Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

a pedra e o joio ~


Reforma doutrinária total ~

   Chegamos agora ao fim do nosso exame da teoria corpuscular do espírito, e os leitores que nos acompanha-ram hão de lembrar-se que o iniciamos com esta declaração: “Conhecemos o confrade Guimarães Andrade, sabemos ser uma pessoa honesta e sincera, mas desconfiamos dos rumos da sua imaginação no campo doutrinário”. A esta altura, a nossa desconfiança está justificada. Vimos que a teoria corpuscular não é mais do que uma nova tentativa de confusão doutrinária, a envolver o movimento espírita, desprevenido e desarmado, ante as numerosas investidas que vem sofrendo.

   Companheiros dirigentes, cheios de boa-vontade fraterna, estranharam a nossa crítica. Sonham com a fraternidade sem jaça, o que é, naturalmente, muito louvável, e entendem que só devíamos ter palavras de estímulo para todos os que cuidam das coisas do espírito. Alguns chegaram mesmo a declarar que não devíamos desprestigiar “obras espíritas de valor”, por questões de ponto de vista. Mostramos, porém, de sobejo, numa análise serena e objectiva, que não se trata de “pontos de vista”, mas da própria defesa da doutrina e do movimento espírita.

   Os que batem palmas para tudo quanto se faz em nome do Espiritismo nada mais fazem do que incentivar a onda de confusões deste momento de transição. O confrade Guimarães Andrade é honesto, sincero, inteligente e culto. Mais do que isso, é uma criatura modesta, que não revela, pessoalmente, as ambições e as pretensões gigantescas do seu livro. Os que o conhecem pessoalmente e não leram ou não puderam entender o livro estranham que o acusemos de tamanha pretensão, qual a de reformador do Espiritismo e da Ciência. Não temos, porém, que examinar o homem, e sim o autor.

   Já demonstramos suficientemente as pretensões da teoria corpuscular. Embora, no início do volume, o autor declare que pretende apenas contribuir para a ciência espírita, logo mais ele se contradiz, investindo contra Kardec e o Espiritismo, para considerá-los obsoletos e propor-se a substituí-los. No correr do livro (e este é apenas o primeiro de uma série de não sabemos quantos), o autor se empolga, delira, perde-se nos desvios da sua própria imaginação, para no final declarar que pretende apresentar “as consequências filosóficas da teoria corpuscular do espírito”. É o momento de repetirmos a advertência evangélica: “Quem tem ouvidos de ouvir, ouça”.

   É inegável, porque declarado pelo próprio autor, que ele quer substituir toda a codificação kardeciana, considerando-a “empoeirada”, pela sua nova doutrina. A substituição começa na base, que é a ciência, continua no arcabouço doutrinário, que é a filosofia, e acabará por certo na cúpula, que é a religião, mesmo que seja para negá-la ou apresentar-lhe um substitutivo científico, da natureza do Positivismo. É então possível aceitarmos tudo isso, batermos palmas e essas pretensões, descuidados de suas consequências? Quem compreende a responsabilidade de espírita não pode, absolutamente, assumir, diante de ameaças dessa espécie, uma atitude de falsa tolerância. Porque isso seria compromisso no erro.

   No capítulo final do volume o confrade Guimarães Andrade esclarece ainda mais, declarando textualmente “Esperamos criar adeptos”. Acentua que deseja adeptos conscientes, capazes de analisar os seus ensaios e ajudá-lo no seu aperfeiçoamento. A sua modéstia aparece de novo, encobrindo as pretensões. Mas o véu da modéstia se torna, nesse momento, transparente como gaze. Apontamos numerosas contradições no livro, e entre elas podemos incluir esta: uma atitude modesta, encobrindo ambições desmedidas. Acreditamos que esta contradição se explique por uma frase do prólogo: “Esperamos ter alcançado a primeira etapa do vasto programa que nos foi confiado”. De um lado, temos a modéstia do instrumento; e, de outro, a ambição daquele ou daqueles que o usam, que lhe confiaram o programa.

   Outras contradições curiosas devem ser assinaladas. Pretende o autor apresentar uma teoria científica, mas não se dirige aos homens de ciência, em linguagem técnica, e sim ao público, em termos de divulgação popular. Como divulgar aquilo que ainda não está feito, que é apenas uma tentativa? Proclama a necessidade de dar bases teóricas modernas à ciência espírita, mas não se utiliza de uma bibliografia rigorosa, e sim de obras comuns de divulgação científica. Apela para a necessidade de experiências científicas, fora do campo mediúnico, o que é simples absurdo, e apoia-se em fontes mediúnicas, alegando a honorabilidade do médium, que do ponto de vista científico não tem nenhum valor. Desaconselha entusiasmos imediatos, mas reclama adeptos. Acredita estar apenas tateando num terreno difícil, mas formula extenso programa de desenvolvimento da doutrina, e chega mesmo a referir-se a aproveitamento industrial do “bion” (página 34). Toma uma atitude de extremismo científico, ao ponto de excluir a ideia de Deus da sua teoria, e cita experiências comuns de mediunidade, praticadas sem nenhum rigor científico, como modelos de experimentação mediúnica.

   Somos forçados a declarar que a análise do livro A Teoria Corpuscular do Espírito nos surpreendeu. Conhecendo pessoalmente o autor, a quem dedicamos amizade fraterna, sabendo de suas possibilidades culturais e intelectuais, não podíamos supor tamanha fragilidade em sua obra. Dessa maneira, fomos compelidos a tomar, no caso, atitude semelhante à de Aristóteles, perante o seu mestre e amigo Platão. Lamentamos que o confrade Guimarães Andrade não houvesse tomado uma atitude mais consentânea com a sua modéstia natural, pois estamos certos de que assim teria evitado o emaranhado de contradições em que se perdeu.

   Concluímos, pois, esta análise, repetindo que não se trata de nenhuma tentativa polémica, e muito menos de qualquer forma de desconsideração para com o autor de A Teoria Corpuscular do Espírito, que pessoalmente prezamos bastante. Se fomos forçados a dizer algumas coisas aparentemente duras, isso aconteceu pela necessidade de definirmos firmemente a nossa posição, em defesa do Espiritismo. Se a teoria corpuscular fosse apresentada como doutrina à parte, sem nenhuma ligação com o Espiritismo, pouco nos interessaria. Mas, tratando-se de uma nova tentativa de reforma doutrinária, somos obrigados a encará-la com a devida firmeza.




José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Reforma doutrinária total, 16º e último fragmento da obra.
(imagem de ilustração: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

| o grande enigma ~


Solidariedade | comunhão universal

Deus é o Espírito de Sabedoria, de Amor e de Vida, o Poder Infinito que governa o mundo.

O homem é finito mas tem a intuição do Infinito. O princípio espiritual, de que é detentor, incita-o a perscrutar os problemas que excedem os limites actuais do seu entendimento. O seu Espírito, prisioneiro na carne, separa-se dela, às vezes, e eleva-se aos domínios superiores do pensamento, donde lhe vêm essas altas aspirações, as quais muitas vezes são seguidas de recaídas na matéria. Daí tantas pesquisas, tentativas e erros, a tal ponto que seria impossível distinguir a verdade, no amontoado dos sistemas e das superstições que o trabalho das idades tem acumulado, se os Poderes Invisíveis não viessem fazer luz nesse caos.

Cada Alma é uma irradiação da grande Alma universal, uma centelha gerada do Eterno Foco. Nós, porém, nos ignoramos a nós mesmos, e essa ignorância é a causa de nossa fraqueza e de todos os nossos males.

Estamos unidos a Deus na relação estreita que liga a causa ao efeito, e somos tão necessários à sua existência quanto Ele é necessário à nossa. Deus, Espírito Universal, manifesta-se na Natureza, e o homem é, sobre a Terra, a mais alta expressão dessa Natureza. Somos a criação e a expressão de Deus, que é a fonte do Bem. Mas esse Bem, nós o possuímos somente no estado de gérmen, e a nossa tarefa consiste em desenvolvê-lo. As nossas vidas sucessivas, a nossa ascensão na espiral infinita das existências, não têm outro fim. Tudo está escrito no fundo da Alma em caracteres misteriosos: o passado, de onde emergimos e devemos aprender a sondar; o futuro, para o qual evolvemos, futuro que nós mesmos edificaremos qual monumento maravilhoso, feito de pensamentos elevados, de nobres acções, de devotamentos e de sacrifícios.

A tarefa que cada um tem a realizar resume-se em três palavras: saber, crer, querer – isto é, saber que temos recônditos e inatos recursos incalculáveis; crer na eficiência de nossa acção sobre os dois mundos, o da Matéria e o do Espírito; querer o Bem, dirigindo o nosso pensamento para o que é belo e grandioso, conformando as nossas acções com as leis eternas do trabalho, da justiça e do amor.

Vindas de Deus, todas as Almas são irmãs; todos os filhos da raça humana são unidos por laços estreitos de fraternidade e solidariedade. E porque os progressos de cada um são sentidos por todos, os rebaixamentos de um só afectam o conjunto.

Da paternidade de Deus decorre a fraternidade humana; todas as relações que nos ligam unem-se a esse facto. Deus, pai das Almas, deve ser considerado o Ser consciente por excelência e nunca em grau de abstracção. Aqueles que possuem recta consciência e são esclarecidos por um raio do Alto reconhecem Deus e o servem na Humanidade, que é a sua filha e a sua criação.

Atingindo o homem o conhecimento de sua verdadeira natureza e de sua unidade em Deus, tendo entrado essa noção na sua consciência e no seu coração, ele se eleva até à Verdade suprema; domina, do topo, as vicissitudes terrestres; encontra a força que “remove montanhas”, que o torna vencedor na luta contra as paixões e permite desprezar as decepções e a morte. Executa então o que o vulgo chama prodígios. Por sua vontade, por sua fé, submete, governa a substância; quebra as fatalidades da matéria; torna-se quase um deus para os outros homens. Muitos, na sua passagem por este mundo, chegaram a essas alturas de vistas, mas só Cristo delas se compenetrou, a ponto de dizer à face de todos: “Eu e meu Pai somos um; Ele está em mim e eu estou Nele.”.

Estas palavras não se aplicam, entretanto, a Ele somente; são verdadeiras para a Humanidade inteira. Cristo sabia que todo o homem deve chegar à compreensão de sua natureza íntima, e é nesse sentido que dizia aos seus discípulos: “Vós sois todos deuses.” (João, cap. X, v. 34.)

Poder-se-ia acrescentar: deuses para o futuro!

É a ignorância da nossa natureza e das forças divinas que dormem no nosso íntimo, é a ideia insuficiente que fazemos do nosso papel e das leis do destino que nos entregam às influências inferiores, ao que chamamos o Mal. Na realidade, o facto se reduz a uma falta de desenvolvimento. O estado de ignorância não é, por si mesmo, um mal; é somente uma das formas, uma das condições necessárias da lei de evolução. A nossa inteligência não amadureceu ainda; a nossa razão, criança, tropeça nos acidentes do caminho; daí o erro, os desfalecimentos, as provações, a dor. Mas todas essas coisas serão um bem se as considerarmos outros tantos meios de educação e elevação. A Alma deve atravessá-las para chegar à concepção das verdades superiores, à possessão da parte de glória e de luz, que fará dela uma eleita do céu, uma expressão perfeita do Poder e do Amor infinitos. Cada ser possui os rudimentos de uma inteligência que atingirá o génio e tem a imensidade dos tempos para desenvolvê-la. Cada vida terrestre é uma escola, a escola primária da Eternidade.

Na lenta ascensão que leva o homem a Deus, procuramos, antes de tudo, a ventura, a felicidade. Todavia, no seu estado de ignorância, não poderia ele atingir esses bens, porque os procura quase sempre onde não estão, na região das miragens e das quimeras, por meio de processos cuja falsidade só lhe aparece depois das decepções e dos sofrimentos. São esses sofrimentos que nos esclarecem; as nossas dores são lições austeras; elas nos ensinam que a verdadeira felicidade não está nas coisas da matéria passageira e mutável, mais na perfeição moral. Os nossos erros e faltas repetidos, com as fatais consequências que trazem, acabam por nos dar a experiência, e esta nos conduz à sabedoria, isto é, ao conhecimento inato, à intuição da verdade. Chegado a esse sólido terreno, o homem sentirá o laço que o une a Deus e avançará, a passo mais seguro, de estádios em estádios, para a grande luz que não se extingue nunca.
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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, III Solidariedade | comunhão universal 1 de 3, 11º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Victor Hugo e o invisível ~


Duas Sentenças que Resumem o Sentimento Filosófico do Poeta ~

   Victor Hugo foi, não em vão, um grande propulsor do romantismo espiritualista de França. O seu génio poético só podia desenvolver-se e nutrir-se numa corrente literária transcendente e espiritual, já que através dela pôde penetrar nas chamadas ''reminiscências platónicas'' e nessas ''distâncias da alma'' em que só pode mesmo penetrar o poeta palinginésico.

   O romantismo é como uma evasão do ser deste mundo objectivado. José Ferrater Mora, autor do Dicionário de Filosofia, ao referir-se ao romantismo disse: "Por isso, no movimento romântico existe, junto a uma decidida preocupação com o oculto e o ausente, uma ressurreição do religioso, uma concepção da história com o drama do homem e do seu destino e, em última instância, como uma revelação de Deus no ser finito do mundo''.

   Victor Hugo, de facto, sentiu em toda a sua existência um como que chamamento profundo surgido do ausente, das distâncias históricas onde a alma deixou gravadas as suas pegadas. Compreende que tudo na criação fala e que o passado, o presente e o futuro se entrelaçam harmoniosamente e que em cada um dos períodos do devir do Ser a essência da alma reconstrói o passado para marcar o presente e projectar-se sobre o seu futuro existencial.

   Em uma das suas sentenças mais profundas, como já vimos, deixou expresso com nitidez o seu sentimento palingenésico: "O berço tem um ontem e o túmulo tem um amanhã"; daí serem as bases do seu romantismo nitidamente palingenésicas. No chamado "romantismo de Jena", a poesia se manifestou como uma torneira aberta cujas águas provêm de torrentes espirituais relacionadas com a reencarnação das almas. Poetas como SchellingHõlderlinNovalisTieck e outros viveram possuídos pela ideia do ausente e distante, cuja raiz se funde nos abismos espirituais do Ser, ou seja, nas distantes vidas onde os seus espíritos cantaram e choraram sem serem jamais calados pela morte.

   Victor Hugo viveu sentindo em si mesmo esse imperativo palingenésico, em que o génio poético do século passado percebeu uma nova revelação espiritual. A poesia foi, é e será sempre palingenésica; ela, ainda que a crítica se oponha a este conceito, será sempre uma chama de fogo a iluminar os longínquos dias das idades. Porque a poesia é um fluir do interno para o externo, quer dizer, dessa vida profunda e imortal que dá ser e personalidade a tudo o que existe.

   O poeta de Os Miseráveisreferindo-se ao verdadeiro homem, dizia: ''O corpo bem poderia não ser mais que uma aparência. Ele cobre a nossa realidade; ele se interpõe entre a nossa luz e a nossa sombra: a realidade da alma. Claramente falando, a nossa cara é uma máscara. O verdadeiro homem é aquele que está por trás do homem. Se se olhasse bem esse homem oculto e guarnecido por trás dessa ilusão que se chama carne, ter-se-ia mais de uma surpresa".

   O ser encarnado, melhor dizendo, reencarnado era para Hugo uma aparência existencial cuja realidade está na essência espiritual que determina os mais variados fenómenos da história. Considerava o processo visível uma trama que tem origem no invisível. A poesia de Victor Hugo foi como a entrada num novo mundo religioso onde os espíritos são as alavancas invisíveis de tudo o que se manifesta de forma visível.

   A existência espiritual desencarnada que o poeta aceitava coincidia com a ideia da pessoa no Ser, ou seja, com esse homem de carne e osso imortal de Miguel de UnamunoO Espírito, na sua condição de desencarnado, não é uma abstracção indefinida, como ainda concebe o espiritualismo clássico. A vida do Ser no eterno possui para Hugo um perispírito objectivo, sendo portanto uma realidade vivente com um eu pessoal que actua no material a partir dos planos invisíveis.

   É isso o que nos mostra na seguinte sentença: "A borboleta é o verme metamorfoseado, mas a metamorfose é tão perfeita que se acredita ver uma nova criatura. Do mesmo modo, na nossa existência do além-túmulo não seremos puros espíritos porque estas palavras são vazias de sentido, tanto para a razão como para a imaginação.

   "O que é uma vida sem os órgãos da vida? O que a define e o que a fixa? Na verdade, nós teremos outro corpo semelhante, radiante, divino e, por assim dizer, espiritual, que será a transformação do nosso corpo terrestre''.

   A realidade espiritual do homem era, para o poeta, objectivamente existencial e não uma abstracção, pois a vida do além-túmulo é para Hugo como um alto e imenso cume, onde o espírito se resume dialecticamente. Por isso, disse: "Todos os seres são, foram e serão".

   Em outra passagem, dizia o poeta: "Os mortos são os invisíveis e não os ausentes''. Com este pensamento, ele uniu as vidas passadas das almas com a imortalidade de suas eternas naturezas. Sentiu, por isso, a presença do mundo invisível como uma realidade inteligente e comunicante. E este mundo invisível era para Victor Hugo o mundo dos espíritos tal como está desenhado na obra de Allan KardecA sua vida íntima nunca esteve rodeada de solidão e de vazio. A solidão em Hugo era como um médium que lhe permitia entrar em relação com os erradamente chamados mortos, pois, como grande romântico que era não cria no silêncio aterrador dos túmulos. Ele sabia, pelo fenómeno poético que diariamente experimentava, que é no invisível onde vivem os nossos seres queridos com os seus corpos espirituais, as suas paixões e os seus amores, esperando a oportunidade para revelarem-nos as suas inegáveis identidades. Porque, se "os mortos são os invisíveis e não os ausentes", como dizia, a humanidade está entrelaçada com a vida dos mortos tal como demonstra agora a filosofia espírita.

   Nos arquivos da Revue Spirite, de Paris, encontra-se um trabalho de Léon Denis em que ele se refere a Victor Hugo e à sua compreensão do mundo invisível, como se vê a seguir: "Louis Barthon, da Academia Francesa, depois de consultar os Apontamentos inéditos do poeta, escreveu na Revue de Deux Mondes (número 15, de dezembro de 1918, páginas 751 a 757) o que vamos transcrever: ''Madame Émile de Girardin, tendo ido passar dez dias em Jersey, introduziu ali a prática das mesas girantes e falantes". Como se sabe, Victor Hugo foi o último a ceder perante este fenómeno mediúnico. Mas desde que elas (as mesas) o convenceram, as entidades comunicantes não o abandonaram jamais, exercendo sobre o seu pensamento influências espirituais revolucionárias.

   "Continua dizendo Louis Barthon que na noite de 30 de março de 1857 o poeta percebe a noção de uma nova concepção metafísica, a qual descreve com data de 24 de outubro no seu caderno de apontamentos. Vejamos como capta a presença do invisível através de sua própria relação: 'Esta noite eu não dormia. Eram  cerca das três da madrugada. Um golpe seco, muito forte, se produziu aos pés da minha cama, contra a porta da minha habitação. Pensei em minha filha morta e disse para mim: És tu? Pois eu pensava no complô bonapartista, segundo se falava, em um novo dois de dezembro possível e me perguntava: É uma advertência? E acrescentava mentalmente: Se és realmente tu que estás aí e se vens advertir-me na ocasião deste complô, dá dois golpes. E por cerca de meia hora escuto. A noite era profunda e tudo em casa silêncio. De repente se fazem ouvir dois golpes contra a porta. Desta vez eram surdos mas distintamente muito leves".

   Louis Barthon prossegue em seu relato: "Em 21 de novembro de 1874 Victor Hugo escrevia o seguinte: 'Esta noite despertei e percebi no ouvido, muito próximo de mim, na minha cabeceira, leves pancadas surdas. Eram lentas e regulares, durando um quarto de hora. Eu escutava e não cessavam. Por isso, orei; quando cessaram, disse: se és tu, minha filha, ou tu, meu filho, dá dois golpes. Ao fim de dez minutos, mais ou menos, dois golpes se deram, mas contra a parede perto da cama. Mentalmente disse: é um conselho o que tu trazes? Devo abandonar Paris? Devo permanecer? Se devo ficar, dá um golpe. Se devo partir, dá três golpes. Escuto! Nenhuma resposta ainda. Acabo dormindo. O fenómeno dura quase uma hora'.

   "No caderno de apontamentos do poeta, com data de 22 de novembro de 1874, lê-se o seguinte: 'Esta noite escutei três golpes. Será a resposta à pergunta de ontem? Seria pouco clara ao ser tão demorada'.

   Léon Denis afirma que no mesmo caderno mencionam-se apontamentos nocturnos de carácter mediúnico obstinados, surdos e ainda metálicos e doces, tão comoventes que o poeta terminou por crer na possibilidade de um pronunciamento bonapartista do qual ele seria a primeira vítima (ver La Revue Spirite, de março/abril de 1952).

   Diz ainda Denis que na página 157 do caderno se lê: "Esta noite, cerca das duas horas, senti golpes na minha porta, que estava aberta, sem que pessoa alguma houvesse ali de forma evidente. Credo in Deum eternum et in animan inmortalem".

   Como se verá, os fenómenos mediúnicos experimentados por Victor Hugo não são vãos nem intranscendentes. Têm a virtude de haver elevado a alma do poeta até Deus e de fazê-lo crer no espírito imortal. Este mesmo facto se operou no ânimo de seu compatriota Gabriel Marcel, o distinto filósofo católico, a quem os fenómenos mediúnicos influenciaram notavelmente para a elaboração do seu pensamento filosófico. Victor Hugo, pois, não se equivocou quando disse: "Evitar o fenómeno espírita é fazer bancarrota com a verdade".

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Duas Sentenças que Resumem o Sentimento Filosófico do Poeta, 8º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VI

A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica
(III)

   Voltemos à vertente lorena dos Vosges. É preciso ter frequentado por longo tempo essas regiões, visitado esses lagos, essas torrentes, essas cascatas, tudo quanto alegra ou varia a cada passo a paisagem, para compreender e sentir o encanto penetrante, a doce magia que se forma nessa região e predispõe a alma ao recolhimento e ao devaneio.

   Eu gostava de conversar com os lenhadores e os carvoeiros da floresta de Vosges e constatei que se reencontra entre eles tudo o que caracteriza a raça céltica, a elevada estatura, a alegria, a hospitalidade, o amor à independência.

   Bismarck dizia dos lorenos, após 1871: “Esses elementos são muito indigestos”. Isto me lembra uma discussão que tive em Schlucht, com alemães, no dia seguinte à anexação da Alsácia ao seu império. Como a disputa se inflamou e eu era o único francês, fiquei surpreso ao ver, de repente, saírem do bosque homens de alta estatura, com as faces negras. Eram os carvoeiros lorenos que tinham ouvido tudo e vinham, no momento oportuno, prestar-me ajuda.

   Mas é sobretudo o vale do Meuse que faz voltar as minhas lembranças e afectos. A minha cidade natal, o lugar do meu último nascimento, está separada de Vaucouleurs por uma floresta; as minhas excursões a Domremy e aos seus arredores são incontáveis. Uma atracção poderosa me reconduz a ela. A colina de Bermont, com os seus bosques densos, as suas fontes sagradas, a velha capela onde Joana d’Arc ia sempre orar, conservou todo o seu encanto poético. O bosque Chenu está mais devastado, mas a fonte de Groseilliers sempre faz ouvir o seu doce murmúrio. A sumptuosa basílica moderna, apesar da sua ostentação, não esconde a humilde igreja da vila onde Joana foi baptizada.

   Sobre todo o vale plana uma atmosfera de misticismo que impressiona a alma pensativa e recolhida. Os espíritos flutuam no ar, inspirando os escritores mais refractários; é assim que Maurice Barrès, que nem sempre foi delicado para os espíritas, mas tão bom loreno pelo coração, escrevia o seguinte:

   “Em Jeanne nós vemos agir, sem o seu conhecimento, as velhas fantasias célticas. O Paganismo cerca e assedia esta santa cristã. A donzela honra os santos, mas, instintivamente, prefere aqueles que abrigam, sob as suas invocações, as fontes encantadas.

   As diversas potências religiosas espalhadas nesse vale do Meuse, ao mesmo tempo céltico, latino e católico, Jeanne as acolhe e as harmoniza; deveria ela morrer por efeito de sua nobreza natural... As fontes druídicas, as ruínas latinas e as velhas igrejas romanas formam um concerto. Toda essa natureza separada desperta em nós o amor de uma causa perdida na qual Jeanne é o tipo ideal. Enquanto tivermos um coração céltico e cristão, não cessaremos de amar essa fada que transformamos em uma santa.” (i)

   Merlin, o encantador, profetizou a sua vinda, como se assegura? O caso é possível, mas foi muito contestado e não insistiremos nesse particular. O certo é que “ela foi anunciada, desejada, esperada, prevista, do âmago de uma raça que sempre pôs a sua esperança e a sua fé no olhar inspirado das virgens”. (ii)

   E Maurice Barrès chega a atribuir às influências célticas que iluminam a infância de Joana uma das causas de sua condenação.

   Como Joana, eu gostava de visitar os bosques, as fontes sagradas, as árvores seculares em volta das quais se desenvolvia o “círculo das fadas”. Mas, quem eram essas fadas de que se trata um pouco por todas as partes da Lorraine? Sem dúvida, uma vaga e longínqua lembrança das druidisas de vestidos brancos, celebrando o seu culto sob os raios prateados da Lua.

   Edouard Schuré, no seu belo livro Les Grandes Légendes de France, escreveu:

   “As druidisas eram também chamadas de fadas, isto é, seres semidivinos, capazes de revelar o futuro… (iii)

   A origem dos druidas remonta à noite dos tempos, à aurora da raça branca. As druidisas são talvez mais antigas ainda, se nos basearmos em Aristóteles, que atribui o culto de Apolo de Delos a sacerdotisas hiperboreanas. As druidisas foram em princípio as inspiradas livres, as pitonisas da floresta. Os druidas serviram-se delas, inicialmente, como pacientes sensíveis, aptas à clarividência, à adivinhação. Com o tempo elas se emanciparam, formaram colégios femininos e, ainda que submetidas hierarquicamente à autoridade dos druidas, agiam por seu próprio impulso.”

   Daí resultou certo abuso de poder, particularmente no que se refere aos sacrifícios humanos, mas Edouard Schuré considera a questão sob plano superior e acrescenta:

   “A acção é a origem de tudo. A ideia da vidente, da visão espiritual da alma que vê e possui o mundo interior, superior à realidade visível, domina toda a lenda e aí lança como que raios de luz.”

   Joana d’Arc era, então, por excelência, uma alma céltica, uma imagem desses seres predestinados, desde a aurora da história, às formas mais elevadas do sacerdócio feminino e da adivinhação. Não estava ela sob a possessão das mais altas faculdades psíquicas: visão, audição, pressentimentos, premonições? Seja nos interrogatórios dos examinadores e dos juízes, seja nas discussões dos conselhos ou mesmo no tumulto dos combates, ela sempre teve a intuição daquilo que devia dizer e fazer. (iv)

   Tudo isso numa jovem sem instrução, que não tinha sequer vinte anos. E que cena nesse terrível drama! Trata-se da salvação da França, de saber se ela será inglesa. Mas, como Joana nos vai dizer mais adiante, ela era “o modesto instrumento vibratório que recebia a inspiração do mundo invisível”.

   Sim, certamente, ela era agente do mundo invisível, missionária celeste. Quando os homens aprenderem a conhecer a vida que reina sobre as esferas superiores e nos espaços etéreos, saberão que Deus criou uma classe de espíritos angélicos e puros, a quem ele reserva missões dolorosas, missões de devotamento e sacrifício, pela salvação dos povos e reabilitação da humanidade. Cristo, Joana d’Arc e outros pertencem a esta ordem de espíritos. Quando eles descem aos mundos materiais encarnam sempre nas classes mais humildes para ali dar o exemplo da simplicidade, do trabalho e do desinteresse. Houve excepção para Buda, nascido em berço de ouro, e que mais tarde abandonou o seu palácio e a sua esposa, para penetrar na selva. Maomé também, no início, era um obscuro cameleiro.

   Todos esses missionários são fáceis de reconhecer pelos eflúvios possantes que deles emanam e que impressionam as multidões. Parece que eles têm um raio divino sobre as suas frontes e nos seus corações. Era o caso de Joana d’Arc, segundo o testemunho do cidadão de Orléans que dizia: “É uma alegria vê-la e ouvi-la.” (v)

   Ainda agora, quando lhe agrada, às vezes, nos visitar, o espírito de Joana se anuncia nas nossas reuniões por uma viva radiação luminosa. Ela aparece ao vidente, em transe, sob uma forma cujo esplendor é difícil de fitar directamente. Foi nessas condições que ela ditou, por incorporação, numa noite de Natal, a seguinte mensagem:

   “Amigos, a Lorraine vos saúda! Desejo que esta festa de Natal seja nos vossos corações o símbolo da doçura, do amor, da esperança. As minhas atribuições no espaço não me permitem descer frequentemente até vós. Eu vos devia estas poucas palavras, porque a minha afeição vos é dedicada. Vim aqui trabalhar convosco; pensei e orei convosco.

   Eu desejo que Deus abençoe a vossa obra e que ela faça o bem aos franceses e às francesas apaixonados pelo Celtismo e pela lembrança da raça. Esta raça francesa inviolável na sua essência, sempre impregnada pela centelha divina, não pode perecer! É pelos bons escritos que vós a fareis amar.

   Unamos o pensamento de Deus à França, para que ele envie as suas volutas de amor, a fim de regenerar os nossos irmãos e irmãs que tudo ignoram de Deus. Vós desejais associar a pastora de Lorraine à vossa obra. Durante toda a minha vida terrestre, fui impregnada pela centelha céltica. Ela manteve em mim a chama do ideal patriótico, como também os germes da fé transmitida pelo primeiro druida. Eu os sentia sob a forma de uma vitalidade particular, feita do culto da tradição e do reflexo das leis imutáveis, retiradas das fontes da vida universal.

   Eu fui o modesto instrumento vibratório que recebia a inspiração de Deus. Dessa terra lorena, que vós amais, eu levei, através da França, as radiações interligadas pelos séculos, e foi uma honra para mim poder unir as almas perdidas e as vontades vacilantes.

   Se o vosso coração vos impõe falar da Lorraine, de suas emanações célticas, dizei que Jeanne, a pobre pastora de Domremy, foi o dócil instrumento que ouvia as vozes dos espíritos bem-amados, prova de que o raio céltico não estava extinto sobre o solo de França.

   O amor de Deus, o do país e do próximo são as essências, as mais suaves, as mais luminosas, transmitidas pelo raio recebido, outrora, pelos druidas. Ele se estendia e se esparramava da Bretagne à Lorraine, daí se irradiando do oeste para o leste.

   Se este capítulo vos dá alegria de escrever, é que ele vos foi inspirado pelos vossos bons guias e pelo vosso coração. Jeanne vos agradece que o façam. Em troca ela pedirá a Deus que sustente, na alma daqueles que lerão a vossa obra, o culto da fé em Deus todo-poderoso e bom, o amor da pátria, do solo que recebe os eflúvios celestes, o que dá ao coração a doce alegria de amar no reconforto e na esperança.”

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(i) Maurice Barrès, Le Mystère en pleine Lumière, pp. 189 e 190.
(ii) Página 200 da obra acima citada.
(iii) As druidisas, segundo Dupiney de Vorepierre, predisseram o futuro de Aureliano, de Alexandre Severo e de Diocleciano.
(iv) Ver o meu livro Joana d’Arc, Médium.
(v) Crónica do Cerco de Orléans.




LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO VI – A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica 3 de 3, 21º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)