Duas Sentenças que Resumem o Sentimento Filosófico do Poeta
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Victor
Hugo foi, não em vão, um grande propulsor do romantismo espiritualista
de França. O seu génio poético só podia desenvolver-se e nutrir-se numa
corrente literária transcendente e espiritual, já que através dela pôde
penetrar nas chamadas ''reminiscências platónicas'' e nessas ''distâncias da
alma'' em que só pode mesmo penetrar o poeta palinginésico.
O romantismo é como uma evasão do ser deste mundo
objectivado. José Ferrater Mora,
autor do Dicionário de Filosofia, ao referir-se ao romantismo
disse: "Por isso, no movimento romântico existe, junto a uma decidida
preocupação com o oculto e o ausente, uma ressurreição do religioso, uma
concepção da história com o drama do homem e do seu destino e, em
última instância, como uma revelação de Deus no ser finito do mundo''.
Victor Hugo, de facto, sentiu em toda a sua existência um
como que chamamento profundo surgido do ausente, das distâncias
históricas onde a alma deixou gravadas as suas pegadas. Compreende que tudo
na criação fala e que o passado, o presente e o futuro se entrelaçam
harmoniosamente e que em cada um dos períodos do devir do Ser a
essência da alma reconstrói o passado para marcar o presente e projectar-se
sobre o seu futuro existencial.
Em uma das suas sentenças mais profundas, como já vimos,
deixou expresso com nitidez o seu sentimento palingenésico: "O
berço tem um ontem e o túmulo tem um amanhã"; daí serem as bases do
seu romantismo nitidamente palingenésicas. No chamado "romantismo de
Jena", a poesia se manifestou como uma torneira aberta cujas águas provêm
de torrentes espirituais relacionadas com a reencarnação das almas.
Poetas como Schelling, Hõlderlin, Novalis, Tieck e outros
viveram possuídos pela ideia do ausente e distante, cuja raiz se funde nos
abismos espirituais do Ser, ou seja, nas distantes vidas onde os seus
espíritos cantaram e choraram sem serem jamais calados pela morte.
Victor Hugo viveu sentindo em si mesmo esse imperativo
palingenésico, em que o génio poético do século passado percebeu uma
nova revelação espiritual. A poesia foi, é e será sempre palingenésica;
ela, ainda que a crítica se oponha a este conceito, será sempre uma
chama de fogo a iluminar os longínquos dias das idades. Porque a poesia
é um fluir do interno para o externo, quer dizer, dessa vida profunda e
imortal que dá ser e personalidade a tudo o que existe.
O poeta de Os Miseráveis, referindo-se
ao verdadeiro homem, dizia: ''O corpo bem poderia não ser mais que uma
aparência. Ele cobre a nossa realidade; ele se interpõe entre a nossa luz e a
nossa sombra: a realidade da alma. Claramente falando, a nossa cara é uma
máscara. O verdadeiro homem é aquele que está por trás do homem. Se
se olhasse bem esse homem oculto e guarnecido por trás dessa ilusão que se
chama carne, ter-se-ia mais de uma surpresa".
O ser encarnado, melhor dizendo, reencarnado era para Hugo uma
aparência existencial cuja realidade está na essência espiritual que determina
os mais variados fenómenos da história. Considerava o processo visível uma
trama que tem origem no invisível. A poesia de Victor Hugo foi como a entrada
num novo mundo religioso onde os espíritos são as alavancas invisíveis
de tudo o que se manifesta de forma visível.
A existência espiritual desencarnada que o poeta aceitava
coincidia com a ideia da pessoa no Ser, ou seja, com esse homem de carne e osso
imortal de Miguel
de Unamuno. O Espírito, na sua condição de desencarnado, não é uma
abstracção indefinida, como ainda concebe o espiritualismo clássico. A vida
do Ser no eterno possui para Hugo um perispírito objectivo, sendo portanto uma
realidade vivente com um eu pessoal que actua no material a
partir dos planos invisíveis.
É isso o que nos mostra na seguinte sentença: "A
borboleta é o verme metamorfoseado, mas a metamorfose é tão perfeita que se
acredita ver uma nova criatura. Do mesmo modo, na nossa existência do
além-túmulo não seremos puros espíritos porque estas palavras
são vazias de sentido, tanto para a razão como para a imaginação.
"O que é uma vida sem os órgãos da vida? O que a define
e o que a fixa? Na verdade, nós teremos outro corpo semelhante,
radiante, divino e, por assim dizer, espiritual, que será a transformação
do nosso corpo terrestre''.
A realidade espiritual do homem era, para o poeta,
objectivamente existencial e não uma abstracção, pois a vida do além-túmulo é
para Hugo como um alto e imenso cume, onde o espírito se resume
dialecticamente. Por isso, disse: "Todos os seres são, foram e
serão".
Em outra passagem, dizia o poeta: "Os mortos
são os invisíveis e não os ausentes''. Com este pensamento, ele uniu as
vidas passadas das almas com a imortalidade de suas eternas naturezas. Sentiu,
por isso, a presença do mundo invisível como uma realidade inteligente
e comunicante. E este mundo invisível era para Victor Hugo o mundo dos espíritos
tal como está desenhado na obra de Allan Kardec. A
sua vida íntima nunca esteve rodeada de solidão e de vazio. A solidão em
Hugo era como um médium que lhe permitia entrar em relação com os erradamente
chamados mortos, pois, como grande romântico que era não cria no silêncio
aterrador dos túmulos. Ele sabia, pelo fenómeno poético que diariamente
experimentava, que é no invisível onde vivem os nossos seres queridos com os
seus corpos espirituais, as suas paixões e os seus amores, esperando a
oportunidade para revelarem-nos as suas inegáveis identidades. Porque, se
"os mortos são os invisíveis e não os ausentes", como dizia, a
humanidade está entrelaçada com a vida dos mortos tal como demonstra
agora a filosofia espírita.
Nos arquivos da Revue Spirite, de Paris,
encontra-se um trabalho de Léon Denis em que
ele se refere a Victor Hugo e à sua compreensão do mundo invisível, como se vê
a seguir: "Louis Barthon, da Academia Francesa, depois de consultar
os Apontamentos inéditos do poeta, escreveu na Revue de
Deux Mondes (número 15, de dezembro de 1918, páginas 751
a 757) o que vamos transcrever: ''Madame Émile de Girardin,
tendo ido passar dez dias em Jersey,
introduziu ali a prática das mesas girantes e falantes". Como se sabe,
Victor Hugo foi o último a ceder perante este fenómeno mediúnico. Mas
desde que elas (as mesas) o convenceram, as entidades comunicantes não o
abandonaram jamais, exercendo sobre o seu pensamento influências espirituais
revolucionárias.
"Continua dizendo Louis Barthon que na noite de 30 de
março de 1857 o poeta percebe a noção de uma nova concepção metafísica,
a qual descreve com data de 24 de outubro no seu caderno de apontamentos.
Vejamos como capta a presença do invisível através de sua própria relação:
'Esta noite eu não dormia. Eram cerca das três da madrugada. Um golpe
seco, muito forte, se produziu aos pés da minha cama, contra a porta da minha
habitação. Pensei em minha filha morta e disse para mim: És tu? Pois eu
pensava no complô bonapartista, segundo se falava, em um novo dois de dezembro
possível e me perguntava: É uma advertência? E acrescentava mentalmente:
Se és realmente tu que estás aí e se vens advertir-me na ocasião deste complô,
dá dois golpes. E por cerca de meia hora escuto. A noite era profunda e tudo em
casa silêncio. De repente se fazem ouvir dois golpes contra a porta.
Desta vez eram surdos mas distintamente muito leves".
Louis Barthon prossegue em seu relato: "Em 21 de
novembro de 1874 Victor Hugo escrevia o seguinte: 'Esta noite despertei e
percebi no ouvido, muito próximo de mim, na minha cabeceira, leves pancadas
surdas. Eram lentas e regulares, durando um quarto de hora. Eu escutava e não
cessavam. Por isso, orei; quando cessaram, disse: se és tu, minha filha, ou tu,
meu filho, dá dois golpes. Ao fim de dez minutos, mais ou menos, dois golpes se
deram, mas contra a parede perto da cama. Mentalmente disse: é um
conselho o que tu trazes? Devo abandonar Paris? Devo permanecer? Se
devo ficar, dá um golpe. Se devo partir, dá três golpes. Escuto! Nenhuma
resposta ainda. Acabo dormindo. O fenómeno dura quase uma hora'.
"No caderno de apontamentos do poeta, com data de 22 de
novembro de 1874, lê-se o seguinte: 'Esta noite escutei três golpes.
Será a resposta à pergunta de ontem? Seria pouco clara ao ser tão
demorada'.
Léon Denis afirma que no mesmo caderno mencionam-se
apontamentos nocturnos de carácter mediúnico obstinados, surdos e ainda
metálicos e doces, tão comoventes que o poeta terminou por crer na
possibilidade de um pronunciamento bonapartista do qual ele seria a primeira
vítima (ver La Revue Spirite, de março/abril de
1952).
Diz ainda Denis que na página 157 do caderno se lê:
"Esta noite, cerca das duas horas, senti golpes na minha porta, que estava
aberta, sem que pessoa alguma houvesse ali de forma evidente. Credo in Deum
eternum et in animan inmortalem".
Como se verá, os fenómenos mediúnicos experimentados por
Victor Hugo não são vãos nem intranscendentes. Têm a virtude de
haver elevado a alma do poeta até Deus e de fazê-lo crer no espírito imortal.
Este mesmo facto se operou no ânimo de seu compatriota Gabriel Marcel, o
distinto filósofo católico, a quem os fenómenos mediúnicos influenciaram
notavelmente para a elaboração do seu pensamento filosófico. Victor Hugo, pois,
não se equivocou quando disse: "Evitar o fenómeno espírita é fazer
bancarrota com a verdade".
/…
Humberto Mariotti, Victor Hugo Espírita, Duas Sentenças que Resumem o Sentimento Filosófico do Poeta, 8º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Criança com uma boneca,
pintura de Anne-Louis
GIRODET-TRIOSON)
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