Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

agonia das religiões ~


Religião | como facto social

O homem contemporâneo, vivendo numa fase de crise universal, determinada por mudanças rápidas em todos os campos de sua actividade, defronta-se com um grave problema subjectivo: ser ou não ser religioso. Os estudos sobre a origem e o desenvolvimento da Religião, a sua natureza, a sua significação para o comportamento humano, os seus efeitos na dinâmica social e nos processos de renovação das estruturas económicas e administrativas da sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais especificamente das pesquisas científicas, oferecem-lhe opções contraditórias que não levam a nenhuma solução, agravando a crise com o levantamento de novos conflitos aparentemente insanáveis.

Culturalmente marginalizada, a partir do Renascimento, a Religião se transformou numa questão opinativa. Para os materialistas e ateus é apenas um resíduo do passado supersticioso; para os pragmáticos, uma questão de conveniência; para os espiritualistas, um problema vital, do qual depende a própria sobrevivência da Humanidade. As posições opiniáticas, em todas essas áreas, geram a desconfiança e a indiferença no seio das massas populares, desprovidas de elementos para uma avaliação do problema e muito menos para a sua equação.

O que hoje se convencionou chamar de Ciência da Religião, abrangendo vários aspectos da questão religiosa em diversas perspectivas científicas, fora do campo religioso, se apresenta como análise fria do processo religioso, com base nos dados objectivos da História. Mesmo a Psicologia das Religiões se vê obrigada a pairar no plano das estruturas das escolas psicológicas, sem mergulhar na essência do fenómeno religioso, sob pena de perder a sua qualificação científica.

Acontece com a Religião o mesmo que verificamos no tocante ao problema da vida, cuja solução se busca no pressuposto de que o impulso vital se origina no campo dos aminoácidos. A matéria, considerada como a fonte de toda a energia – apesar da comprovação cientifica actual de que é o produto da acumulação energética – mantém-se na posição de geradora da vida. Assim também se busca o segredo da Religião nas suas formas de manifestação, na sua estrutura e no seu funcionamento, como se ela se originasse das entranhas do homem e não das profundezas do seu psiquismo. A vida, a alma, o sentimento e o pensamento não seriam mais do que epifenómenos, eclosões efémeras do fenómeno orgânico, destinadas a desaparecer com este.

Não pretendo promover uma revolução copérnica no assunto, mas apenas mostrar, se possível, a conveniência de uma mudança de posição. Basta encararmos a Religião como um facto social, segundo a tese de Durkheim, sem nos limitarmos aos aspectos puramente estruturais e funcionais do facto em si, para que as perspectivas da análise se tornem mais amplas e flexíveis. Religião e Sociedade se mostram conjugadas indissoluvelmente no plano histórico. Se tomarmos como exemplo o clã judaico de Abraão, do grupo étnico dos Habiru, na Caldéia, veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma nova sociedade e uma nova religião que iriam exercer papel fundamental no desenvolvimento da civilização. Ambas, sociedade e religião, nasciam no seio de outra sociedade e outra religião, organizadas, tradicionais, e delas se distinguiam pelas características étnicas e pela destinação histórica tipicamente carismática, determinada pela tendência monoteísta do clã, sob o impulso de crenças que se corporificavam nas manifestações de entidades mitológicas. Abraão, Isaac e Jacob assumiram a direcção do clã e o levariam, através do Egipto, às terras de Canaã, na Palestina, na sangrenta epopeia dos relatos bíblicos.

Temos de distinguir no caso dois elementos conjugados que provocam o nascimento da nova religião: primeiro, o elemento étnico, determinante do agrupamento social; segundo, o elemento mítico, determinante da nova orientação religiosa. Este último não se mostra como subjectivo, mas caracteriza-se pela sua objectividade. É a intervenção activa de influências exógenas na vida do clã, provenientes de manifestações concretas de entidades espirituais. Por mais que isso possa repugnar aos adeptos da interpretação psicológica dos factos, que só aceitam as manifestações espirituais como de ordem subjectiva, os resultados das pesquisas modernas e contemporâneas no campo das Ciências Psíquicas, actualmente confirmadas pelas pesquisas parapsicológicas, com a anterior comprovação das pesquisas metapsíquicasmostram que a intervenção espiritual poderia ter sido objectiva, segundo a descrição dos relatos bíblicos.

Admitindo-se a realidade dessa manifestação concreta, que corresponde a milhares de outras verificadas em todas as latitudes do planeta, podemos chegar à conclusão de que as religiões se originam de uma conjugação de factores humanos e espirituais, nenhum deles podendo ser excluído da análise honesta do facto social, sem que se pratique uma violência contra a realidade mundialmente comprovada. Os fenómenos paranormais aparecem então como o elemento básico do facto social a que chamamos religião. E não é possível, nas condições actuais do desenvolvimento das Ciências, mesmo no plano da Física, opor a essa realidade o simples desmentido dos argumentos, sem provas científicas evidentes da sua impossibilidade.

Assim, a colocação do problema religioso de maneira opiniática, em termos materialistas, pragmáticos ou espiritualistas, nesta altura de nossa evolução cultural, corresponderia a uma verdadeira heresia científica. Não obstante, o desenvolvimento das religiões e a sua institucionalização, em todo o mundo, oferecem motivos de suspeita aos espíritos objectivos, que pretendem analisá-las no seu estado actual. Nesse processo histórico inserem-se naturalmente os elementos do psiquismo comum, nas suas manifestações puramente subjectivas e não raro de ordem patológica. Inserem-se também os elementos psicológicos, hoje bem conhecidos, que determinam a criação do sectarismo religioso e das ordenações institucionais, cujos objectivos são característicos dos interesses sociais. Posições psicológicas individuais ou de grupos, tradições, interesses políticos, preconceitos, superstições, interesses imediatistas, às vezes até mesmo pessoais e outros são elementos que se mesclam no processo de institucionalização das religiões, não raro a partir do próprio momento e da própria fonte em que elas nascem. Mais do que difícil, é quase impossível distingui-los e precisar a importância que tiveram no processo histórico.

As religiões dividem-se em duas categorias fundamentais: as reveladas ou naturais e as inventadas ou artificiais. Independentemente das classificações existentes, podemos dispô-las nessas duas linhas de análise. A religião natural, neste caso, é a que surge espontaneamente, entre os povos primitivos ou civilizados, a partir do ensino de um mestre. As artificiais são criadas no meio civilizado, em momentos de crise religiosa, como no caso do Culto da Razão, de Chaumette, ou da Religião da Humanidade, de Auguste Comte. As reformas religiosas não criam tipos novos, apenas modificam os já existentes em virtude de divergências ou da verificação de distorções havidas no processo de institucionalização. A religião individual, da tese de Bergson, que corresponde à Moralidade da tese anterior de Pestalozzi, não se enquadra nesse panorama por constituir uma superação do plano social e uma libertação total de todo o condicionamento institucional. Não obstante, pela sua conotação inevitável com a realidade social em que se insere, embora individualmente, não escapa à classificação geral de facto social.

Temos assim uma possibilidade maior de esclarecer o que se pode entender por religião como facto social. Não é apenas um facto isolado que ocorre na dinâmica de uma sociedade, mas um facto que brota da realidade social como expressão de sua própria alma, de suas tendências e de suas aspirações, na forma de uma síntese conceptual que engloba, nas suas representações simbólicas e na sua estrutura racional, os elementos básicos do todo social concreto e os vectores ou direcções do psiquismo colectivo. Sem essa compreensão intuitiva, e portanto global, do facto social da religião, todas as formas de encarar e interpretar o fenómeno religioso nos levarão fatalmente a condicionamentos restritivos e esquemáticos, que só poderão aumentar a confusão e agravar as erros cometidos na colocação do problema.

Essa complexidade do fenómeno religioso parece ,explicar de maneira mais profunda a marginalização cultural a que a Religião foi relegada a partir do início do mundo moderno. Confinada nas instituições igrejeiras, abastardada pelo profissionalismo clerical, transformada em ópio do povo e sustentáculo de situações sociais profundamente injustas, catalogada entre os produtos espúrios das fases de ignorância supersticiosa, revertida à condição de promotora de guerras, massacres e asfixia das liberdades humanas, utilizada como arma poderosa nas mais desumanas guerras ideológicas, responsabilizada pelas mais cruéis deformações da criatura humana, a Religião se constituiu em barreira de todo o progresso cultural e foi excluída do mundo da Cultura como indesejável.

Não obstante, graças ao poder subjacente nas estruturas formais das religiões e à conotação vital dos seus princípios com as exigências naturais da consciência humana, a sua posição no processo cultural moderno e contemporâneo caracterizou-se pela ambivalência. A sua exclusão não pode ser total, nem mesmo nas áreas políticas dominadas pelo materialismo ideológico. Encarada ao mesmo tempo com ódio e respeito, numa estranha mistura de desconfiança e temor, encontrou na interpretação pragmática, utilitária, de mal necessário, o salvo-conduto que lhe permite a circulação tolerada nos meios culturais da actualidade.

Por outro lado, a sua presença nos meios culturais é sempre conflitiva. Não há possibilidade de harmonização perfeita entre cultura religiosa e cultura secular, a não ser no plano da religião individual, que rompe o envoltório formal das religiões sociais e é encarada por estas como uma aberração. O resultado mais negativo dessa situação conflitiva foi o aparecimento de outro mal necessário, a implantação mundial da Educação Leiga, que frustrou as possibilidades de reelaboração da experiência religiosa pelas novas gerações e determinou a sedimentação interesseira da sua posição de ambivalência no mundo contemporâneo. Como não podia deixar de acontecer, essa posição ambígua, indefinida e contraditória em si mesma, levou a proporções catastróficas a crise das religiões nos nossos dias.

Felizmente a natureza vital da Religião, as suas profundas raízes ônticas (e não apenas ontológicase a sua inelutável condição de síntese de toda a realidade social, determinaram o aparecimento de uma síntese cultural em que a Religião, reunificada à revelia da fragmentação institucional das religiões, ressurge entranhada na substância do progresso cultural. Não podemos tratar da crise das religiões no nosso tempo sem enquadrá-la nas dimensões desse facto cultural, onde todos os seus problemas se esclarecem de maneira coerente e profunda. As pessoas integradas no formalismo cultural do século, apegadas a princípios exclusivistas e alheias à recomendação cartesiana contra o preconceito e a precipitação, certamente rejeitarão como negativa e parcial a posição que assumo. Mas a coincidência com a verdade histórica (simplesmente incontestável) com a conflitiva realidade cultural dos nossos dias com as perspectivas científicas abertas por essa síntese cultural e já em parte realizadas, asseguram a validade desta interpretação, acima de qualquer facciosismo. Não seria possível desprezar a evidência dos factos e das conotações de princípios filosóficos e científicos com o panorama real, objectivo, das mudanças que se verificam dia-a-dia aos nossos olhos, apenas para satisfazer a determinadas normas convencionais. Acima das convenções transitórias e das conveniências de acomodação ao impreciso espírito da época, deve prevalecer o amor à verdade.

Acelera-se o processo das mudanças. Ampliam-se os conflitos entre o velho e o novo em todas as áreas das actividades humanas. Descontrolam-se os sistemas de segurança em todas as instituições. As religiões até ontem mais sólidas e poderosas agonizam nos seus leitos de riquezas milenarmente acumuladas. As teologias até ontem inabaláveis, como estrelas fixas do pensamento religioso, estremecem como a unidade pitagórica para desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as fronteiras do tempo e do espaço. O homem se equilibra, nervoso e inquieto, na fímbria tenuíssima da crosta planetária, entre dois infinitos que se escancaram nos abismos do microcosmo e do macrocosmo.

Não é esta a hora de concessões à ignorância (ilustrada ou não) nem o momento de cachimbadas líricas ao cair do crepúsculo. Estamos na hora da verdade, das proposições claras e precisas, da posição destemida de alerta e vigilância. Precisamos ver, sentir, perceber por todos os nossos sentidos e além dos sentidos, através da intuição e da percepção extra-sensorial, que as peças envelhecidas do xadrez cultural estão sendo mudadas no tabuleiro do mundo. Não há mais lugar para as contemporizações tranquilas do passado, que acobertavam piedosamente os germes dos conflitos actuais. Agora os conflitos explodem e temos de enfrentá-los face a face.

Encarando a crise das religiões como um processo sócio-cultural integrado na realidade imediata, não podemos escamotear a verdade das soluções que já foram propostas para ela com grande antecedência histórica. Trata-se, por sinal, de um processo cíclico bastante conhecido dos estudiosos da História. Só há uma novidade na crise actual: a violenta ampliação das dimensões da crise, que se abre para visões dantescas do passado e do futuro. No passado, deparamos de novo com as regiões infernais percorridas pelo génio de Dante; no futuro, com as revoadas angélicas da criação artística de Gustave DoréNão há o que temer. O passado agoniza e o futuro nos arrebata, pelas mãos de Beatriz, às regiões celestiais. Estamos pisando no limiar da Era Cósmica e as constelações já brilham aos nossos olhos.

/…


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 2 – Religião como Facto Social, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O Espiritismo na Arte ~


A Música | parte III
Apresentação das comunicações do Espírito Massenet

(Setembro de 1922)

Após o estudo da música terrestre, passaremos ao estudo das harmonias do espaço e, para isso, resumiremos as instruções que nos foram dadas pelo Espírito Massenet no decorrer de várias sessões. Neste ensinamento, o ilustre compositor age como o fazia sobre a Terra, aplicando o mesmo método dos seus cursos do Conservatório.

Primeiro, ele se ocupará do instrumento e dos meios de percepção. Porém, na vida espiritual não se trata já de instrumentos de cordas nem de sopro, como na Terra. Acontece o mesmo com as percepções, que não são já localizadas, como no corpo humano e, se estendem a todo o corpo espiritual.

A música terrestre não é mais que um eco enfraquecido e ofuscado da música celeste; é a melodia eólica produzida por pesados e grandiosos instrumentos de madeira ou de metal; é o sonho estrelado e divino expresso por formas de uma vida inferior e material. Porém, neste caso, o sonho é uma elevada realidade.

Se os nossos meios de execução, bastante rudimentares, não nos podem dar uma ideia nítida e clara das supremas harmonias, a dificuldade não é menor quando se trata de explicar, através de linguagem vulgar, as regras e as leis da grande sinfonia eterna. Esta dificuldade revelou-se-nos, principalmente no decurso das lições que recebemos do Espírito Massenet e que vamos reproduzir a seguir. Daí resulta que os termos pobres da nossa linguagem humana são impróprios para traduzir todas as belezas da obra divina.

Para exprimir as sublimidades da arte, seria necessária a própria arte, com os seus mais altos e poderosos recursos e os seus mais subtis procedimentos.

Primeira lição do Espírito Massenet
– O papel do perispírito
– Vida espiritual, instrumento e meios de percepção

“Eu me servirei dos termos e das imagens mais simples para vos fazer compreender os fenómenos do espaço. Quando desencarnardes, verificareis que radiações de uma intensidade desigual escapam do perispírito e podem atingir velocidades consideráveis.

Cada espírito, segundo o seu grau de evolução, possui um aparelho vibratório, mais ou menos perfeito, isto é, um instrumento adaptado ao seu ser. Do ser material emanam raios fluídicos pouco subtis, não azulados, cujas vibrações são quase nulas; no ser evoluído, ao contrário, o raio fluídico pode comparar-se a uma corda de um dos vossos instrumentos, muito fina, muito sensível e cujas vibrações são excessivamente agudas. O ser não evoluído possuirá essa mesma corda, como se ela estivesse mergulhada em pez (i).

Eis, agora, o ser desencarnado no espaço. Quando as suas tendências o levarem em direcção à matéria, os seus raios fluídicos transmitirão ao perispírito apenas sensações materiais. Porém, quanto mais a evolução se acentua, mais as sensações materiais se atenuam e se apagam, o feixe de raios fluídicos adquire mais subtileza, potência, delicadeza, suavidade.

Sob a influência da prece, com os conselhos e a assistência dos seus guias, esse espírito irá evoluir em uma atmosfera totalmente fluídica. As suas próprias radiações se encontrarão com as correntes fluídicas do espaço e daí resultarão sensações maravilhosas de sonoridade, percebidas por todo o ser.

ser evoluído vive em esferas fluídicas onde reinam correntes de uma intensidade inegável e de composição diversa. As ondas musicais anulam-se ao contacto imediato com o vosso planeta, cujos fluidos são demasiado materiais. É preciso subir mais alto para perceber os acordes da lira celeste. Existem mesmo seres que, sob o ponto de vista moral, são perfeitos, mas não sentem as vibrações. É necessária uma educação estética; em breve falaremos disso.”

– Comentário

O corpo humano é um instrumento complexo e maravilhoso, que se adapta ao meio terrestre e às nossas múltiplas necessidades. Porém, ele é apenas um revestimento material, relativamente grosseiro, desse corpo subtil, o perispírito, do qual Massenet nos fala e que todos nós possuímos durante a vida, como também depois da morte.

A existência desse perispírito é demonstrada pelos fenómenos de exteriorização dos vivos e pelas aparições fotografadas dos mortos, frequentemente relatadas nesta revista (ii).

Esse corpo subtil, admirável por sua flexibilidade e sensibilidade, é o envelope imperecível da alma e, da mesma forma que ela; susceptível de depuração e progresso. Ele vibra aos menores impulsos do espírito e dele transmite ao corpo físico as vibrações inevitavelmente diminuídas. Eis por que, na vida do espaço, durante o sono, assim como depois da morte, o perispírito sente mais vivamente as influências dos meios em que penetra. (iii) Ele possui recursos mais amplos, meios de percepção desconhecidos dos homens, mas, dos quais certas pessoas conservam a intuição ao despertar, depois do desprendimento e nas viagens espirituais durante a noite.

Neste conjunto que constitui o homem, a alma ou inteligência é a nota dominante. A correlação entre os dois invólucros, físico e perispiritual, relaciona-se a uma única lei: a das vibrações.

O papel e o funcionamento do perispírito permanecem como um dos problemas mais interessantes do Espiritismo; ele contém, em gérmen, todos os segredos da fisiologia e da psicologia, que se esclarecerão à medida que as nossas relações com os desencarnados se forem ampliando e multiplicando. Por este meio, obteremos novos dados sobre as condições da vida no Além e, em geral, sobre o modo de acção do espírito liberto do corpo material.

/…

(i) Pez: designação comum de substâncias betuminosas, sólidas ou semi-sólidas, naturais ou artificiais, resíduo da destilação de líquidos densos, de alcatrões, etc.; piche. (N.T.)
(ii) Trata-se da Revue Spirite, onde estes artigos foram publicados originalmente. (N.T.)
(iii) E, o que pensar da "Cremação" no contexto?!... Nota desta publicação.


Ainda no tema "Cremação" e, no contexto, dois aditamento como Nota desta publicação:

1. Em “O Livro dos Espíritos” questão 164. Kardec pergunta – A perturbação que se segue à separação da alma e do corpo é do mesmo grau e da mesma duração para todos os Espíritos?

A resposta dos Espíritos – Não; depende da elevação de cada um. Aquele que já está purificado reconhece-se quase imediatamente, visto que se libertou da matéria antes que cessasse a vida do corpo; ao passo que o homem carnal, aquele cuja consciência ainda não está pura, guarda durante muito mais tempo a impressão da matéria.

2. Em “Rumo às Estrelas” de Dennis Bradley, Livro 3 – Diálogos com Johannes / Capítulo VI – Destruição da religião do Cristo / 192. Bradley, questiona o Espírito Johannes:

Bradley – E sobre a cremação, que nos diz? Para mim isso não representa nenhum problema, já que pouco me importa o que suceda ao corpo depois que o espírito o abandona. Pergunto-o em atenção aos que pensam de modo diferente.

Johannes – Faço-o saber, meu filho, que você tem o hábito de tirar conclusões muitas vezes bem prematuras. Em certo sentido equivoca-se quanto à cremação dos cadáveres. Aos meus olhos é um crime conservar o envoltório (*) que reveste a alma e o espírito, mas por outro lado você não tem razão em crer que a súbita destruição do corpo pelo fogo não seja prejudicial. Em parte o é. Porque, como sabe, existe um frágil envoltório que rodeia a alma, o qual se dissipa pouco depois da morte. Algo parecido com uma membrana e que adquire grande sensibilidade dentro de uma semana depois da morte. Se se destrói de modo completo o corpo, esta membrana, que de certo modo ainda está ligada ao corpo, sofre grave dano e, o seu sofrimento transmite-se à parte desencarnada. Assim, portanto, não deveis sorrir dos chamados ignorantes que não crêem que o corpo se separe inteiramente do resto depois da morte. Antes que a alma e o espírito deixem as trevas para onde vão logo que deixam o corpo, essa membrana se dissipa – mas não imediatamente.

Neste ponto da comunicação alguém o interrompeu com uma pergunta: “Corpo astral?”

Johannes – Não. Tolice. Não se trata de um corpo. É algo perecível, meio corporal, meio mental, uma coisa que se dissipa depois da morte mas que os clarividentes podem ver a rodear a alma.

(*) Alusão aos egípcios, conservadores de cadáveres.



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte VIII A Música (Parte 3) – Apresentação das comunicações do Espírito Massenet; Primeira lição do Espírito Massenet – O papel do perispírito – Vida espiritual, instrumento e meios de percepção – Comentário, 26º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

domingo, 11 de setembro de 2016

Da sombra do dogma à luz da razão ~

Natureza da Revelação Espírita (XII, Resumo)

   Uma das questões mais importantes entre as que são colocadas a abrir este capítulo é esta: qual a autoridade da revelação espírita, uma vez que emana de seres cujo saber é limitado e que não são infalíveis?

   A objecção seria séria se esta revelação só consistisse nos ensinamentos dos Espíritos, se tivéssemos de a receber através deles exclusivamente e aceitá-la de olhos fechados; deixa de ter valor a partir do momento em que o homem lhe junta o concurso da sua inteligência e da sua avaliação; porque os Espíritos se limitam a colocá-lo no caminho e das deduções que pode fazer pela observação dos factos. Ora, as manifestações e as suas inúmeras variedades são factos; o homem estuda-as e procura-lhes a lei; é ajudado neste trabalho pelos Espíritos de todas as ordens, que são mais colaboradores do que reveladores, no sentido usual do termo; submete as suas falas ao controlo da lógica e do bom senso: desta maneira, beneficia dos conhecimentos especiais que devem à sua posição, sem abdicarem do uso da sua própria razão.

   Não sendo os Espíritos mais do que as almas dos homens, ao comunicarmos com eles não saímos da humanidade, circunstância capital a considerar. Os homens de génio, que foram os archotes da humanidade, saíram portanto do mundo dos Espíritos, assim como lá entraram depois de deixarem a Terra. Dado que os Espíritos podem comunicar com os homens, estes mesmos génios podem dar-lhes instruções sob a forma espiritual tal como o fizeram enquanto vivos; são invisíveis em vez de serem visíveis e é essa toda a diferença. A sua experiência e o seu saber não devem ser menores e se a sua palavra, como homens, tiver autoridade, não a deverá ter em menor grau por estarem no mundo dos Espíritos.

   Mas não só os Espíritos superiores que se manifestam, mas também os Espíritos de todas as ordens; isso foi necessário para nos iniciar no verdadeiro carácter do mundo espiritual, mostrando-o sob todos os seus aspectos; com isso, as relações entre o visível e o mundo invisível ficam mais íntimas, a conexão é mais evidente; vemos mais claramente de onde vimos e para onde vamos: é essa a finalidade essencial destas manifestações. Todos os Espíritos, seja qual for o grau que atingiram, nos ensinam portanto qualquer coisa, mas como são mais ou menos esclarecidos, compete-nos a nós discernir o que há neles de bom ou de mau e retirar o benefício que os seus ensinamentos comportam; ora todos, sejam eles quais forem, podem ensinar-nos ou revelar-nos coisas que ignoramos e que, sem eles, não saberíamos.

   Os grandes espíritos encarnados são individualidades poderosas, sem dúvida, mas cuja acção está restringida e é necessariamente lenta a propagar-se. Se um só de entre eles, fosse ele Elias ou Moisés, Sócrates ou Platão, tivesse vindo nestes últimos tempos revelar aos homens o estado do mundo espiritual, quem teria provado a verdade dessas afirmações nesta época de cepticismo? Não o teriam considerado um sonhador ou um utópico? E admitindo que era detentor da verdade absoluta, teriam decorrido séculos antes das suas ideias serem aceites pelas massas. Deus, na sua sabedoria, não quis que assim fosse; quis que os ensinamentos fossem prestados pelos próprios Espíritos e não pelos encarnados, para convencer da sua existência, e que acontecesse simultaneamente em toda a Terra, quer para os propagar mais rapidamente, quer para que se visse na coincidência do ensino uma prova da verdade, possuindo assim cada um os meios para se convencer sozinho.

   Os Espíritos não vêm libertar o homem do trabalho do estudo e das investigações; não lhes trazem nenhuma ciência já acabada; naquilo que pode encontrar por si, deixam-no entregue a si próprio; é o que hoje os Espíritos sabem perfeitamente. Desde há muito que a experiência demonstrou o erro da opinião que atribuía aos Espíritos todo o conhecimento e toda a sabedoria e que bastava dirigir-se ao primeiro Espírito a aparecer para ficar a saber todas as coisas. Saídos da humanidade, os Espíritos são uma das suas faces; tal como na Terra há os superiores e os vulgares. Portanto, muitos sabem filosoficamente menos que certos homens; dizem o que sabem, nem mais nem menos; tal como, entre os homens, os mais evoluídos podem instruir-nos sobre muitas coisas, dar-nos conselhos mais judiciosos que os atrasados. Pedir conselhos aos Espíritos não é de modo nenhum dirigirmo-nos a forças sobrenaturais, mas sim aos nossos iguais, aqueles mesmos a quem nos dirigíamos quando vivos: aos pais, aos amigos ou aos indivíduos mais esclarecidos que nós. É disto que nos devemos convencer e o que é ignorado pelos que, não tendo estudado o espiritismo, têm uma ideia completamente falsa da natureza do mundo dos espíritos e das relações de além-túmulo.

   Qual é então a utilidade destas manifestações ou, se quisermos, desta revelação, se os Espíritos não sabem mais do que nós ou se não nos dizem tudo o que sabem?

   Primeiro, conforme dissemos, abstêm-se de nos dar o que podemos conseguir com o trabalho; em segundo lugar, há coisas que não lhes é permitido revelar, porque o nosso grau de evolução não comporta. Mas, independentemente disto, as condições da sua nova existência ampliam o círculo das suas percepções; vêem o que não viam na Terra; ultrapassados os entraves da matéria, libertados dos cuidados da vida corporal, avaliam as coisas sob um ponto de vista mais elevado e, por isso, de forma mais sã; a sua perspicácia abarca um horizonte mais vasto; compreendem os seus erros, rectificam as suas ideias e libertam-se dos preconceitos humanos.

   É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos sobre a humanidade corporal e no que os seus conselhos podem ser, consoante o seu grau de evolução, mais sensatos e mais desinteressados que os dos encarnados. Além disso, o meio em que se encontram permite-lhes iniciar-nos nas coisas da vida futura, que desconhecemos e que não podemos aprender naquele em que nos encontramos. Até esse dia, o homem só tinha criado hipóteses sobre o futuro; é por isso que as suas convicções sobre o futuro eram partilhadas em teorias tão numerosas e divergentes, desde as teorias da negação até às fantásticas concepções do inferno e do Paraíso. Hoje, são os testemunhos oculares, os próprios autores da vida de além-túmulo, que nos vêm dizer do que se trata e estes são os únicos a poder fazê-lo. Estas manifestações serviram portanto para nos darem a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e de que não suspeitávamos e só este conhecimento já seria de importância capital, partindo do princípio que os Espíritos são incapazes de nos ensinar alguma coisa mais.

   Se fosseis para um país novo para vós, recusaríeis as indicações do mais humilde camponês que encontrásseis? Recusar-vos-íeis a questioná-lo sobre o estado da estrada, por não ser mais que um camponês? Certamente não esperaríeis dele esclarecimentos de muito elevado alcance, mas tal como é na sua esfera poderá, em certos pontos, elucidar-vos melhor que um sábio que não conheça a região. Retirareis das suas indicações consequências que ele mesmo não poderia retirar, mas não deixou por isso de ser um instrumento útil para as vossas observações, mesmo que só tivesse servido para ficardes a conhecer melhor os hábitos dos camponeses. Passa-se o mesmo nos contactos com os Espíritos, onde o mais pequeno pode servir para nos ensinar qualquer coisa.

   Uma comparação vulgar fará com que se compreenda melhor a situação.

   Um navio carregado de emigrantes parte para um destino longínquo; leva homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam. Vimos a saber que esse navio naufragou; não ficou qualquer rasto, nenhumas notícias chegaram sobre a sua sorte; pensa-se que todos os viajantes morreram e o luto reside em todas as famílias. No entanto, toda a tripulação, sem uma excepção, arribou a uma Terra desconhecida, abundante e fértil, onde todos vivem felizes sob um céu clemente; mas nada se sabe. Ora, um certo dia, outro navio aborda essa Terra; encontra ali todos os náufragos sãos e salvos. A feliz notícia espalha-se com rapidez de um relâmpago; cada qual diz para consigo: «Os nossos amigos não estão perdidos!» e louvam a Deus. Não podem ver-se, mas correspondem-se; trocam mensagens de afecto e eis que a alegria sucede à tristeza.

   É assim a imagem da vida terrestre e da vida de além-túmulo, antes e depois da revelação moderna; esta, semelhante ao segundo navio, traz-nos a boa-nova da sobrevivência dos que nos são queridos e a certeza de um dia nos reencontrarmos; a dúvida quanto à sua sorte e sobre a nossa deixa de existir; o desalento apaga-se face à esperança.

   Mas outros resultados vêm fecundar esta revelação. Deus, considerando a humanidade madura para penetrar no mistério do seu próprio destino e contemplar com sangue-frio novas maravilhas, permitiu que o véu que separava o mundo invisível do mundo visível se levantasse. As manifestações nada têm de extra-humano; é a humanidade espiritual que vem conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe:

   «Nós existimos; portanto, o vazio não existe; é isto que nós somos e é isto que vós sereis; o futuro pertence-vos tal como nos pertence a nós. Caminháveis nas trevas; nós vimos iluminar o vosso caminho e torná-lo praticável. Caminháveis ao acaso; nós mostramo-vos o objectivo. A vida terrestre era tudo para vós, porque não víeis nada para lá; nós vimos dizer-vos, mostrando-vos a vida espiritual, que a vida terrestre não é nada. A vossa visão parava no túmulo; nós mostramo-vos para além dele um horizonte esplêndido. Não sabíeis por que sofríeis na Terra; agora, no sofrimento, vedes a justiça de Deus. O bem não dava frutos visíveis para o futuro; passará agora a ter uma finalidade e será uma necessidade. A fraternidade não passava de uma bela teoria, mas está agora assente sobre uma lei da natureza. Sob o império da convicção de que tudo acaba com a vida, a imensidão está vazia, o egoísmo reina como senhor entre vós e a vossa palavra de ordem é: "Cada um por si"; com a certeza no futuro, os espaços infinitos povoam-se infinitamente, o vazio e a solidão não estão em lado nenhum, a solidariedade une todos os seres para cá e para lá do túmulo; é o reino da caridade com a divisa: "Cada um por todos e todos por um." Enfim, no fim da vida dizíeis um eterno adeus aos que vos são queridos; agora dir-lhes-eis um "até à vista".»

   São estes, em resumo, os resultados da nova revelação; ela veio preencher o vazio cavado pela incredulidade, levantar as coragens abatidas pela perspectiva do vazio e dar a todas as coisas a razão de ser. Não terá este resultado então importância só porque os Espíritos não vêm resolver os problemas da ciência, dar saber aos ignorantes e aos preguiçosos os meios de se enriquecerem sem esforço? No entanto, os frutos que o homem daí deve retirar não são só para a vida futura; usufruirá deles na Terra pela transformação que essas novas crenças devem necessariamente operar no seu carácter, nos seus gostos, nas suas tendências e, por consequência, sobre os hábitos e as relações sociais. Pondo um fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, preparam o do bem, que é o reino de Deus anunciado por Cristo (i).

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(i) O uso do artigo antes da palavra Cristo (do grego Christosunção), empregue num sentido absoluto, é mais correcto, atendendo que este nome não é o do Messias de Nazaré, mas uma qualidade tomada substantivamente. Diremos então: Jesus era Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de Cristo enquanto se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em Jesus Cristo, os dois nomes reunidos formam um só nome próprio. É pela mesma razão que dizemos que o Buda Gautama adquiriu a dignidade de Buda devido às suas virtudes e às suas austeridades; a vida do Buda, tal como dizemos o exército do Faraó e não de Faraó; Henrique IV era rei; o título de rei; a morte do rei e não de rei(N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 57 a 62 e, últimos (XII), 14º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)