Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 17 de dezembro de 2022

O Homem e a Sociedade ~


O SIGNIFICADO ESPÍRITA do Materialismo Dialéctico 
(III de III) 

  O que os materialistas dialécticos não deveriam ignorar é que o conceito de movimento traz como consequência um conceito idealista da natureza, quando se reconhece o movimento como a origem das formas. 

  O movimento levará sempre a um espiritualismo dinâmico, o que nos faz reconhecer que o materialismo histórico, para permanecer como um verdadeiro materialismo, não devia adoptar a dialéctica de Hegel, já que ela, queira-se ou não, desembocará numa concepção idealista do homem da vida. A filosofia espírita apresenta ao materialismo dialéctico uma interpretação nova do espírito, baseada na teoria do perispírito, mediante a qual demonstra a substancialidade do Ser e da Ideia, antes considerados como puras abstracções. Por isso, disse Gustave Geley: "A noção do perispírito suprime a grave objecção, feita continuamente ao espiritualismo, quanto à dificuldade de conceber a própria alma sem nenhuma forma definida.” 

  Com a teoria do perispírito, o movimento, como as formas materiais, resultam numa consequência da vida Universal. Com ela aparece uma teleologia do Ser, sendo a dialéctica a causa da expansão psíquica dos seres e, o perispírito o receptor da força e da inteligência. O materialismo dialéctico não conseguiu nunca explicar como se produz na mente do indivíduo a pantomnésia, isto é, a conservação da individualidade e das recordações. Porque, se o processo dialéctico é também mental, em virtude de que princípios a memória regista as impressões do mundo exterior e permanece inalterável à consciência do indivíduo? Além disso, que essência misteriosa protege o pensamento, se o movimento o renova totalmente e tudo é e não é ao mesmo tempo? Por que, se ninguém se banhará duas vezes no mesmo rio, a inteligência continua sendo a mesma, sem esquecer as suas aquisições e conhecimentos? Numa palavra, quem preserva a coesão individual e a memória, se tudo está exposto ao processo dialéctico? 

  Eis aqui, pois, os pontos capitais a que o materialismo histórico deverá responder. 

  O espiritismo pode solucionar o problema, dizendo que o Ser espiritual se mantém inalterável no meio do processo dialéctico, devido ao perispírito, no qual se resumem toda a sua inteligência e a sua individualidade. O Ser, com efeito, sustenta-se no perispírito, órgão que não pode ser alterado pelas leis do movimento dialéctico. Como veremos, esta interpretação do homem sobrepuja completamente a interpretação materialista da história. Assim, já não é somente o factor económico que determina as condições políticas, artísticas, religiosas e, outras da sociedade, pois nelas intervêm também os elementos espirituais. Porque, se a vida espiritual do homem dependesse exclusivamente dos modos de produção, não existiriam espíritos com sentido de justiça: a inteligência estaria ao nível das formas imperfeitas da sociedade. 

  Não obstante, as formas capitalista e socialista são a consequência de estados de consciência, respondendo a dois graus de evolução intelectual e mental do indivíduo. Estes dois graus de evolução deveriam explicar-se pelo estado moral do perispírito, base de todas as sensações do Ser e, pelo maior desenvolvimento palingenésico do homem. Se é certo que os modos de produção aperfeiçoam e ampliam a técnica, vemos, entretanto, que os referidos factores são incapazes de criar no organismo humano novos membros, que o indivíduo pudesse utilizar em seu proveito. Esta impotência dos modos de produção permite à filosofia espírita estabelecer a seguinte conclusão: 

  Se a mão foi o primeiro instrumento do qual se valeu o homem, na sua luta pela existência, este mesmo facto nos indica que é sempre a Ideia, ou o Espírito, que rege a realidade objectiva, por intermédio de um órgão material. 

  E a isto, para sermos mais explícitos, devemos acrescentar que não foram as forças produtivas da economia que desenvolveram as mãos no indivíduo, mas o próprio poder de materialização do Ser, já que os modos de produção em nada alteraram as formas anatómicas do homem. Podemos dizer que as formas orgânicas do indivíduo não foram tocadas pelo processo dialéctico da economia, o que nos mostra a existência, na natureza humana, de um princípio psíquico que não poderá ser alterado por nenhuma espécie de influência exteriores. 

  O desenvolvimento ou aparição de asas nas espécies voláteis não tem origem de carácter económico, mas corresponde apenas a uma finalidade do perispírito (i) desses seres. O aparecimento das faculdades metapsíquicas na espécie humana não se deve tampouco a qualquer tipo de determinismo económico. O seu desenvolvimento corresponde a factores espirituais que o homem traz em si mesmo, e que irão aumentando à medida que ele avance através do processo palingenésico. 

  Entretanto, os factores económicos são elementos que podem influir indirectamente sobre o desenvolvimento metapsíquico do homem. Por isso, no seu aspecto social, a filosofia espírita revela um sentido nitidamente socialista. Um povo economicamente pobre não poderá desenvolver com facilidade o sentido psíquico da vida espiritual; não terá oportunidade para isso, visto que a pobreza sempre engendra o raquitismo. O desenvolvimento de qualquer faculdade metapsíquica nos homens e nos povos requer a organização de uma sociedade próspera, no sentido económico; as nações pacíficas e felizes são as que mais prontamente se aproximam das realidades do mundo invisível. 

  O materialismo dialéctico deverá reconhecer que a vida do homem tem uma finalidade transcendental. Desse modo poderia conter, como parece desejar, os erros do existencialismo. Porque, se o homem e o cidadão, a sociedade e a história, não possuem uma suprema teleologia espiritualde nada valerá o esforço para instituir na Terra uma sociedade sem classes. Se o homem, repetimos, é um Ser para a morte e para o nada, como o admite o existencialismo ateu, pouco importa que existam ou não classes exploradoras, pois tudo há de terminar na gélida noite do sepulcro. Em compensação, se o Ser é uma individualidade espiritual para a vida eterna, poderão justificar-se as diversas lutas em prol de uma sociedade justa e perfeita. (1) 

  A filosofia espírita, que experimentalmente pode provar a existência imortal do Espírito, é uma vigorosa ideologia que poderá inspirar todo o homem que se sacrifique pelo bem e pela igualdade. Se o materialismo dialéctico quer enveredar por este novo caminho da filosofia e da ciência, deverá espiritualizar as suas conclusões e reconhecer que, nos diversos processos da evolução, todo o princípio material tem o seu espírito e, todo o princípio espiritual tem a sua matéria. Desta aproximação entre o material e o espiritual surgirá a mais extraordinária das revoluções, que dignificará o homem, como em nenhum outro período da história. 

 /… 
(1) Os materialistas lutam estoicamente por um futuro que nega o seu objectivismo e os coloca no plano do idealismo. Mariotti acentua essa contradição, dialecticamente resolvida pelo espiritismo. (Nota de José Herculano Pires). 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo V – O Significado Espírita do Materialismo Dialéctico (III de III), 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

sábado, 3 de dezembro de 2022

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~ 
(IV) 

  A nacionalidade, o clima, a natureza dos alimentos, a educação, não bastam para constituir caracteres inteligentes e indómitos! No carácter humano a energia é, realmente, poder central, o eixo da roda, o centro de gravidade. Só ela dá impulsão aos actos. 

  Essa força mental é a própria base e a condição de toda a esperança legítima e, se é verdade que a esperança é o perfume da vida; o poder mental há-de ser a raiz dessa planta preciosa. 

  Ainda mesmo que as esperanças se desvaneçam e a criatura sucumba nos seus esforços, resta-lhe a satisfação de haver trabalhado para vencer e, sobretudo, que, longe de ser escrava da matéria, se manteve fiel às regras, por vezes árduas, que a honestidade impõe. Haverá espectáculo mais belo e digno de elogios que o de um homem a lutar energicamente com a sorte, a demonstrar que lhe palpita no seio uma força imperecível, a triunfar pela grandeza de carácter e a prosseguir corajoso e resoluto, ainda “quando lhe fraquejam as pernas e sangram os pés”? 

  Em sentido menos generalizado que o destes grandes factos precedentes, temos visto exemplos particulares de vontades poderosas a realizar milagres. Os nossos desejos são, muitas vezes, os precursores da capacidade de realização, bastando intensificá-los para que a possibilidade se resolva na realidade. 

  Se de um lado as vontades de um Napoleão e de um Richelieu riscam dos dicionários a palavra impossível, por outro existem os vacilantes, a quem nada se afigura possível. 

  “Saiba querer energicamente – dizia Lamennais a um espírito enfermo –, fixe a sua vida flutuante e não se deixe levar por todos os ventos, qual folha murcha desgarrada do tronco.” 

  Pessoalmente, temos conhecido criaturas exaltadas, que, depois de terem estado com um pé na sepultura, recuaram de espanto perante o esplendor da vida que pretendiam abandonar e resolveram conservá-la. Estes exemplos são raros, por só serem possíveis quando o corpo não esteja tocado pela mão da morte. E, no entanto, existem. Um escritor inglês, Walker, autor de O Original (e que não deixa de revelar uma certa originalidade na sua determinação) resolveu um dia vencer a enfermidade que o acabrunhava, conseguindo admiração dali por diante. 

  Os fastos militares oferecem-nos o exemplo de vários chefes que, velhos ou doentes, logo que ouvindo no momento decisivo da batalha que os seus comandados desertavam, se atiravam para fora da tenda, assim se reuniam e conduziam à vitória, para logo depois tombarem exaustos e exalarem o último suspiro. 

  Não somente a vontade, mas também a imaginação domina a matéria, contradiz o testemunho dos sentidos e origina, às vezes, ilusões absolutamente alheias ao domínio físico. 

  Expliquem-nos como pode morrer um homem quando, com uma simples picada, os médicos lhe sugerem que o sangue escorre da veia rasgada. (Este e outros factos estão judicialmente averiguados.) Que nos expliquem como a imaginação cria um mundo de quimeras, que actuam activamente no organismo e se reflectem na saúde. 

  Ao demais, tão forte e autónoma é a vontade, que as influências ambientes tão precárias se afirmam, para explicar a marcha da vida intelectual, que, a maior parte das vezes, não a atrapalham e, ao contrário, nos induzem a proceder com energia tanto maior, quanto mais prementes são os obstáculos que se nos deparam. Todos quantos se votam a tarefas intelectuais dirão connosco que a fase em que mais operaram na sua carreira foi precisamente a de maiores dificuldades na vida prática e que a vontade é qual os rios que seguem destruindo e vencendo os acidentes do seu curso, não obedecem a barragens e até se encrespam e se precipitam mais impetuosos, quanto mais sólida e alta é a muralha que se lhes opõe. Quando o sucesso e a glória vêm coroar os nossos trabalhos e após uma faina longamente sustentada a reacção vem convidar-nos ao repouso, nele nos deixamos efeminar pelas delícias de Cápua e já o fogo da inspiração não nos acende auroras na mente. O trabalho pessoal da vontade é condição sine qua non do nosso progresso. 

  Na polémica acerca da existência da vontade, a questão muito longa e inutilmente contestada, do livre-arbítrio, não pode ficar sem o seu ponto de interrogação. Os adversários negam-no-lo absolutamente e proclamam, como vimos e suficientemente comentámos, que todas as realizações humanas são o resultado necessário de causas ou oportunidades emergentes à revelia da reflexão, sem que esta lhes possa mudar o curso. O pensamento não é mais que o movimento físico da substância cerebral. Esse movimento procede do sistema nervoso, afectado, a seu turno, por um movimento exterior. 

  O movimento pensante, por sua vez, reage sobre os nervos e os músculos e determina os actos. Em toda esta sucessão não há movimentos materiais transmitidos. Eu imagino de bom grado o encontro de um cristão com um discípulo de Holbach no sótão de um desses ateliês, cujas portadas se protegem com a clássica estatueta de Hipócrates travando o seguinte diálogo: 

  – É facílimo demonstrar que o pensamento é produto da matéria – dirá o holbaquiano –. Eis, por exemplo, uma locomotiva que se precipita veloz ao vosso encontro. A visão da locomotiva ou, para falar fisicamente, o raio luminoso partido dessa máquina atinge o vosso globo ocular e provoca um dado movimento distensivo do nervo óptico... Por intermédio desse mesmo nervo o movimento se transmite ao cérebro. Depois, o movimento cerebral, tornando-se causal, por sua vez acciona os nervos correspondentes às pernas e estas começam a correr e a levar-vos para fora da linha. É evidente, pois, que em tudo isto não utilizas uma partícula de liberdade qualquer. A vossa atitude deriva, necessariamente, da impressão visual da locomotiva. 

  – Mas, perdão – retorquirá o outro – e, se eu, por um capricho de suicida, aliás comum, tivesse deliberado permanecer na linha até que a locomotiva me esmagasse? Não praticaria dessarte um acto voluntário e de livre-arbítrio

  – Absolutamente. A não ser que houvesse enlouquecido e tivésseis premeditado e maturado o plano do suicídio, nem por isso ele deixaria de ser o resultado de causas predispostas e, portanto, involuntário. 

  – Admitamos que assim seja, quanto ao momento decisivo, uma vez que matar-se a gente sem motivo seria imbecil. Mas, pergunto ainda: quanto ao género de morte, não poderia escolher a corda, o veneno, a queda de uma torre, a bala, etc., em vez de me atravessar na linha férrea? Não terei, pelo menos, a liberdade de opção? 

  – Desenganai-vos. Se vos decidirdes pelo esmagamento, será porque existe próximo uma linha-férrea; ou por imaginardes ser esse um processo mais rápido, menos doloroso; ou por vos repugnarem outros géneros de morte, etc. 

  – Mas, de qualquer forma, sempre se conclui que escolhe... 

  – Jamais! É que uns tantos movimentos se operaram no órgão da reflexão. Seria um causado pelo aspecto de uma força, o outro pelo necrotério; pela imagem de um crânio partido, pela hipótese de um tiro falhado, das angústias da asfixia e assim por diante. O movimento correspondente ao esmagamento pelo comboio seria, então, o que se afigurava menos desagradável e, dominando os demais, decidiria da vossa sorte. 

  – Mas, se eu tivesse, por exemplo, conflitos com um irmão e, em lugar de postar-me na linha, fosse, por determinação dos movimentos correspondentes a tais agravos, levado a atirar sob as rodas do comboio o corpo do meu irmão, tinha ou não a liberdade de o fazer? Seria responsável, ou não? 

  – Não entremos em tricas jurídicas... 

  – Pois muito bem: voltando ao nosso suicídio, dissestes que eu teria escolhido um género de morte determinado por uma causa qualquer. Ora, isso é claro, pois de outro modo, para falar com franqueza, escolher sem uma causa determinante, é estúpido. Mas, como podem tais causas actuar materialmente? 

  – Por um revés de sorte perdeis a tranquilidade e o bem-estar. Habituado à fartura e a todos os regalos do corpo e do espírito, encontrais-vos de chofre na maior miséria. O constrangimento, as restrições do vosso organismo, a alteração de hábitos, actuam sobre o cérebro, que, perante a perspectiva de morte lenta e miserável, decide antecipá-la desde logo. São sempre, como vedes, movimentos físicos. 

  – Mas... se forem desgostos de família, decepções amorosas, medo da desonra, causas de ordem moral, em suma? 

  – Não existe ordem moral. 

  – Já esperávamos por essa. E é assim que pretendeis nada afirmar sem provas? É assim que presumis interpretar fielmente o ensino da Ciência? Tomemos um último exemplo, vede bem! Eis aqui, em descanso, a minha mão direita; nada me obriga a erguê-la... Agora, contudo, quero fazê-lo e o faço... Agi livremente, ou não? 

  – Não. Houve uma razão determinante, como a de provar o vosso arbítrio e suscitada pela vossa conversa anterior. Esta, por sua vez, originando-se de factos precedentes, desde que nascestes. A vida mental, como a material, ou para melhor dizer – única, não passa de uma sucessão necessária de causas e efeitos a se entrosarem naturalmente. 

  – Vede ainda: tenho a mão suspensa. Agora, imaginai que a movimento num círculo e a espalmo, chapada, na vossa cara. Tendes uma sensação de ardor, exaltamento imediato e já ruborizado, gritareis: que é isso? Mas, antes que possais reagir de facto, digo-vos: 

  – De que vos admirais? Então, este sopapo não é consequência inevitável do movimento da mão, da fantasia desse lóbulo que opera acima do ouvido, junto das zonas protectoras da apófise mastóidea e da sutura occipto-parietal, etc.? E tal não se dá, de sucessão em sucessão, desde os primórdios do mundo? 

  – Caro senhor, tendes na verdade exemplos edificantes, que muito me impressionam. Tenho, para mim, que tudo isso não passa de um movimento em série da dipotasshydorylhydroxamina no vosso lóbulo frontal e dado que, em consequência desses movimentos, tomásseis de uma faca para me esfolar vivo, seria cómico que me formalizasse. Mas, para encerrar a questão, uma vez que preciso retirar-me, dizei-me: – não pensais com Espinoza que a nossa pretensa liberdade não passa de aparência e que, “tendo consciência dos nossos actos, nem por isso lhes conhecemos a causa?”. Não admitis, com Hurne, que o “homem tem consciência, não do princípio dos seus actos, mas tão somente dos actos em si, apenas como fenómenos”? Todo o movimento cerebral nos vem do exterior, pelos sentidos e a excitação do cérebro; o pensamento é um fenómeno material, como o próprio pensamento. A vontade é a expressão necessária de um estado cerebral produzido por influências exteriores. Não há vontade livre; não há concretização de vontade independente da soma de influências que a todo o momento inspiram o homem e lhe impõem, ainda, os mais poderosos limites invioláveis”. 

  Assim falaria, porque assim falam os discípulos de Holbach. No parecer deste (ii), “a liberdade não é mais que a necessidade encerrada dentro de nós. Não há diferença entre o homem que se atira voluntariamente e o que é atirado de uma sacada abaixo, senão que ao primeiro a impulsão lhe vem de dentro e ao segundo lhe chega de fora do seu maquinismo”. 

  Contudo, há casos peremptórios, nos quais pensamos poder constatar o livre-arbítrio, como, por exemplo, na atitude de um homem que, possuído de grande sede, repele dos lábios o copo d'água, logo que lhe dizem que esta contém veneno. Mas, temos o direito de supor que esse homem assim proceda livremente? A vontade, ou, melhor, o cérebro se encontra em estado comparável à bola que, recebendo um impulso em certa direcção, desta se desvia logo que intervenha uma força maior que a primeira. 

  Holbach nos dá uma fórmula aritmética da liberdade: As acções do homem são sempre um misto de energia própria e dos seres que sobre ele actuam e o modificam (iii)

  Respondemos a essa negação integral da liberdade com uma doutrina que, sem nos investir de um arbítrio absoluto, uma vez que as influências exteriores actuam constantemente para atenuar esse absoluto, nem por isso deixa de nos dar uma liberdade real, uma responsabilidade íntima, um livre-arbítrio incontestável. O assunto é mais complexo do que parece aos profanos e temos uma permanente manifestação de sua dificuldade na sucessão secular das crenças religiosas, que oscilam entre o fatalismo e a graça divina. Maomé arvorou-o estandarte do fatalismo; Calvino só vê a predestinação, enquanto Lutero consagra o livre-arbítrio absoluto. A verdade, pensamos, está entre os extremos. O número de partes teológicas concernentes à graça divina é incontável e compreende-se que, nesta época, é tempo perdido para aquele que se emprega nestas elucubrações. Contudo, é sempre útil saber o que devemos pensar da liberdade. Nós, pelo menos, assim o consideramos com Spurzheim, quando a respeito escreveu aquelas páginas sensatas, quando assim pondera o controverso assunto (iv)

  A palavra liberdade é empregada num sentido mais ou menos lato. Há filósofos que atribuem ao homem uma liberdade ilimitada. A seu ver, o homem cria, por assim dizer, a sua própria natureza, adquire as faculdades que deseja e age independente de qualquer lei. Uma tal liberdade está em contradição com um ser criado. Tudo quanto possam dizer a seu favor não passará de declamações enfáticas, desprovidas de senso e de veracidade. 

  Outros há que admitem uma liberdade absoluta, em virtude da qual o homem age sem motivo. Isso, porém, é presumir efeito sem causa, é isentar o homem da lei de causalidade. Seria uma liberdade contraditória de si mesma, podendo proceder-se no mesmo caso bem ou mal, mas sempre sem motivo. Inúteis seriam, então, todos os institutos de finalidade beneficente, individual ou colectiva. De que serviriam as leis, a Religião, as penalidades e recompensas, se nada determinasse o homem? Por que esperar de outrem amizade e fidelidade, antes que ódio e perfídia? Promessas, juramentos, votos, tudo ilusão! Uma tal liberdade nada tem de real, não passa de especulativa e absurda. 

  Precisamos, ao contrário, reconhecer uma liberdade concorde com a natureza humana, liberdade que a legislação pressupõe, liberdade raciocinada

  Três são as condições fundamentais da liberdade legítima: em primeiro lugar, é preciso que a criatura possa escolher entre os vários motivos. Seguindo o motivo mais forte, ou agindo só por prazer, já se não opera com liberdade. O prazer não é mais que uma falsa aparência de liberdade. A ovelha que mastiga a erva com prazer não está a exercer um acto livre. 

  Obedecendo a um desejo mais forte, também o animal, quanto o homem, não o pratica livremente, tampouco. A condição principal da liberdade é a inteligência, ou a faculdade de conhecer e escolher os motivos. Quanto mais activa a inteligência, mais ampla a liberdade. Os idiotas natos, as crianças até uma certa idade, têm, às vezes, desejos muito enérgicos, mas ninguém os considera livres, visto não possuírem inteligência bastante para distinguir o falso do verdadeiro. Os homens melhor educados e os mais inteligentes são os de quem, mais que dos ignorantes, deploramos as faltas. À medida que se elevam na série das faculdades intelectivas, os animais se vão tornando mais livres e modificam mais individualmente os seus actos, de acordo com as circunstâncias exteriores e com as lições da sua prévia experiência. Se empregamos a violência para impedir o cão de perseguir a lebre, ele se lembrará das pancadas que o aguardam e, irascível e trémulo ao império dos próprios desejos, não deixará de ceder. O homem, superior a todos os seus irmãos da escala zoológica, é, por sua própria natureza, o ser que goza de liberdade no grau mais eminente. Só ele procura encadear efeitos e causas, comparar melhor o presente e o passado e, daí tirar conclusões para o futuro. Pesa as razões, detém-se nas que lhe parecem preferíveis, conhece a tradição. O seu raciocínio decide e perfaz a vontade esclarecida, muitas vezes contrariamente aos seus desejos. 

  Uma última condição da liberdade é a influência da volição sobre os instrumentos que devam operar as suas ordens pessoais. O homem não é responsável pelo desejo ou por faculdades afectivas dele independentes. A responsabilidade individual começa com a reflexão e com a possibilidade de proceder voluntariamente. No estado de saúde os instrumentos operatórios subordinam-se à influência da vontade. A fome é involuntária, mas, se ao senti-la, eu me abstiver de comer, exerço a influência da minha vontade sobre os instrumentos do movimento voluntário. A cólera é involuntária, mas eu não sou forçado a maltratar quem me provoque, só porque a minha vontade influi nos meus músculos. Perdido o domínio dessa influência, então sim, o homem já não é livre. É o que amiúde sucede com os alienados, que experimentam desejos, reconhecem a sua inconveniência, chegam a maldizê-los, mas não têm a força de restringir os movimentos involuntários, chegando mesmo, algumas vezes, a pedir que lhos embarguem. 

  A liberdade moral é a própria base da sociedade e se ela não passa de ilusão, todo o género humano, tanto as nações incipientes como as mais civilizadas, que cultivam a Ciência e governam a Matéria, bem como os povos remotos, toda a Humanidade, – repetimo-lo – ter-se-ia deixado iludir pelo mais colossal dos erros que ainda existiu, depois de enveredar pela senda mais falsa e injusta que possamos imaginar. Mas... que dizemos: – injusta? Neste sistema, essa palavra nada significa e visto que o bem e o mal não existem; uma vez não haver ordem moral, é claro que todas as palavras concernentes à descrição dessa ordem, todos os pensamentos e julgamentos carecem de sentido. E, contudo, a menos que abstraiamos a própria consciência, não podemos anuir a semelhantes conclusões. 

  Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que cheguem os lógicos na questão do livre-arbítrio – dizia Samuel Smiles –, todos sentimos que somos praticamente livres de escolher entre o bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado na torrente, apenas pode seguir o curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a força do nadador, que pode escolher a direcção conveniente, lutar contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe agrada. Nenhum constrangimento absoluto nos impede a vontade. Sentimos e sabemos, no concernente aos nossos actos, que não somos encandeados por qualquer espécie de magia. Todas as nossas aspirações para o bem e para o belo ficariam paralisadas se pensássemos de modo diferente. Todos os negócios, a nossa conduta na vida, o regime doméstico, os contractos sociais, as instituições públicas, tudo, enfim se baseia na noção prática do livre-arbítrio. E sem ele, onde estaria a responsabilidade? De que serviria ensinar, aconselhar, predicar, reprimir, punir? Para quê as leis, se não houvesse uma crença universal como o próprio facto universal, de que dos homens e da sua determinação depende conformar-se ou não? O homem que melhor evidencia o seu valor moral é o que se observa a si mesmo, dirige as suas paixões, vive conforme a regra que se impôs, estuda as suas aptidões e as suas falhas. 

  Eis, verdadeiramente, o homem: a sua grandeza está na sua liberdade. Não fora livre o homem, não se lhe permitiria ter fome e sede, nem comer nem beber; nem senhorear, em coisa alguma, as tendências do seu corpo. A ordem social não se teria constituído. 

/… 
(ii) Systéme de la Nature, parte 1ª, capítulo 1º, página 223. (iii) É claro que sem liberdade não há moral nem virtude. Depois de falar em “forças soberanas”, “leis indestrutíveis que constrangem”, o Sr. Taine (i) acrescenta: Quem se revoltará contra a geometria, principalmente, contra uma geometria viva – Noutro lanço, pergunta, a propósito de um trecho de Byron (i) sobre os amores de Haydéa, como se pode deixar de reconhecer a divindade, não apenas na consciência e no acto, mas no próprio gozo? Quem há que tenha lido os amores de Haydéa – exclama ele – e experimentasse outro pensamento, que não o de invejá-la e deplorá-la? Quem pode, à margem das magnificências da Natureza que os acolhe e lhes sorri, imaginar por eles outra coisa além da sensação que os une!” Bayle (i) admite, por outro lado, que vícios e virtudes têm em nós a mesma origem – a força das paixões. A esse conceito, adita o casta est quam nemo rogavit, etc. A mulher mais virtuosa é detida, antes pela má reputação, do que pelo fruto proibido. – Nós nos regozijamos de pensar que a virtude é mais sólida do que estas teorias. (iv) Essai Phylosophique sur la Nature Morale et Intellectuelle de l’Homme


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (4 de 6), 30º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)