Conclusões Práticas (II)
Quanto mais um homem se apega às suas ideias pessoais, aos seus caprichos, aos seus sistemas, mais se distancia dos outros, mais se afasta da vida. Quem não conhece esses temperamentos confinados, essas criaturas ranzinzas, cheias de “coisinhas”, que estão sempre de prevenção contra tudo e contra todos? Pois não são outra coisa senão indivíduos agarrados fortemente às raízes do barranco. Eles se defendem da vida e dos homens, querem viver a seu modo, fechados nos seus costumes. Quem quiser tirá-los para fora da cova mental e psíquica em que eles se meteram, por vontade própria, será considerado inimigo. No entanto, se os levarmos a um médico psiquiatra, este os considerará doentes, que de facto o são, e lhes receitará os meios necessários à libertação.
Na vida comum, fora desse terreno específico da patologia
psíquica, nós também, quase todos, somos espíritos confinados, somos
doentes, apegados à rotina de uma vida sem sentido, lutando contra as
águas do rio da vida, que nos querem levar para a libertação. Se
quisermos continuar nessa atitude, só poderemos aumentar os nossos sofrimentos
e as nossas dores. A lição do Cristo se torna, pois, muito
clara, diante dos ensinamentos espíritas. A vida não é fixa, não é sólida, não
é estável. É fluente e mutável. Se quisermos salvar a nossa vida,
fixando-nos nos nossos hábitos e nas nossas ideias, perdê-la-emos, porque o
fluxo constante das coisas nos libertará de súbito; nos atirará para a frente,
com ímpeto irresistível. Se, pelo contrário, concordamos em sacrificar
a nossa vida por amor do Cristo, ou seja, trocar o nosso apego às
pequeninas coisas da existência passageira pela compreensão das verdades
eternas, por ele ensinadas; salvá-la-emos.
Compreendamos, pois, antes de tudo, a nossa verdadeira
posição diante da vida, e procuremos nos adaptar a ela. Compreendamos
que a vida é um fluxo, que temos de viver, não apegados aos nossos hábitos e
sistemas, mas, pelo contrário, de mente aberta, de coração leve, prontos a
caminhar para a frente. O próprio Espíritismo não é um sistema rígido. A sua natureza é dinâmica, progressiva. Quanto mais avançarem
os tempos, quanto mais se acelerar a maturidade espiritual do homem, tanto mais
se alargarão os conceitos espíritas, segundo a própria lição de Allan Kardec. Vivamos
também dessa maneira, se quisermos começar a viver uma vida espírita.
Depois de havermos tomado essa posição, devemos compreender
que ela não representa desinteresse pela vida. Muito pelo contrário,
temos de nos interessar vivamente por tudo o que nos rodeia. Pois então não
aprendemos que todas as coisas fazem parte do plano geral da evolução,
que todas elas representam, para nós, auxiliares do nosso próprio
desenvolvimento? Desapegarmo-nos das coisas não quer dizer
desprezá-las.
O grande espiritualista hindu, Ramakrishna, dizia aos seus
discípulos que eles deviam viver como uma ama-de-leite. E explicava:
“A ama-de-leite, ao referir-se à casa dos seus patrões, diz:
“a nossa casa”. Ela sabe, entretanto, que a sua casa está longe, numa aldeia
distante, para a qual se dirigem os seus pensamentos. Ao referir-se ao filho
dos patrões, que traz nos braços, dirá: “o meu Hari está muito travesso” ou “o
meu Hari gosta disto ou daquilo”, e assim por diante. Não obstante, ela sabe
que Hari não é seu. Aos que me procuram, digo-lhes que vivam uma vida
de desapego, como essa ama-de-leite, que vivam desligados deste mundo, que
vivam no mundo mas não sejam do mundo, e tenham ao mesmo tempo a mente
dirigida a Deus, a casa celeste de onde todos viemos. Que implorem o amor de
Deus, que os ajudará a viver assim.”
Colocado assim, em termos claros, o problema da
atitude espírita, resta-nos vivê-la. A princípio, é natural;
encontraremos grandes dificuldades. Mas pouco a pouco aprenderemos a olhar a
vida e o mundo de um ponto de vista espírita. E então os acontecimentos
que habitualmente nos surpreendiam, nos transtornavam e nos causavam dor e
angústia, passarão a nos afectar levemente, como simples arrepios do vento na
superfície de um lago. Encontraremos a paz da compreensão, a serenidade
inalterável da exacta visão das coisas, em que dia a dia mais penetraremos.
Ainda me lembro da estranheza dos vizinhos, por ocasião da
morte do nosso jovem e querido J.J., o cronista espírita do jornal O
Tempo, cunhado do autor destas linhas, mais praticamente o seu filho, pois
crescera em sua casa, órfão de mãe, desde tenra idade. Em casa, uma família de
doze pessoas, inclusive quatro crianças, todos eram espíritas. Nenhum
sinal de morte foi colocado nas portas ou janelas, nenhum grito de desespero se
ouviu, nenhuma lamentação, nenhum semblante funéreo. A
morte colhera-o de surpresa, aos vinte anos de idade, e o golpe caiu pesado e
fundo sobre o coração de todos. Mas todos compreenderam que o jovem companheiro
não havia morrido. Que simplesmente fora levado, antes de nós, pelas
águas da vida, rumo ao destino supremo da evolução espiritual. Todos
sentiam, mas, ao mesmo tempo, todos compreendiam. E ninguém tinha coragem de
lamentar aquele que fora, pois sabia que ele não merecia essa lamentação. O
meu filho, de sete anos e pouco, certa noite, na hora de dormir, com os
olhinhos distantes, apenas nos disse: Como será o outro lado, não...? Ele
tinha a certeza de que o tio havia passado para o outro lado, e que
assim cumprira, pura e simplesmente, uma das leis da vida. O seu
pensamento preocupava-se apenas com a novidade do facto e
procurava descobrir como seria a situação do outro lado da vida.
Essa falta de aparência de sofrimento e de desolação, essa
ausência do desespero, causou estranheza nos vizinhos. Nem todos deixaram
perceber a sua estranheza, mas certo dia alguém não se conteve e falou a um dos
nossos. Era uma pessoa que havia perdido um parente jovem e que jamais se
consolara. Continuava a sofrer, a sentir horrivelmente a “perda
irremediável”. E só então fomos capazes de compreender o quanto o Espiritismo nos tinha
valido naquele momento cruciante, o quão fundo havia ele operado nas nossas
almas.
Poucos dias depois, um médium amigo recebia, em
Marília, a primeira comunicação do espírito. Recebemos um
telegrama de confrades, comunicando-nos o facto, que a todos alvoroçou.
Conhecíamos bem a mediunidade de Urbano de Assis
Xavier, cirurgião dentista naquela cidade. Felizmente, o espírito havia
pedido aos amigos presentes à reunião, os confrades Eurípedes Soares da Rocha,
provedor do Hospital Espírita de Marília, Gabriel Ferreira, farmacêutico e
ex-director do mesmo, e à senhora deste, que transmitissem ao médium o
seu desejo de falar connosco. Urbano compreendeu a situação e, com
sacrifício dos seus próprios interesses, viajou no dia seguinte para São
Paulo. Em casa, todos reunidos, recebemos então a paga da nossa firmeza
na convicção espírita. J.J. se manifestou, amparado por espíritos amigos, que
também conhecíamos, identificando-se plenamente e dando-nos mais uma vez a
confirmação da sobrevivência. Tínhamos, assim, a prova de que a nossa atitude
estava certa, de que a nossa posição era exacta. E a vida continuou, como
sempre, no seu eterno fluxo, na Terra e no espaço.
/…
José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Conclusões
Práticas (2 de 3), 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)
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