Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Victor Hugo e o invisível ~


Duas Sentenças que Resumem o Sentimento Filosófico do Poeta ~

   Victor Hugo foi, não em vão, um grande propulsor do romantismo espiritualista de França. O seu génio poético só podia desenvolver-se e nutrir-se numa corrente literária transcendente e espiritual, já que através dela pôde penetrar nas chamadas ''reminiscências platónicas'' e nessas ''distâncias da alma'' em que só pode mesmo penetrar o poeta palinginésico.

   O romantismo é como uma evasão do ser deste mundo objectivado. José Ferrater Mora, autor do Dicionário de Filosofia, ao referir-se ao romantismo disse: "Por isso, no movimento romântico existe, junto a uma decidida preocupação com o oculto e o ausente, uma ressurreição do religioso, uma concepção da história com o drama do homem e do seu destino e, em última instância, como uma revelação de Deus no ser finito do mundo''.

   Victor Hugo, de facto, sentiu em toda a sua existência um como que chamamento profundo surgido do ausente, das distâncias históricas onde a alma deixou gravadas as suas pegadas. Compreende que tudo na criação fala e que o passado, o presente e o futuro se entrelaçam harmoniosamente e que em cada um dos períodos do devir do Ser a essência da alma reconstrói o passado para marcar o presente e projectar-se sobre o seu futuro existencial.

   Em uma das suas sentenças mais profundas, como já vimos, deixou expresso com nitidez o seu sentimento palingenésico: "O berço tem um ontem e o túmulo tem um amanhã"; daí serem as bases do seu romantismo nitidamente palingenésicas. No chamado "romantismo de Jena", a poesia se manifestou como uma torneira aberta cujas águas provêm de torrentes espirituais relacionadas com a reencarnação das almas. Poetas como SchellingHõlderlinNovalisTieck e outros viveram possuídos pela ideia do ausente e distante, cuja raiz se funde nos abismos espirituais do Ser, ou seja, nas distantes vidas onde os seus espíritos cantaram e choraram sem serem jamais calados pela morte.

   Victor Hugo viveu sentindo em si mesmo esse imperativo palingenésico, em que o génio poético do século passado percebeu uma nova revelação espiritual. A poesia foi, é e será sempre palingenésica; ela, ainda que a crítica se oponha a este conceito, será sempre uma chama de fogo a iluminar os longínquos dias das idades. Porque a poesia é um fluir do interno para o externo, quer dizer, dessa vida profunda e imortal que dá ser e personalidade a tudo o que existe.

   O poeta de Os Miseráveisreferindo-se ao verdadeiro homem, dizia: ''O corpo bem poderia não ser mais que uma aparência. Ele cobre a nossa realidade; ele se interpõe entre a nossa luz e a nossa sombra: a realidade da alma. Claramente falando, a nossa cara é uma máscara. O verdadeiro homem é aquele que está por trás do homem. Se se olhasse bem esse homem oculto e guarnecido por trás dessa ilusão que se chama carne, ter-se-ia mais de uma surpresa".

   O ser encarnado, melhor dizendo, reencarnado era para Hugo uma aparência existencial cuja realidade está na essência espiritual que determina os mais variados fenómenos da história. Considerava o processo visível uma trama que tem origem no invisível. A poesia de Victor Hugo foi como a entrada num novo mundo religioso onde os espíritos são as alavancas invisíveis de tudo o que se manifesta de forma visível.

   A existência espiritual desencarnada que o poeta aceitava coincidia com a ideia da pessoa no Ser, ou seja, com esse homem de carne e osso imortal de Miguel de UnamunoO Espírito, na sua condição de desencarnado, não é uma abstracção indefinida, como ainda concebe o espiritualismo clássico. A vida do Ser no eterno possui para Hugo um perispírito objectivo, sendo portanto uma realidade vivente com um eu pessoal que actua no material a partir dos planos invisíveis.

   É isso o que nos mostra na seguinte sentença: "A borboleta é o verme metamorfoseado, mas a metamorfose é tão perfeita que se acredita ver uma nova criatura. Do mesmo modo, na nossa existência do além-túmulo não seremos puros espíritos porque estas palavras são vazias de sentido, tanto para a razão como para a imaginação.

   "O que é uma vida sem os órgãos da vida? O que a define e o que a fixa? Na verdade, nós teremos outro corpo semelhante, radiante, divino e, por assim dizer, espiritual, que será a transformação do nosso corpo terrestre''.

   A realidade espiritual do homem era, para o poeta, objectivamente existencial e não uma abstracção, pois a vida do além-túmulo é para Hugo como um alto e imenso cume, onde o espírito se resume dialecticamente. Por isso, disse: "Todos os seres são, foram e serão".

   Em outra passagem, dizia o poeta: "Os mortos são os invisíveis e não os ausentes''. Com este pensamento, ele uniu as vidas passadas das almas com a imortalidade de suas eternas naturezas. Sentiu, por isso, a presença do mundo invisível como uma realidade inteligente e comunicante. E este mundo invisível era para Victor Hugo o mundo dos espíritos tal como está desenhado na obra de Allan KardecA sua vida íntima nunca esteve rodeada de solidão e de vazio. A solidão em Hugo era como um médium que lhe permitia entrar em relação com os erradamente chamados mortos, pois, como grande romântico que era não cria no silêncio aterrador dos túmulos. Ele sabia, pelo fenómeno poético que diariamente experimentava, que é no invisível onde vivem os nossos seres queridos com os seus corpos espirituais, as suas paixões e os seus amores, esperando a oportunidade para revelarem-nos as suas inegáveis identidades. Porque, se "os mortos são os invisíveis e não os ausentes", como dizia, a humanidade está entrelaçada com a vida dos mortos tal como demonstra agora a filosofia espírita.

   Nos arquivos da Revue Spirite, de Paris, encontra-se um trabalho de Léon Denis em que ele se refere a Victor Hugo e à sua compreensão do mundo invisível, como se vê a seguir: "Louis Barthon, da Academia Francesa, depois de consultar os Apontamentos inéditos do poeta, escreveu na Revue de Deux Mondes (número 15, de dezembro de 1918, páginas 751 a 757) o que vamos transcrever: ''Madame Émile de Girardin, tendo ido passar dez dias em Jersey, introduziu ali a prática das mesas girantes e falantes". Como se sabe, Victor Hugo foi o último a ceder perante este fenómeno mediúnico. Mas desde que elas (as mesas) o convenceram, as entidades comunicantes não o abandonaram jamais, exercendo sobre o seu pensamento influências espirituais revolucionárias.

   "Continua dizendo Louis Barthon que na noite de 30 de março de 1857 o poeta percebe a noção de uma nova concepção metafísica, a qual descreve com data de 24 de outubro no seu caderno de apontamentos. Vejamos como capta a presença do invisível através de sua própria relação: 'Esta noite eu não dormia. Eram  cerca das três da madrugada. Um golpe seco, muito forte, se produziu aos pés da minha cama, contra a porta da minha habitação. Pensei em minha filha morta e disse para mim: És tu? Pois eu pensava no complô bonapartista, segundo se falava, em um novo dois de dezembro possível e me perguntava: É uma advertência? E acrescentava mentalmente: Se és realmente tu que estás aí e se vens advertir-me na ocasião deste complô, dá dois golpes. E por cerca de meia hora escuto. A noite era profunda e tudo em casa silêncio. De repente se fazem ouvir dois golpes contra a porta. Desta vez eram surdos mas distintamente muito leves".

   Louis Barthon prossegue em seu relato: "Em 21 de novembro de 1874 Victor Hugo escrevia o seguinte: 'Esta noite despertei e percebi no ouvido, muito próximo de mim, na minha cabeceira, leves pancadas surdas. Eram lentas e regulares, durando um quarto de hora. Eu escutava e não cessavam. Por isso, orei; quando cessaram, disse: se és tu, minha filha, ou tu, meu filho, dá dois golpes. Ao fim de dez minutos, mais ou menos, dois golpes se deram, mas contra a parede perto da cama. Mentalmente disse: é um conselho o que tu trazes? Devo abandonar Paris? Devo permanecer? Se devo ficar, dá um golpe. Se devo partir, dá três golpes. Escuto! Nenhuma resposta ainda. Acabo dormindo. O fenómeno dura quase uma hora'.

   "No caderno de apontamentos do poeta, com data de 22 de novembro de 1874, lê-se o seguinte: 'Esta noite escutei três golpes. Será a resposta à pergunta de ontem? Seria pouco clara ao ser tão demorada'.

   Léon Denis afirma que no mesmo caderno mencionam-se apontamentos nocturnos de carácter mediúnico obstinados, surdos e ainda metálicos e doces, tão comoventes que o poeta terminou por crer na possibilidade de um pronunciamento bonapartista do qual ele seria a primeira vítima (ver La Revue Spirite, de março/abril de 1952).

   Diz ainda Denis que na página 157 do caderno se lê: "Esta noite, cerca das duas horas, senti golpes na minha porta, que estava aberta, sem que pessoa alguma houvesse ali de forma evidente. Credo in Deum eternum et in animan inmortalem".

   Como se verá, os fenómenos mediúnicos experimentados por Victor Hugo não são vãos nem intranscendentes. Têm a virtude de haver elevado a alma do poeta até Deus e de fazê-lo crer no espírito imortal. Este mesmo facto se operou no ânimo de seu compatriota Gabriel Marcel, o distinto filósofo católico, a quem os fenómenos mediúnicos influenciaram notavelmente para a elaboração do seu pensamento filosófico. Victor Hugo, pois, não se equivocou quando disse: "Evitar o fenómeno espírita é fazer bancarrota com a verdade".

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Duas Sentenças que Resumem o Sentimento Filosófico do Poeta, 8º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

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