Natureza da Revelação Espírita (XII, Resumo)
Uma das questões mais importantes entre as que são colocadas
a abrir este capítulo é esta: qual a autoridade da revelação
espírita, uma vez que emana de seres cujo saber é limitado e que não são
infalíveis?
A objecção seria séria se esta revelação só
consistisse nos ensinamentos dos Espíritos, se tivéssemos de a receber através
deles exclusivamente e aceitá-la de olhos fechados; deixa de ter valor
a partir do momento em que o homem lhe junta o concurso da sua inteligência e
da sua avaliação; porque os Espíritos se limitam a colocá-lo no
caminho e das deduções que pode fazer pela observação dos
factos. Ora, as manifestações e as suas inúmeras variedades são factos;
o homem estuda-as e procura-lhes a lei; é ajudado neste trabalho pelos
Espíritos de todas as ordens, que são mais colaboradores do
que reveladores, no sentido usual do termo; submete as
suas falas ao controlo da lógica e do bom senso: desta maneira,
beneficia dos conhecimentos especiais que devem à sua posição, sem abdicarem do
uso da sua própria razão.
Não sendo os Espíritos mais do que as almas dos homens, ao
comunicarmos com eles não saímos da humanidade, circunstância
capital a considerar. Os homens de génio, que foram os archotes da humanidade,
saíram portanto do mundo dos Espíritos, assim como lá entraram depois de
deixarem a Terra. Dado que os Espíritos podem comunicar com os homens, estes
mesmos génios podem dar-lhes instruções sob a forma espiritual tal como o
fizeram enquanto vivos; são invisíveis em vez de serem visíveis e é essa toda a
diferença. A sua experiência e o seu saber não devem ser menores e se a sua
palavra, como homens, tiver autoridade, não a deverá ter em menor grau por
estarem no mundo dos Espíritos.
Mas não só os Espíritos superiores que se manifestam, mas
também os Espíritos de todas as ordens; isso foi necessário para nos
iniciar no verdadeiro carácter do mundo espiritual, mostrando-o sob todos os
seus aspectos; com isso, as relações entre o visível e o mundo invisível ficam
mais íntimas, a conexão é mais evidente; vemos mais claramente de onde vimos e
para onde vamos: é essa a finalidade essencial destas manifestações. Todos os
Espíritos, seja qual for o grau que atingiram, nos ensinam portanto qualquer
coisa, mas como são mais ou menos esclarecidos, compete-nos a nós discernir o
que há neles de bom ou de mau e retirar o benefício que os seus ensinamentos
comportam; ora todos, sejam eles quais forem, podem ensinar-nos ou revelar-nos
coisas que ignoramos e que, sem eles, não saberíamos.
Os grandes espíritos encarnados são individualidades
poderosas, sem dúvida, mas cuja acção está restringida e é
necessariamente lenta a propagar-se. Se um só de entre eles, fosse ele Elias ou Moisés, Sócrates ou Platão, tivesse vindo nestes últimos tempos revelar aos homens o estado do mundo espiritual, quem teria provado a verdade dessas afirmações nesta época de cepticismo? Não o teriam considerado um sonhador ou um utópico? E admitindo que era detentor da
verdade absoluta, teriam decorrido séculos antes das suas ideias serem aceites
pelas massas. Deus, na sua sabedoria, não quis que assim fosse; quis que os
ensinamentos fossem prestados pelos próprios Espíritos e não pelos encarnados, para convencer da sua existência, e que
acontecesse simultaneamente em toda a Terra, quer para os propagar mais
rapidamente, quer para que se visse na coincidência do ensino uma prova da
verdade, possuindo assim cada um os meios para se convencer sozinho.
Os Espíritos não vêm libertar o homem do trabalho do estudo e das
investigações; não lhes trazem nenhuma ciência já acabada; naquilo
que pode encontrar por si, deixam-no entregue a si próprio; é o que hoje os
Espíritos sabem perfeitamente. Desde há muito que a experiência demonstrou o
erro da opinião que atribuía aos Espíritos todo o conhecimento e toda a
sabedoria e que bastava dirigir-se ao primeiro Espírito a aparecer para
ficar a saber todas as coisas. Saídos da humanidade, os Espíritos são uma das
suas faces; tal como na Terra há os superiores e os vulgares. Portanto, muitos
sabem filosoficamente menos que certos homens; dizem o que sabem, nem mais nem
menos; tal como, entre os homens, os mais evoluídos podem instruir-nos sobre
muitas coisas, dar-nos conselhos mais judiciosos que os atrasados. Pedir
conselhos aos Espíritos não é de modo nenhum dirigirmo-nos a forças
sobrenaturais, mas sim aos nossos iguais, aqueles mesmos a quem nos dirigíamos
quando vivos: aos pais, aos amigos ou aos indivíduos mais esclarecidos que nós.
É disto que nos devemos convencer e o que é ignorado pelos que, não
tendo estudado o espiritismo,
têm uma ideia completamente falsa da natureza do mundo dos espíritos e das
relações de além-túmulo.
Qual é então a utilidade destas manifestações ou, se
quisermos, desta revelação, se os Espíritos não sabem mais do que nós ou se não
nos dizem tudo o que sabem?
Primeiro, conforme dissemos, abstêm-se de nos dar o
que podemos conseguir com o trabalho; em segundo lugar, há
coisas que não lhes é permitido revelar, porque o nosso grau de evolução
não comporta. Mas, independentemente disto, as condições da sua nova
existência ampliam o círculo das suas percepções; vêem o que não
viam na Terra; ultrapassados os entraves da matéria, libertados dos
cuidados da vida corporal, avaliam as coisas sob um ponto de vista mais elevado
e, por isso, de forma mais sã; a sua perspicácia abarca um horizonte
mais vasto; compreendem os seus erros, rectificam as suas ideias e libertam-se
dos preconceitos humanos.
É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos sobre a humanidade corporal
e no que os seus conselhos podem ser, consoante o seu grau de evolução, mais
sensatos e mais desinteressados que os dos encarnados. Além disso, o
meio em que se encontram permite-lhes iniciar-nos nas coisas da vida futura,
que desconhecemos e que não podemos aprender naquele em que nos encontramos.
Até esse dia, o homem só tinha criado hipóteses sobre o futuro; é por isso que
as suas convicções sobre o futuro eram partilhadas em teorias tão numerosas e
divergentes, desde as teorias da negação até às fantásticas concepções do
inferno e do Paraíso. Hoje, são os testemunhos oculares, os próprios autores da
vida de além-túmulo, que nos vêm dizer do que se trata e estes são os
únicos a poder fazê-lo. Estas manifestações serviram portanto para nos
darem a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e de que não suspeitávamos e
só este conhecimento já seria de importância capital, partindo do princípio que
os Espíritos são incapazes de nos ensinar alguma coisa mais.
Se fosseis para um país novo para vós, recusaríeis as
indicações do mais humilde camponês que encontrásseis? Recusar-vos-íeis a
questioná-lo sobre o estado da estrada, por não ser mais que um camponês?
Certamente não esperaríeis dele esclarecimentos de muito elevado alcance, mas
tal como é na sua esfera poderá, em certos pontos, elucidar-vos melhor que um
sábio que não conheça a região. Retirareis das suas indicações
consequências que ele mesmo não poderia retirar, mas não deixou por
isso de ser um instrumento útil para as vossas observações, mesmo que só
tivesse servido para ficardes a conhecer melhor os hábitos dos camponeses.
Passa-se o mesmo nos contactos com os Espíritos, onde o mais pequeno pode
servir para nos ensinar qualquer coisa.
Uma comparação vulgar fará com que se compreenda melhor a
situação.
Um navio carregado de emigrantes parte para um destino
longínquo; leva homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam.
Vimos a saber que esse navio naufragou; não ficou qualquer rasto, nenhumas
notícias chegaram sobre a sua sorte; pensa-se que todos os viajantes morreram e
o luto reside em todas as famílias. No entanto, toda a tripulação, sem
uma excepção, arribou a uma Terra desconhecida, abundante e fértil, onde todos
vivem felizes sob um céu clemente; mas nada se sabe. Ora, um certo
dia, outro navio aborda essa Terra; encontra ali todos os náufragos sãos e
salvos. A feliz notícia espalha-se com rapidez de um relâmpago; cada
qual diz para consigo: «Os nossos amigos não estão perdidos!» e
louvam a Deus. Não podem ver-se, mas correspondem-se; trocam mensagens de
afecto e eis que a alegria sucede à tristeza.
É assim a imagem da vida terrestre e da vida de além-túmulo,
antes e depois da revelação moderna; esta, semelhante ao segundo navio, traz-nos
a boa-nova da sobrevivência dos que nos são queridos e a certeza de um dia nos
reencontrarmos; a dúvida quanto à sua sorte e sobre a nossa deixa
de existir; o desalento apaga-se face à esperança.
Mas outros resultados vêm fecundar esta revelação. Deus,
considerando a humanidade madura para penetrar no mistério do seu próprio
destino e contemplar com sangue-frio novas maravilhas, permitiu que
o véu que separava o mundo invisível do mundo visível se levantasse. As
manifestações nada têm de extra-humano; é a humanidade espiritual que vem
conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe:
«Nós existimos; portanto, o vazio não existe; é
isto que nós somos e é isto que vós sereis; o futuro pertence-vos tal como nos
pertence a nós. Caminháveis nas trevas; nós vimos iluminar o vosso caminho e
torná-lo praticável. Caminháveis ao acaso; nós mostramo-vos o objectivo. A vida
terrestre era tudo para vós, porque não víeis nada para lá; nós vimos
dizer-vos, mostrando-vos a vida espiritual, que a vida terrestre não é
nada. A vossa visão parava no túmulo; nós mostramo-vos para além dele um
horizonte esplêndido. Não sabíeis por que sofríeis na Terra; agora, no
sofrimento, vedes a justiça de Deus. O bem não dava frutos visíveis para o
futuro; passará agora a ter uma finalidade e será uma necessidade. A
fraternidade não passava de uma bela teoria, mas está agora assente sobre uma
lei da natureza. Sob o império da convicção de que tudo acaba com a
vida, a imensidão está vazia, o egoísmo reina como senhor entre vós e a vossa
palavra de ordem é: "Cada um por si"; com a certeza no
futuro, os espaços infinitos povoam-se infinitamente, o vazio e a solidão não
estão em lado nenhum, a solidariedade une todos os seres para cá e para lá do
túmulo; é o reino da caridade com a divisa: "Cada um por todos e todos por
um." Enfim, no fim da vida dizíeis um eterno adeus aos que vos são
queridos; agora dir-lhes-eis um "até à vista".»
São estes, em resumo, os resultados da nova revelação; ela
veio preencher o vazio cavado pela incredulidade, levantar as coragens abatidas
pela perspectiva do vazio e dar a todas as coisas a razão de ser.
Não terá este resultado então importância só porque os Espíritos não vêm
resolver os problemas da ciência, dar saber aos ignorantes e aos preguiçosos os
meios de se enriquecerem sem esforço? No entanto, os frutos que o homem
daí deve retirar não são só para a vida futura; usufruirá deles na Terra pela
transformação que essas novas crenças devem necessariamente operar no seu
carácter, nos seus gostos, nas suas tendências e, por consequência, sobre os
hábitos e as relações sociais. Pondo um fim ao reino do egoísmo, do orgulho e
da incredulidade, preparam o do bem, que é o reino de Deus anunciado por Cristo (i).
/...
(i) O uso do artigo antes da palavra Cristo (do
grego Christos, unção), empregue num
sentido absoluto, é mais correcto, atendendo que este nome não é o do Messias
de Nazaré, mas uma qualidade tomada substantivamente. Diremos então: Jesus era Cristo;
era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e
não de Cristo enquanto se diz: a morte de Jesus e
não do Jesus. Em Jesus Cristo, os dois nomes reunidos
formam um só nome próprio. É pela mesma razão que dizemos que o Buda Gautama
adquiriu a dignidade de Buda devido às suas virtudes e às suas
austeridades; a vida do Buda, tal como dizemos o exército do
Faraó e não de Faraó; Henrique IV era rei; o
título de rei; a morte do rei e não de rei. (N.
do A.)
ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as
Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA
números de 57 a 62 e, últimos (XII), 14º fragmento da obra. Tradução
portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e
os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)
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