Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 11 de setembro de 2016

Da sombra do dogma à luz da razão ~

Natureza da Revelação Espírita (XII, Resumo)

   Uma das questões mais importantes entre as que são colocadas a abrir este capítulo é esta: qual a autoridade da revelação espírita, uma vez que emana de seres cujo saber é limitado e que não são infalíveis?

   A objecção seria séria se esta revelação só consistisse nos ensinamentos dos Espíritos, se tivéssemos de a receber através deles exclusivamente e aceitá-la de olhos fechados; deixa de ter valor a partir do momento em que o homem lhe junta o concurso da sua inteligência e da sua avaliação; porque os Espíritos se limitam a colocá-lo no caminho e das deduções que pode fazer pela observação dos factos. Ora, as manifestações e as suas inúmeras variedades são factos; o homem estuda-as e procura-lhes a lei; é ajudado neste trabalho pelos Espíritos de todas as ordens, que são mais colaboradores do que reveladores, no sentido usual do termo; submete as suas falas ao controlo da lógica e do bom senso: desta maneira, beneficia dos conhecimentos especiais que devem à sua posição, sem abdicarem do uso da sua própria razão.

   Não sendo os Espíritos mais do que as almas dos homens, ao comunicarmos com eles não saímos da humanidade, circunstância capital a considerar. Os homens de génio, que foram os archotes da humanidade, saíram portanto do mundo dos Espíritos, assim como lá entraram depois de deixarem a Terra. Dado que os Espíritos podem comunicar com os homens, estes mesmos génios podem dar-lhes instruções sob a forma espiritual tal como o fizeram enquanto vivos; são invisíveis em vez de serem visíveis e é essa toda a diferença. A sua experiência e o seu saber não devem ser menores e se a sua palavra, como homens, tiver autoridade, não a deverá ter em menor grau por estarem no mundo dos Espíritos.

   Mas não só os Espíritos superiores que se manifestam, mas também os Espíritos de todas as ordens; isso foi necessário para nos iniciar no verdadeiro carácter do mundo espiritual, mostrando-o sob todos os seus aspectos; com isso, as relações entre o visível e o mundo invisível ficam mais íntimas, a conexão é mais evidente; vemos mais claramente de onde vimos e para onde vamos: é essa a finalidade essencial destas manifestações. Todos os Espíritos, seja qual for o grau que atingiram, nos ensinam portanto qualquer coisa, mas como são mais ou menos esclarecidos, compete-nos a nós discernir o que há neles de bom ou de mau e retirar o benefício que os seus ensinamentos comportam; ora todos, sejam eles quais forem, podem ensinar-nos ou revelar-nos coisas que ignoramos e que, sem eles, não saberíamos.

   Os grandes espíritos encarnados são individualidades poderosas, sem dúvida, mas cuja acção está restringida e é necessariamente lenta a propagar-se. Se um só de entre eles, fosse ele Elias ou Moisés, Sócrates ou Platão, tivesse vindo nestes últimos tempos revelar aos homens o estado do mundo espiritual, quem teria provado a verdade dessas afirmações nesta época de cepticismo? Não o teriam considerado um sonhador ou um utópico? E admitindo que era detentor da verdade absoluta, teriam decorrido séculos antes das suas ideias serem aceites pelas massas. Deus, na sua sabedoria, não quis que assim fosse; quis que os ensinamentos fossem prestados pelos próprios Espíritos e não pelos encarnados, para convencer da sua existência, e que acontecesse simultaneamente em toda a Terra, quer para os propagar mais rapidamente, quer para que se visse na coincidência do ensino uma prova da verdade, possuindo assim cada um os meios para se convencer sozinho.

   Os Espíritos não vêm libertar o homem do trabalho do estudo e das investigações; não lhes trazem nenhuma ciência já acabada; naquilo que pode encontrar por si, deixam-no entregue a si próprio; é o que hoje os Espíritos sabem perfeitamente. Desde há muito que a experiência demonstrou o erro da opinião que atribuía aos Espíritos todo o conhecimento e toda a sabedoria e que bastava dirigir-se ao primeiro Espírito a aparecer para ficar a saber todas as coisas. Saídos da humanidade, os Espíritos são uma das suas faces; tal como na Terra há os superiores e os vulgares. Portanto, muitos sabem filosoficamente menos que certos homens; dizem o que sabem, nem mais nem menos; tal como, entre os homens, os mais evoluídos podem instruir-nos sobre muitas coisas, dar-nos conselhos mais judiciosos que os atrasados. Pedir conselhos aos Espíritos não é de modo nenhum dirigirmo-nos a forças sobrenaturais, mas sim aos nossos iguais, aqueles mesmos a quem nos dirigíamos quando vivos: aos pais, aos amigos ou aos indivíduos mais esclarecidos que nós. É disto que nos devemos convencer e o que é ignorado pelos que, não tendo estudado o espiritismo, têm uma ideia completamente falsa da natureza do mundo dos espíritos e das relações de além-túmulo.

   Qual é então a utilidade destas manifestações ou, se quisermos, desta revelação, se os Espíritos não sabem mais do que nós ou se não nos dizem tudo o que sabem?

   Primeiro, conforme dissemos, abstêm-se de nos dar o que podemos conseguir com o trabalho; em segundo lugar, há coisas que não lhes é permitido revelar, porque o nosso grau de evolução não comporta. Mas, independentemente disto, as condições da sua nova existência ampliam o círculo das suas percepções; vêem o que não viam na Terra; ultrapassados os entraves da matéria, libertados dos cuidados da vida corporal, avaliam as coisas sob um ponto de vista mais elevado e, por isso, de forma mais sã; a sua perspicácia abarca um horizonte mais vasto; compreendem os seus erros, rectificam as suas ideias e libertam-se dos preconceitos humanos.

   É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos sobre a humanidade corporal e no que os seus conselhos podem ser, consoante o seu grau de evolução, mais sensatos e mais desinteressados que os dos encarnados. Além disso, o meio em que se encontram permite-lhes iniciar-nos nas coisas da vida futura, que desconhecemos e que não podemos aprender naquele em que nos encontramos. Até esse dia, o homem só tinha criado hipóteses sobre o futuro; é por isso que as suas convicções sobre o futuro eram partilhadas em teorias tão numerosas e divergentes, desde as teorias da negação até às fantásticas concepções do inferno e do Paraíso. Hoje, são os testemunhos oculares, os próprios autores da vida de além-túmulo, que nos vêm dizer do que se trata e estes são os únicos a poder fazê-lo. Estas manifestações serviram portanto para nos darem a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e de que não suspeitávamos e só este conhecimento já seria de importância capital, partindo do princípio que os Espíritos são incapazes de nos ensinar alguma coisa mais.

   Se fosseis para um país novo para vós, recusaríeis as indicações do mais humilde camponês que encontrásseis? Recusar-vos-íeis a questioná-lo sobre o estado da estrada, por não ser mais que um camponês? Certamente não esperaríeis dele esclarecimentos de muito elevado alcance, mas tal como é na sua esfera poderá, em certos pontos, elucidar-vos melhor que um sábio que não conheça a região. Retirareis das suas indicações consequências que ele mesmo não poderia retirar, mas não deixou por isso de ser um instrumento útil para as vossas observações, mesmo que só tivesse servido para ficardes a conhecer melhor os hábitos dos camponeses. Passa-se o mesmo nos contactos com os Espíritos, onde o mais pequeno pode servir para nos ensinar qualquer coisa.

   Uma comparação vulgar fará com que se compreenda melhor a situação.

   Um navio carregado de emigrantes parte para um destino longínquo; leva homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam. Vimos a saber que esse navio naufragou; não ficou qualquer rasto, nenhumas notícias chegaram sobre a sua sorte; pensa-se que todos os viajantes morreram e o luto reside em todas as famílias. No entanto, toda a tripulação, sem uma excepção, arribou a uma Terra desconhecida, abundante e fértil, onde todos vivem felizes sob um céu clemente; mas nada se sabe. Ora, um certo dia, outro navio aborda essa Terra; encontra ali todos os náufragos sãos e salvos. A feliz notícia espalha-se com rapidez de um relâmpago; cada qual diz para consigo: «Os nossos amigos não estão perdidos!» e louvam a Deus. Não podem ver-se, mas correspondem-se; trocam mensagens de afecto e eis que a alegria sucede à tristeza.

   É assim a imagem da vida terrestre e da vida de além-túmulo, antes e depois da revelação moderna; esta, semelhante ao segundo navio, traz-nos a boa-nova da sobrevivência dos que nos são queridos e a certeza de um dia nos reencontrarmos; a dúvida quanto à sua sorte e sobre a nossa deixa de existir; o desalento apaga-se face à esperança.

   Mas outros resultados vêm fecundar esta revelação. Deus, considerando a humanidade madura para penetrar no mistério do seu próprio destino e contemplar com sangue-frio novas maravilhas, permitiu que o véu que separava o mundo invisível do mundo visível se levantasse. As manifestações nada têm de extra-humano; é a humanidade espiritual que vem conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe:

   «Nós existimos; portanto, o vazio não existe; é isto que nós somos e é isto que vós sereis; o futuro pertence-vos tal como nos pertence a nós. Caminháveis nas trevas; nós vimos iluminar o vosso caminho e torná-lo praticável. Caminháveis ao acaso; nós mostramo-vos o objectivo. A vida terrestre era tudo para vós, porque não víeis nada para lá; nós vimos dizer-vos, mostrando-vos a vida espiritual, que a vida terrestre não é nada. A vossa visão parava no túmulo; nós mostramo-vos para além dele um horizonte esplêndido. Não sabíeis por que sofríeis na Terra; agora, no sofrimento, vedes a justiça de Deus. O bem não dava frutos visíveis para o futuro; passará agora a ter uma finalidade e será uma necessidade. A fraternidade não passava de uma bela teoria, mas está agora assente sobre uma lei da natureza. Sob o império da convicção de que tudo acaba com a vida, a imensidão está vazia, o egoísmo reina como senhor entre vós e a vossa palavra de ordem é: "Cada um por si"; com a certeza no futuro, os espaços infinitos povoam-se infinitamente, o vazio e a solidão não estão em lado nenhum, a solidariedade une todos os seres para cá e para lá do túmulo; é o reino da caridade com a divisa: "Cada um por todos e todos por um." Enfim, no fim da vida dizíeis um eterno adeus aos que vos são queridos; agora dir-lhes-eis um "até à vista".»

   São estes, em resumo, os resultados da nova revelação; ela veio preencher o vazio cavado pela incredulidade, levantar as coragens abatidas pela perspectiva do vazio e dar a todas as coisas a razão de ser. Não terá este resultado então importância só porque os Espíritos não vêm resolver os problemas da ciência, dar saber aos ignorantes e aos preguiçosos os meios de se enriquecerem sem esforço? No entanto, os frutos que o homem daí deve retirar não são só para a vida futura; usufruirá deles na Terra pela transformação que essas novas crenças devem necessariamente operar no seu carácter, nos seus gostos, nas suas tendências e, por consequência, sobre os hábitos e as relações sociais. Pondo um fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, preparam o do bem, que é o reino de Deus anunciado por Cristo (i).

/...
(i) O uso do artigo antes da palavra Cristo (do grego Christosunção), empregue num sentido absoluto, é mais correcto, atendendo que este nome não é o do Messias de Nazaré, mas uma qualidade tomada substantivamente. Diremos então: Jesus era Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de Cristo enquanto se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em Jesus Cristo, os dois nomes reunidos formam um só nome próprio. É pela mesma razão que dizemos que o Buda Gautama adquiriu a dignidade de Buda devido às suas virtudes e às suas austeridades; a vida do Buda, tal como dizemos o exército do Faraó e não de Faraó; Henrique IV era rei; o título de rei; a morte do rei e não de rei(N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 57 a 62 e, últimos (XII), 14º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

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