Capítulo VI
A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica (III)
A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica (III)
Voltemos à vertente lorena dos Vosges. É preciso ter frequentado
por longo tempo essas regiões, visitado esses lagos, essas torrentes, essas
cascatas, tudo quanto alegra ou varia a cada passo a paisagem, para compreender
e sentir o encanto penetrante, a doce magia que se forma nessa região e
predispõe a alma ao recolhimento e ao devaneio.
Eu gostava de conversar com os lenhadores e os carvoeiros da
floresta de Vosges e constatei que se reencontra entre eles tudo o que
caracteriza a raça céltica, a elevada estatura, a alegria, a hospitalidade, o
amor à independência.
Bismarck dizia dos lorenos, após 1871: “Esses elementos são
muito indigestos”. Isto me lembra uma discussão que tive em Schlucht, com
alemães, no dia seguinte à anexação da Alsácia ao seu império. Como a disputa
se inflamou e eu era o único francês, fiquei surpreso ao ver, de repente,
saírem do bosque homens de alta estatura, com as faces negras. Eram os
carvoeiros lorenos que tinham ouvido tudo e vinham, no momento oportuno, prestar-me
ajuda.
Mas é sobretudo o vale do Meuse que faz voltar as minhas
lembranças e afectos. A minha cidade natal, o lugar do meu último nascimento,
está separada de Vaucouleurs por uma floresta; as minhas excursões a Domremy e
aos seus arredores são incontáveis. Uma atracção poderosa me reconduz a ela. A
colina de Bermont, com os seus bosques densos, as suas fontes sagradas, a velha
capela onde Joana d’Arc ia sempre orar, conservou todo o seu encanto poético. O
bosque Chenu está mais devastado, mas a fonte de Groseilliers sempre faz ouvir
o seu doce murmúrio. A sumptuosa basílica moderna, apesar da sua ostentação,
não esconde a humilde igreja da vila onde Joana foi baptizada.
Sobre todo o vale plana uma atmosfera de misticismo que
impressiona a alma pensativa e recolhida. Os espíritos flutuam no ar,
inspirando os escritores mais refractários; é assim que Maurice Barrès, que nem
sempre foi delicado para os espíritas, mas tão bom loreno pelo coração,
escrevia o seguinte:
“Em Jeanne nós
vemos agir, sem o seu conhecimento, as velhas fantasias célticas. O Paganismo
cerca e assedia esta santa cristã. A donzela honra os santos, mas,
instintivamente, prefere aqueles que abrigam, sob as suas invocações, as fontes
encantadas.
As diversas potências religiosas espalhadas nesse vale do
Meuse, ao mesmo tempo céltico, latino e católico, Jeanne as acolhe e as harmoniza; deveria ela morrer por efeito de
sua nobreza natural... As fontes druídicas, as ruínas latinas e as velhas
igrejas romanas formam um concerto. Toda essa natureza separada desperta em nós
o amor de uma causa perdida na qual Jeanne
é o tipo ideal. Enquanto tivermos um coração céltico e cristão, não cessaremos
de amar essa fada que transformamos em uma santa.” (i)
Merlin, o encantador, profetizou a sua vinda, como se
assegura? O caso é possível, mas foi muito contestado e não insistiremos nesse
particular. O certo é que “ela foi anunciada, desejada, esperada, prevista, do
âmago de uma raça que sempre pôs a sua esperança e a sua fé no olhar inspirado
das virgens”. (ii)
E Maurice Barrès chega a atribuir às influências célticas
que iluminam a infância de Joana uma das causas de sua condenação.
Como Joana, eu gostava de visitar os bosques, as fontes
sagradas, as árvores seculares em volta das quais se desenvolvia o “círculo das
fadas”. Mas, quem eram essas fadas de que se trata um pouco por todas as partes
da Lorraine? Sem dúvida, uma vaga e longínqua lembrança das druidisas de
vestidos brancos, celebrando o seu culto sob os raios prateados da Lua.
Edouard Schuré, no seu belo livro Les Grandes Légendes de France, escreveu:
“As druidisas eram também chamadas de fadas, isto é, seres
semidivinos, capazes de revelar o futuro… (iii)
A origem dos druidas remonta à noite dos tempos, à aurora da
raça branca. As druidisas são talvez mais antigas ainda, se nos basearmos em
Aristóteles, que atribui o culto de Apolo de Delos a sacerdotisas
hiperboreanas. As druidisas foram em princípio as inspiradas livres, as
pitonisas da floresta. Os druidas serviram-se delas, inicialmente, como
pacientes sensíveis, aptas à clarividência, à adivinhação. Com o tempo elas se
emanciparam, formaram colégios femininos e, ainda que submetidas
hierarquicamente à autoridade dos druidas, agiam por seu próprio impulso.”
Daí resultou certo abuso de poder, particularmente no que se
refere aos sacrifícios humanos, mas Edouard Schuré considera a questão sob
plano superior e acrescenta:
“A acção é a origem de tudo. A ideia da vidente, da visão
espiritual da alma que vê e possui o mundo interior, superior à realidade
visível, domina toda a lenda e aí lança como que raios de luz.”
Joana d’Arc era, então, por excelência, uma alma céltica,
uma imagem desses seres predestinados, desde a aurora da história, às formas
mais elevadas do sacerdócio feminino e da adivinhação. Não estava ela sob a
possessão das mais altas faculdades psíquicas: visão, audição, pressentimentos,
premonições? Seja nos interrogatórios dos examinadores e dos juízes, seja nas
discussões dos conselhos ou mesmo no tumulto dos combates, ela sempre teve a
intuição daquilo que devia dizer e fazer. (iv)
Tudo isso numa jovem sem instrução, que não tinha sequer
vinte anos. E que cena nesse terrível drama! Trata-se da salvação da França, de
saber se ela será inglesa. Mas, como Joana nos vai dizer mais adiante, ela era
“o modesto instrumento vibratório que recebia a inspiração do mundo invisível”.
Sim, certamente, ela era agente do mundo invisível,
missionária celeste. Quando os homens aprenderem a conhecer a vida que reina
sobre as esferas superiores e nos espaços etéreos, saberão que Deus criou uma
classe de espíritos angélicos e puros, a quem ele reserva missões dolorosas,
missões de devotamento e sacrifício, pela salvação dos povos e reabilitação da
humanidade. Cristo, Joana d’Arc e outros pertencem a esta ordem de espíritos.
Quando eles descem aos mundos materiais encarnam sempre nas classes mais
humildes para ali dar o exemplo da simplicidade, do trabalho e do desinteresse.
Houve excepção para Buda, nascido em berço de ouro, e que mais tarde abandonou
o seu palácio e a sua esposa, para penetrar na selva. Maomé também, no início,
era um obscuro cameleiro.
Todos esses missionários são fáceis de reconhecer pelos
eflúvios possantes que deles emanam e que impressionam as multidões. Parece que
eles têm um raio divino sobre as suas frontes e nos seus corações. Era o caso
de Joana d’Arc, segundo o testemunho do cidadão de Orléans que dizia: “É uma
alegria vê-la e ouvi-la.” (v)
Ainda agora, quando lhe agrada, às vezes, nos visitar, o
espírito de Joana se anuncia nas nossas reuniões por uma viva radiação
luminosa. Ela aparece ao vidente, em transe, sob uma forma cujo esplendor é
difícil de fitar directamente. Foi nessas condições que ela ditou, por
incorporação, numa noite de Natal, a seguinte mensagem:
“Amigos, a Lorraine vos saúda! Desejo que esta festa de
Natal seja nos vossos corações o símbolo da doçura, do amor, da esperança. As minhas
atribuições no espaço não me permitem descer frequentemente até vós. Eu vos
devia estas poucas palavras, porque a minha afeição vos é dedicada. Vim aqui
trabalhar convosco; pensei e orei convosco.
Eu desejo que Deus abençoe a vossa obra e que ela faça o bem
aos franceses e às francesas apaixonados pelo Celtismo e pela lembrança da
raça. Esta raça francesa inviolável na sua essência, sempre impregnada pela
centelha divina, não pode perecer! É pelos bons escritos que vós a fareis amar.
Unamos o pensamento de Deus à França, para que ele envie as
suas volutas de amor, a fim de regenerar os nossos irmãos e irmãs que tudo
ignoram de Deus. Vós desejais associar a pastora de Lorraine à vossa obra. Durante
toda a minha vida terrestre, fui impregnada pela centelha céltica. Ela manteve
em mim a chama do ideal patriótico, como também os germes da fé transmitida
pelo primeiro druida. Eu os sentia sob a forma de uma vitalidade particular,
feita do culto da tradição e do reflexo das leis imutáveis, retiradas das
fontes da vida universal.
Eu fui o modesto instrumento vibratório que recebia a
inspiração de Deus. Dessa terra lorena, que vós amais, eu levei, através da França,
as radiações interligadas pelos séculos, e foi uma honra para mim poder unir as
almas perdidas e as vontades vacilantes.
Se o vosso coração vos impõe falar da Lorraine, de suas
emanações célticas, dizei que Jeanne,
a pobre pastora de Domremy, foi o dócil instrumento que ouvia as vozes dos
espíritos bem-amados, prova de que o raio céltico não estava extinto sobre o
solo de França.
O amor de Deus, o do país e do próximo são as essências, as
mais suaves, as mais luminosas, transmitidas pelo raio recebido, outrora, pelos
druidas. Ele se estendia e se esparramava da Bretagne à Lorraine, daí se
irradiando do oeste para o leste.
Se este capítulo vos dá alegria de escrever, é que ele vos
foi inspirado pelos vossos bons guias e pelo vosso coração. Jeanne vos agradece que o façam. Em
troca ela pedirá a Deus que sustente, na alma daqueles que lerão a vossa obra,
o culto da fé em Deus todo-poderoso e bom, o amor da pátria, do solo que recebe
os eflúvios celestes, o que dá ao coração a doce alegria de amar no reconforto
e na esperança.”
/…
(i) Maurice Barrès, Le
Mystère en pleine Lumière, pp. 189 e 190.
(ii) Página 200 da
obra acima citada.
(iii) As druidisas,
segundo Dupiney de Vorepierre, predisseram o futuro de Aureliano, de Alexandre
Severo e de Diocleciano.
(iv) Ver o meu livro Joana d’Arc, Médium.
(v) Crónica do Cerco
de Orléans.
LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível,
Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO VI – A
Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica 3 de 3, 21º fragmento
da obra.
(imagem de ilustração: A Apoteose dos heróis
franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura
de Anne-Louis
Girodet-Trioson)
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