabia que ele não merecia essa lamentação. O meu filho, de sete anos e pouco, certa noite, na hora de dormir, com os olhinhos distantes, apenas nos disse: Como será o outro lado, não...? Ele tinha a certeza de que o tio havia passado para o outro lado, e que assim cumprira, pura e simplesmente, uma das leis da vida. O seu pensamento preocupava-se apenas com a novidade do facto e procurava descobrir como seria a situação do outro lado da vida.

Essa falta de aparência de sofrimento e de desolação, essa ausência do desespero, causou estranheza nos vizinhos. Nem todos deixaram perceber a sua estranheza, mas certo dia alguém não se conteve e falou a um dos nossos. Era uma pessoa que havia perdido um parente jovem e que jamais se consolara. Continuava a sofrer, a sentir horrivelmente a “perda irremediável”. E só então fomos capazes de compreender o quanto o Espiritismo nos tinha valido naquele momento cruciante, o quão fundo havia ele operado nas nossas almas.

Poucos dias depois, um médium amigo recebia, em Marília, a primeira comunicação do espírito. Recebemos um telegrama de confrades, comunicando-nos o facto, que a todos alvoroçou. Conhecíamos bem a mediunidade de Urbano de Assis Xavier, cirurgião dentista naquela cidade. Felizmente, o espírito havia pedido aos amigos presentes à reunião, os confrades Eurípedes Soares da Rocha, provedor do Hospital Espírita de Marília, Gabriel Ferreira, farmacêutico e ex-director do mesmo, e à senhora deste, que transmitissem ao médium o seu desejo de falar connosco. Urbano compreendeu a situação e, com sacrifício dos seus próprios interesses, viajou no dia seguinte para São Paulo. Em casa, todos reunidos, recebemos então a paga da nossa firmeza na convicção espírita. J.J. se manifestou, amparado por espíritos amigos, que também conhecíamos, identificando-se plenamente e dando-nos mais uma vez a confirmação da sobrevivência. Tínhamos, assim, a prova de que a nossa atitude estava certa, de que a nossa posição era exacta. E a vida continuou, como sempre, no seu eterno fluxo, na Terra e no espaço.

/…


José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Conclusões Práticas (2 de 3), 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O Homem e a Sociedade


Capítulo II
O Marxismo e O Espírito

  O marxismo, como gerador de um sentir materialista do homem e da vida, vem sendo combatido por teóricos religiosos pertencentes a várias confissões eclesiásticas, que procuram mostrar os seus erros a respeito da realidade humana e espiritual. Todo esse trabalho poderá ser louvável para os que necessitam de um conceito espiritual com que enfrentar as contingências sociais; mas, quando analisado com certa atenção, percebe-se que a sua finalidade é apenas uma defesa sectária.

  Dizem-nos que no marxismo se elabora um partidarismo da filosofiae que o filósofo deve amoldar a sua mentalidade aos interesses do partido. Mas, se bem considerarmos, vemos que acontece o mesmo, quase com as mesmas características, no campo religioso: forja-se um partidarismo eclesiástico, condicionado aos interesses espirituais do partido religioso, pondo-se de lado o sentido real da busca da verdade.

  Neste sentido, trava-se a luta entre duas concepções, ambas com o mesmo direito à análise e à discussão. O grau democrático, alcançado pelo desenvolvimento das ideias, permite-nos hoje cotejar o valor das doutrinas e até mesmo dos dogmas religiosos. Consequentemente, já não se trata de atacar particularmentemarxismo nem o materialismo dialéctico; o que agora interessa é saber positivamente onde se encontra a realidade do Espírito; se é que de facto se deseja superar o perigo representado pelo niilismo filosófico.

  Actualmente não se trata de atacar sistemas, mas de saber se eles são realmente falsos, e se as ideias que lhes contrapomos são reais e demonstráveis. Neste campo, a luta trava-se entre o Espírito e a Matéria. Para o espiritualismo religioso, é na existência do Espírito que se radica a legitimidade do cristianismo e das verdades escatológicas. Pois se a existência do Espírito fosse uma irrealidade, todo esse sistema religioso seria derrubado, colocando-se em primeiro plano o materialismo e o marxismo. A ideologia marxista afirma que a sua doutrina está fundada nas ciências, e que unicamente uma contraprova científica poderia obrigá-la a mudar de orientação. O espiritualismo religioso apresenta os seus dogmas, fazendo uso da fé, numa posição de absoluta insuficiência para contradizer as posições do critério científico.

  Como se sabe, o marxismo funda-se na ciência experimental. Sobre essa base estabeleceu as suas conclusões materialistas, referentes à origem da vida, opondo-se assim tanto ao idealismo como à religião. Mas o que não devemos esquecer é que esta concepção marxista se baseia também na falta de provas positivas acerca do mundo sobrenatural, sobre o qual repousam a ideia de Deus e do Espírito.

  Se o marxismo repele a espiritualidade do homem e da história, não o faz por ódio a essa ideia, já que o pensador marxista possui, sem nenhuma dúvida, uma faculdade intelectual tão esclarecida e elevada como a do idealista e do religioso. Consideramos que a repulsa do marxismo às ideias religiosas decorre da falta de provas que pudessem apresentar, tanto o idealismo como a Igreja. Por isso, a escola espírita admite que a cessação da contenda entre o espiritualismo e o materialismo se dará com o reconhecimento e a admissão do fenómeno metapsíquicomediúnico, único fundamento real que obrigará as correntes materialistas a reconhecerem como verdadeira a existência imortal do Espírito.

  Mas a Igreja, e com ela o sistema idealista clássico, repelem o conceito espírita da realidade; a primeira, por considerar o espiritismo como uma causa do demónio, e o segundo, por sustentar um critério nebuloso e ambíguo a respeito da espiritualidade do homem. Não obstante, o curso que vão seguindo as questões morais obrigam cada vez mais o pensamento filosófico a recorrer à realidade espiritual, apresentada pelo espiritismo, como o último recurso contra o avanço triunfal do conceito materialista da vida.

  Como dizíamos, o marxismo repele toda a ideologia espiritualista por considerar que ela submete o homem económica e socialmente, afundando-o na ignorância e na superstição. Por isso, sustenta que o espiritualismo, além de ser uma irrealidade, tem servido para apoiar os regimes reaccionários e conservadores e, nunca a liberdade e o direito das classes sem recursos.

  Se o realismo marxista não for superado por um realismo espiritual que ultrapasse os seus limites, a consciência materialista continuará a impor-se e serão vãos os protestos dos idealistas e religiosos. As realidades espirituais, se de facto existem, deverão ser expostas ao homem moderno com a mesma objectividade que caracteriza os fenómenos físicos e sociais. Defender ideologias abstractas é unicamente falar ou escrever em favor do partido político ou religioso a que se pertence. Se os espiritualistas querem demonstrar a existência de Deus e da imortalidade da alma, deverão abandonar o método dogmático. Agora, são os factos que devem falar em favor da vida espiritual do homem. Entretanto, prefere-se defender o dogma e o partido, esquecendo-se de que o homem está acima dos interesses de seitas e de grupos.

  Chegamos, porém, a uma situação em que o ser humano tem grande necessidade de conhecer a verdade acerca da sua natureza teológica. Aspira, mais do que nunca, apegar-se a ela, para sobreviver ao desolador desastre espiritual da espécie. As doutrinas idealistas e religiosas deverão responder-lhe com verdade e, não com dogmas, já que o homem vale mais do que o partido e a igreja. Por isso, a verdade espiritual, assente sobre os factos, é a única que poderá defendê-lo do perigo social que o rodeia.

  É necessário considerar que o homem não deve morrer sem que lhe sejam ensinadas as verdades espirituais autênticas; não deverá ausentar-se deste mundo aceitando verdades que, depois da morte, lhe aparecerão como erros, conservados apenas para a defesa de sistemas religiosos e sociais dominantes.

  Não obstante, enquanto as instituições civis e religiosas permanecem quietas, o progresso e a evolução fazem girar a roda do mundo, para sensibilizá-lo desde os fundamentos. Enquanto as organizações religiosas aparentam estabilidade e segurança, a revolução espiritual está a acontecer no âmago das almas. E esta revolução subjectiva é a que promoverá a derrocada dessas organizações, que zelam somente pelos privilégios e os seus interesses materiais. Acreditamos que o grito angustioso da alma humana, nos tempos actuais, merece o mais fraternal dos auxílios. Consideramos que o homem merece agora o nosso respeito, mais do que em nenhum outro período da história.

  Aqueles que dividiram o mundo em classes, sectores e partidos, deveriam abandonar a sua atitude dogmática e lembrar que a humanidade está no direito de conhecer a verdade espiritual, ainda que essa verdade possa afectar as instituições religiosas, já incapazes de oferecer provas sobre o destino escatológico do homem.

  O marxismo é uma rebelião contra os erros de toda a ordem; não é somente uma força de carácter político: ele se dirige a todo o sistema espiritual existente, cansado de admitir as suas erradas doutrinas, cujo único fim é manter nas trevas o pensamento humano. Assim, se a Igreja, e com ela o antigo espiritualismo desejam opor-se ao marxismo, deverão fazê-lo por meio dos factos, demonstrando que o metafísico e o sobrenatural existem, que são realidade. Mas, infelizmente, essas instituições carecem do equipamento necessário, com o qual deveriam sobrepor-se ao conceito materialista do marxismo. Continuam opondo-se ao espiritismo, o que prova que não buscam a salvação espiritual do homem, mas unicamente sobreviver, empregando para isso a força que lhe concedem os Estados materialistas.

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Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE, O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo II, O MARXISMO E O ESPÍRITO, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (detalhe)1936, Salvador Dali)