Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 15 de março de 2023

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza 
(Milésima segunda noite dos contos árabes) 

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié 

Prefácio da Revue Spirite 

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por O Livro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado e, cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias. 

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa. 

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retracto e a médium, que não sabe desenhar e, que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária. 

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa. 

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos e, sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié. 
A. K. 

Uma Noite Esquecida 


Havia em Bagdá uma mulher do tempo de Aladim; é a sua história que vou narrar: 

Num dos subúrbios de Bagdá, não longe do palácio da sultana Sheherazad, morava uma velha mulher chamada Manouza. Feiticeira das mais apavorantes, essa velha era motivo de terror em toda a cidade. À noite passavam-se em sua casa coisas tão assustadoras que, mal se punha o sol, ninguém se aventurava a passar por ali, a não ser algum homem apaixonado, à procura de um filtro para a sua amante rebelde, ou uma mulher abandonada, em busca de um bálsamo para pôr na ferida que o amante, ao desampará-la, lhe havia provocado. 

Certo dia em que o sultão estava mais triste que de costume e a cidade se encontrava em grande desolação porque queria mandar matar a sultana favorita e que, pelo seu exemplo, todos os homens eram infiéis, um jovem deixou a sua magnífica habitação, situada ao lado do palácio da sultana. Esse jovem usava uma túnica e um turbante de cores sombrias; mas sob essas simples vestimentas havia um grande ar de distinção. Procurava ocultar-se ao longo das casas, como se fora um amante que temesse ser surpreendido. Dirigia-se para os lados da casa de Manouza, a feiticeira. Uma viva ansiedade estampava-se no seu rosto, denunciando a preocupação que o agitava. Atravessou as ruas e praças rapidamente, porém usando de grandes precauções. 

Chegando à porta, hesitou por alguns minutos, decidindo-se depois a bater. Durante um quarto de hora padeceu angústias mortais, porque ouvia ruídos que nenhum ouvido humano até então havia escutado; uma matilha de cães uivava com ferocidade, gritos lamentosos se faziam ecoar e se percebiam gemidos de homens e mulheres, como só acontece no fim de uma orgia; e, para iluminar todo esse tumulto, luzes correndo de cima a baixo da casa, fogos-de-artifício de todas as cores. Depois, como que por encanto, tudo cessou: as luzes se apagaram e abriu-se a porta. 

II 

O visitante ficou confuso por alguns momentos, sem saber se devia entrar no corredor escuro que surgia à sua vista. Por fim, armando-se de coragem, penetrou audaciosamente. Depois de haver caminhado às cegas o espaço de trinta passos, encontrou-se diante de uma porta que abria para uma sala, iluminada apenas por uma lamparina de cobre de três bicos, suspensa do centro do tecto. 

A casa que, conforme o barulho ouvido da rua, deveria ser muito habitada, tinha agora um ar deserto; a sala, imensa e, que pela sua construção devia ser a base do edifício, estava vazia, se exceptuarmos os animais empalhados de todo o tipo que a guarneciam. 

No meio dessa sala havia uma pequena mesa coberta de livros de magia e, à sua frente, numa grande poltrona, estava sentada uma velhinha de apenas dois côvados de estatura e, de tal maneira agasalhada com xailes e turbantes que era impossível divisar os seus traços. À aproximação do estranho ela levantou a cabeça e mostrou-lhe o mais terrível rosto que se possa imaginar. 

“Eis que estás aqui, Sr. Noureddin, disse ela, fixando os olhos de hiena no rapaz que entrava; aproxima-te! Faz vários dias que o meu crocodilo de olhos de rubi me anunciou a tua visita. Dize se é de um filtro que precisas, ou de fortuna. Mas, que digo eu, fortuna! A tua não faz inveja ao próprio sultão? Não és o mais rico, assim como és o mais belo? Provavelmente é um filtro que vens procurar. Qual é, pois, a mulher que tem a ousadia de ser cruel contigo? Enfim, nada devo dizer; nada sei; estou pronta a ouvir-te as dificuldades e a dar-te os remédios necessários, desde, naturalmente, que a minha ciência tenha o poder de te ser útil. Mas por que me olhas assim e não avanças? Estarias com medo? Tal como me vês eu te amedronto, por acaso? Outrora fui bela; mais bela que todas as mulheres existentes em Bagdá; foram os desgostos que me tornaram tão feia assim. Mas que te importam os meus sofrimentos? Aproxima-te: eu escuto-te; apenas não te posso conceder mais que dez minutos; apressa-te, portanto.” 

Noureddin não estava muito tranquilo; entretanto, porque não quisesse mostrar à velha a perturbação que o agitava, avançou e disse-lhe: “Mulher, venho aqui por uma coisa grave; da tua resposta depende a sorte da minha vida; vais decidir da minha felicidade ou da minha morte. Eis do que se trata: 

“O sultão quer mandar matar Nazara; eu amo-a; vou contar-te de onde vem esse meu amor e pedir-te que me tragas um remédio, não à minha dor, mas à sua infeliz situação, porquanto não desejo que ela morra. Sabes que o meu palácio é vizinho ao do sultão; os nossos jardins tocam-se. Há cerca de seis semanas, passeando à noite nos meus jardins, ouvi uma música encantadora, acompanhada da mais deliciosa voz de mulher que jamais ouvira. Querendo saber de onde vinha, aproximei-me dos jardins vizinhos e percebi que vinha de um caramanchão de verdura, habitado pela sultana favorita. Fiquei vários dias absorvido por esses sons melodiosos; sonhava noite e dia com a bela desconhecida, cuja voz me havia seduzido, porque, é preciso que te diga, no meu pensamento só podia ser bela. Todas as noites eu passeava nas mesmas áleas onde tinha ouvido aquela maravilhosa harmonia. Durante cinco dias foi em vão; finalmente, ao sexto dia a música fez-se ouvir novamente; já não me podendo conter, aproximei-me do muro e vi que era preciso despender pouco esforço para o escalar. 

“Após alguns momentos de hesitação, tomei uma grande decisão: passei do meu para o jardim vizinho; ali percebi não uma mulher, mas uma huri, a huri favorita de Maomé, uma maravilha, enfim! À minha vista ela se assustou um pouco mas, lançando-me a seus pés, supliquei-lhe que não tivesse nenhum receio e me ouvisse; disse-lhe que o seu canto me havia atraído e garanti-lhe que nas minhas atitudes não encontraria senão o mais profundo respeito; ela teve a bondade de me ouvir. 

“Passámos a primeira noite a falar de música. Também cantei e me ofereci para acompanhá-la; ela consentiu e, marcamos encontro para o dia seguinte, à mesma hora. Naquele momento estava mais tranquila; o sultão estava no seu conselho e a vigilância era pequena. As duas ou três primeiras noites passaram-se inteiramente com música; mas a música é a voz dos amantes e, a partir da quarta noite, já não éramos estranhos um ao outro: nós nos amávamos. Como era bela! Como a sua alma também o era! Planeamos a fuga diversas vezes. Ah! por que não a realizámos? Eu seria menos infeliz e ela não estaria prestes a sucumbir. Essa bela flor não estaria ao ponto de ser colhida pela foice que vai arrebatá-la à luz. 

(Continua na próxima publicação.) 

/… 

(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite – Uma Noite Esquecida (Primeiro artigo), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858, 16º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 5 de março de 2023

~ em torno do mestre


«Nil novi sub sole» (*) 

(*) Nada de novo sobre o sol 

 "Estando a festa Já a meio, subiu Jesus ao templo e se pôs a ensinar. E se maravilhavam, então, todos, dizendo: Como sabes estas letras, sem teres estudado? Jesus então retorquiu dizendo: O ensino que vos dou não é meu, mas daquele que me enviou... Não falo por mim mesmo. Quem fala por si mesmo procura a sua própria glória; mas, quem procura a glória de Deus esse é verdadeiro, não há nele dolo nem iniquidade... Quem crê em mim não é em mim que crê, mas naquele que me enviou. Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma... Graças te dou a ti, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos doutos e as revelaste aos pequeninos." 

 Como é diferente o critério de Jesus do dos homens, em relação ao saber, aos conhecimentos adquiridos e aos feitos realizados! 

 O homem procura a fama, a notoriedade pessoal, a sua própria glória. Jesus, ao ser admirado pelo povo que o escutava; ao observar o efeito maravilhoso que o seu verbo produziu na mente e no coração das assembleias a quem se dirigia, exclama: "O ensino que ministro não é meu, mas daquele que me enviou." 

 Ao contrário dos homens, que se jactam dos louvores que recebem, enchendo-se de vaidades, o divino Mestre tira de si qualquer mérito que lhe pretendam conceder, declarando com toda a sinceridade: "Eu não posso, de mim mesmo, fazer coisa alguma!" 

 Às expressões de admiração e surpresa, partidas dos seus ouvintes, em gestos espontâneos e incontidos, ele retruca: "Quem crê em mim, não é em mim que crê, mas naquele que me enviou." 

 Aos enfermos que, restabelecidos por ele, se mostravam gratos, dizia invariavelmente: "A tua fé te curou." 

 Sim, a tua fé, não eu! Quanta sabedoria em toda essa sublime renúncia, em todo esse excelente altruísmo! Quanta sabedoria, insistimos, por isso que, ao lado da elevada moral que essa atitude revela, existe a consciência de um profundo saber. Senão, vejamos. De que é que os homens tanto se ufanam? De suas descobertas? Mas, aquilo que se descobre é precisamente o que já existe. Tudo o que é real e verdadeiro, tudo o que é positivo e indestrutível, sempre existiu, é eterno. Logo, de que se vangloriam os homens? 

 Newton (sábio de valor e que foi modesto) descobriu a lei da atracção e da gravidade dos corpos, lei tão antiga como o próprio Universo, do qual a Terra é parcela ínfima. 

 Harvey descobriu que o sangue circula pelas redes venosas e arteriais. Não obstante, o sangue sempre circulou desde que há formas de vida organizadas no orbe terráqueo. 

 Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, torrão que em todos os tempos fez parte de um dos continentes. Colombo descobriu a América, região que, a seu turno, jamais deixou de fazer parte deste planeta. 

 Koch descobriu o micróbio da tuberculose; Hansen, o da lepra; porém, tais bacilos coexistem com aquelas enfermidades. A lepra vem de eras imemoriais. Já no tempo de Moisés havia leprosos no mundo. Oxalá houvessem aqueles sábios descoberto, ao invés do micróbio, a cura de tão terríveis mórbus. 

 Não pretendemos com estas considerações negar o merecimento a que fazem jus todos os que porfiam e lutam na esfera das evidências e das pesquisas científicas de qualquer natureza. O que apenas queremos é deixar patente a relatividade dos méritos em tais casos, mesmo quando a descoberta seja fruto de esforços acurados. 

 O próprio vocábulo — descobrir — já está previamente declarado tratar-se de algo existente, apesar de ignorado. O homem devia antes mostrar-se desapontado, por haver enxergado tão tarde aquilo que é de todos os tempos. E quando se trata de descobertas de carácter fortuito como a de Cabral? E quando são obra de um momento, como a de Newton

 Não há nada de novo debaixo do Sol, diz a sabedoria de Salomão. (i) O homem, com as novas que, por misericórdia, lhe vão sendo reveladas do alto, faz como as galinhas. Estas, cada vez que põem um ovo, desandam em alarido, acompanhadas pelos galos e outros galináceos da capoeira. No entanto, o papel da galinha, em relação à postura de ovos, é relativamente secundário, por isso que ela não é criadora, mas simples incubadora do ovo, desde o início de sua formação até à postura. Depois, é ainda pela incubação exterior que a galinha se presta ao choco e consequente ao aparecimento do pinto. Tanto a formação do ovo, como a sua evolução até ao pinto, são fenómenos que se sucedem e se encadeiam à revelia da galinha. 

 Da mesma sorte, tudo o que é real, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é permanente, tudo o que é luz, tudo o que é sabedoria, tudo o que é belo, tudo o que é virtude, tudo o que é vida, vem de Deus, é eterno, coexiste com o Supremo Arquitecto do Universo. 

 O homem não pode coisa alguma, se do céu não lhe for dado, afirma com justeza João Baptista

 O que de facto é do homem é aquilo que passa, que é instável e efémero. O que, infelizmente, para o homem, é sua genuína produção, é a guerra com os seus horrores; é a enfermidade com seu cortejo de angústias e gemidos; é a tirania, a iniquidade, o ódio, o ciúme, a cobiça, o vício, o crime e todas as demais expansões do egoísmo: isso tudo é dele, é obra sua, é seu engenho, sua criação. Pretenderá o homem envaidecer-se de tais feitos? 

 E a sua ciência? A sua ciência, após complicados circunlóquios, termina invariavelmente na força e na matéria, elementos estes que ele continua ignorando o que sejam. Quereis mais de sua ciência? Eis aqui: O que é a electricidade? É movimento. O que é a luz? É movimento. O que é o som? É movimento. Com definições tais a ciência do homem pretende haver resolvido todas as questões e todos os problemas da vida; mas, continua negando a Deus, sob o pretexto de o não compreender! 

 Bendito seja o Senhor do céu e da terra, por haver ensinado esta lição aos simples e pequeninos, ocultando-a aos doutos e eruditos! 

 Quando deixará o homem esse personalismo vaidoso e estiolante? Quando desistirá ele de tirar patentes de invenção e requerer privilégios? Porquê tanto cacarejar? 

 Ó Salomão onde estás, que não vens proclamar ainda mais uma vez esta verdade: Nil nove sub sole!

 (*) Nada de novo sobre o sol 


Amor e amores ~ 

 Os homens conhecem muitos amores: o amor materno, o amor filial, o amor conjugal, o amor fraterno, o amor platónico, o amor da pátria, o amor divino, etc, etc. 

 E, talvez por isso mesmo, ignorem o que seja o amor propriamente dito. O amor sem complementos, desacompanhado de todas as adjectivações, essa força que preside à harmonia do Universo; o amor, simplesmente amor. 

 Da ignorância em que os homens vivem do único amor, origina-se a causa de todos os seus males e sofrimentos. 

 Os amores apendiculados não resolvem os problemas da vida, antes os complicam. Alguns chegam a ser nocivos e perigosos. Aquele que se denomina conjugal responde quase sempre pelos divórcios e pelas tragédias domésticas, não raras vezes sanguinolentas. É muito provável que a sua benéfica influência explique a razão por que os cônjuges, neste mundo, raras vezes se entendem. 

 Esse mesmo tipo de amor, quando ainda nos pródromos da conjugação, costuma ter o seu epílogo nos necrotérios, através de dois crimes: assassínio e suicídio. Chama-se a isso — drama passional, ou delitos por amor! Blasfémia! 

 Do amor fraterno resulta que os filhos dos mesmos pais, que juntos cresceram sob o mesmo tecto, se desestimem e até mutuamente se hostilizem. Os que se querem constituem excepção. 

 O amor da pátria gera as dificuldades e os graves problemas internacionais, as crises económicas, para cuja solução determina a queima de produtos indispensáveis à vida humana, tais como o trigo, o café, o petróleo, etc.; esquecendo-se de que há carestia, fome e nudez em várias regiões do globo. 

 Faz mais ainda esse decantado amor: emprega a maior parte das arrecadações, extorquidas ao povo, na manutenção de exércitos aparelhados com tudo quanto a arte de matar e destruir tem produzido de mais aperfeiçoado. E, de vez em quando, açula essas matilhas de lobos umas contra as outras em cruentas lutas, ensopando a terra de sangue e de lágrimas, quando ficou estabelecido pelo Senhor dos mundos que o solo fosse regado com o suor do rosto. 

 O dito amor divino (que dele o céu nos defenda) criou abismos de separação entre os membros da família humana. Não contente com isso, inventou a Inquisição, as Cruzadas e a noite de S. Bartolomeu! 

 Decididamente, os tais amores (salvo as excepções que transcendem para o amor propriamente dito, pois tais modalidades constituem um meio para atingir aquela finalidade) são desastrosos. 

 Certamente, prevendo tudo isso é que o Divino Instrutor da Humanidade, depois de muito haver falado e exemplificado acerca do amor (sem complementos, nem apêndices), terminou dizendo aos seus discípulos: Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. 

 A novidade do mandamento está no modo como ele ama. O seu amor é diferente dos muitos amores já bem conhecidos, em todos os tempos, nesta sociedade. 

 Deus é amor. Portanto, o verdadeiro amor é uno com o verdadeiro Deus. O politeísmo, como o amor polimorfo, gera a confusão. Não podemos servir ao Deus uno, alimentando ideias exclusivistas e sentimentos sectários, é por isso que todas as coisas e todos os seres são obras suas e reflectem sempre, de uma ou de outra maneira, a divina presença. 

 O mesmo sucede no que respeita ao culto do amor. Este nobre sentimento em tudo palpita, pois, em essência, é a mesma vida universal que anima a infinita criação. Por isso, podemos senti-lo na estrela que refulge no azul do céu, no perfume da flor, na gota de orvalho que tremula na relva, no canto do passaredo, no sorriso da criança... 

 Tal é a moralidade daquele mandamento a que Jesus chamou novo há vinte séculos e, que novo contínua a ser hoje, porque ignorado e não praticado. 

 É tempo de aprendê-lo, cultivando o amor, até que adquiramos o hábito de amar; até que nos tornemos, como Jesus, filhos do AMOR 


A nossa loucura ~ 

 É vezo dos adversários do Espiritismo, particularmente da clerezia com e sem batina, acoimar de loucos os profitentes daquele credo. 

 Não se encontra em qualquer tratado de psiquiatria fundamento algum em que repouse semelhante aleive. Os especialistas na matéria sempre que se manifestam serenamente, quer nas obras que tratam do assunto, quer em artigos avulso pela imprensa, apontam, como factores principais da loucura, a sífilis, o alcoolismo e a toxicomania. 

 É possível que certos elementos interessados na difamação do Espiritismo consigam, por encomenda, alguma opinião de profissionais, favorecendo-lhes os intentos. Tais pareceres, porém, reclamados por interesses subalternos de momento, não têm valor científico nem idoneidade moral. Falecendo em documentos dessa natureza aqueles requisitos, não podem ser os mesmos levados a sério. 

 De outra sorte, é público e notório que há inúmeros casos de insânia em pessoas pertencentes a outros credos e, mesmo no seio de famílias adversárias, irreconciliáveis da doutrina espírita. Este facto, bastante eloquente e significativo, destrói por si só a falsa imputação a que nos vimos aludindo. 

 Contudo, o estribilho continua: o Espiritismo faz loucos; na casa onde entram os livros espíritas, entra o gérmen da loucura. 

 Diante dessa insistência, concluímos que algum motivo devia existir para corroborar o referido remoque. E, de acordo com o conselho evangélico — procurai e achareis —, chegamos a desvendar o mistério com grande satisfação para nós, vítimas da cruel e pertinaz insinuação. Quando se aclarou na nossa mente o enigma, quase bradamos como Arquimedes: Eureca! Eureca! 

 Vamos, portanto, revelar aos leitores a nossa descoberta. 

 Como é sabido, procura-se por natural instinto de curiosidade, muito próprio da psicologia  humana, saber o móbil que determina a conduta de certas pessoas ou de certa classe de indivíduos cujo proceder destoa do modus vivendi da maioria. O móbil que determina os actos do homem, segundo o critério geral, é, invariavelmente, o interesse; interesse que pode ser directo ou indirecto, presente ou remoto, de natureza material ou moral, mesquinho ou elevado, mas sempre interesse. 

 Ora, os detractores do Espiritismo tornaram-se detractores dessa doutrina precisamente porque não conseguiram descobrir onde o interesse que move os espíritas através dessa actividade fecunda e constante a que eles se entregam. Indagando, perscrutando e investigando meticulosamente, por todos os meios, onde o interesse oculto dos espíritas, nada encontraram. Daí concluíram, aliás logicamente, por estar de acordo com os costumes do século, que só a loucura poderia explicar o ardor com que se debatem os adeptos do Espiritismo em prol dos ideais que esta doutrina encarna. 

 O fenómeno não é novo. Já no início do Cristianismo, os primitivos discípulos da nova fé passaram também como insanos e como elementos perigosos à ordem social, motivo por que sofreram as mais cruéis e dolorosas perseguições. 

 E, realmente, os que tomam os espíritas como desequilibrados têm razão, segundo o critério da época. Senão vejamos. 

 Qual é o móbil que agita os apóstolos do Espiritismo? Onde está o interesse a que visam? Económico, não é visto como os seus evangelizadores agem por conta própria, não percebem emolumentos nem ordenados por via directa ou indirecta, de quem quer que seja. Não fazem jus tão pouco a títulos honoríficos quaisquer. 

 São antes, ridicularizados pela atitude que assumem na sociedade. Recompensa futura, na outra vida, também não pode ser invocada como justificativa, porque a doutrina espírita reconhece e adopta a lei da causalidade, isto é, a lei das causas e efeitos mediante a qual todo o erro, falta ou crime cometido, há de recair fatalmente sobre o seu autor. O espírita não crê nas indulgências plenárias ou parciais nem no perdão no sentido de anulação da culpa. Crê na graça divina como auxílio, como a colaboração dos fortes em favor dos fracos; dos que sabem, em prol dos que ignoram. 

 Ora, do exposto se conclui claramente que os espíritas não lutam por motivo algum que se ligue ao interesse. Os seus divulgadores não percebem côngruas nem dízimos; são comumente lesados nos seus interesses particulares por questões de intolerância do meio em que vivem. Não fazem jus, como já vimos, a honras e distinções; são, antes, espezinhados e escarnecidos. Não pretendem alcançar favores e privilégios no céu. Que podem ser, então, tais pessoas senão vítimas de loucura? Onde já se viu destoar assim do século em que vivem? Que significa agir fora da órbita traçada pelo egoísmo e proceder em desconformidade com a grande maioria? Loucura rematada, não há dúvida nenhuma. 

 Por isso, parodiando o Apóstolo da gentilidade (i), dizemos: Anunciamos uma doutrina que é loucura para os gregos (materialistas) e escândalo para os judeus (sectários). 

 O Cristo de Deus fez jus ao mesmo qualificativo. 

/…  

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra.” 

                                                                                 Pedro de Camargo “Vinícius”        


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; A grande lição / O sumo bem / As milícias do Céu, 16º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)