Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 23 de maio de 2017

~~~Párias em Redenção~~~


SUICÍDIO ABOMINÁVEL
(I)

   Anunciava-se o Natal. As tempestades sucediam-se contínuas sobre a região. Os céus enfurecidos sacudiam as árvores e levavam a terra em fluxos e refluxos incessantes. Dezembro era sempre o mês das tormentas brutais.

   Girólamo vivia perdido nos seus cismares. Alheava-se de tudo e, quando lhe brilhavam os olhos com discernimento, afogava as angústias em incessantes libações, que o prostravam. Nesses estados de bebedeira, parecia piorar gravemente. Fugindo à consciência dos crimes que o açoitavam desapiedadamente, açulada a mente pela pertinaz presença do duque – que na sua alucinação ignorava as providências superiores da vida, fazendo que Carlo, seu filho renascesse em breve, para continuar a fruir os benefícios da evolução, já que ninguém fica à margem da Lei Divina –, quando o seu espírito desejoso de esquecimento se desprendia parcialmente do corpo, expulso pelos vapores alcoólicos, caía sob a crueza do perseguidor, que o explorava abominavelmente…

   Em Siena, dominado pela volúpia que o enceguecia, Carlo dava largas à própria insanidade moral. Logo que retornara à cidade, começou a fruir o gozo em escala desmedida, entregando-se a toda a sorte de engodos e prazeres. Mesmo com as regalias que lhe permitia o amo, o florentino excedia-se, retornando ao palácio sempre embriagado, quando não dormia fora dos cómodos reservados aos serviçais da casa. O cansaço e o amolentamento foram dominando-o com precipitação, gerando antipatia, que se generalizava entre os próprios companheiros das cavalariças. Além disso, os jogos e as noitadas contínuas culminaram por despertar suspeitas, quanto à procedência da súbita fortuna que desperdiçava.

   Os comentários chegaram ao conhecimento da bonomia do Conde, que, ante a insistência dos mexericos, resolveu convocá-lo à justa prestação de contas. Demonstrando a simpatia que lhe causava o moço, Dom Lorenzo indagou-lhe:

   – Carlo, onde você consegue tanto dinheiro para gastá-lo à larga, ao ponto de descuidar-se dos deveres, nas cavalariças, entregando-se totalmente à orgia?

   O ginete astuto, compreendendo a delicadeza do momento, bajulador e hábil, esclareceu:

   – Trata-se do prémio que a vossa generosidade me concedeu, Senhor Conde, e de pequenos regalos de outros admiradores, logo após o palio.

   – Carlo, não minta! – redarguiu, severo, o nobre. – Estou seguramente informado de que na noite da festa você perdeu todas as posses para o meu genro… (Percebeu o súbito palor que tomou a face do palafreneiro.) Além disso, já se passaram mais de 3 meses, após o palio…Por mais generosos que tenham sido ou continuem sendo os presentes que você recebe, eles não podem cobrir as suas despesas… Sou muito zeloso pela honra da minha casa, do meu nome, do meu título, e os que me servem devem servir-me com elevação. É claro que perdoo pequenos deslizes da juventude, mas não estou disposto a transigir com os grandes erros… Donde lhe vem o dinheiro? Sei que você não o está roubando de mim. De quem então? Responda-me, Carlo!

   O moço desejou escusar-se, mas não se atreveu. Havia na face do homem caprichoso, conquanto capaz de largas explosões de generosidade, os sinais de que estava disposto a ir além, descobrir tudo.

   Maneiroso, o florentino obtemperou, com modulação servil:

   – Perdoai-me, amo. Sucede que estou apaixonado e o meu amor não é correspondido, fazendo-me desesperar…

   – E o dinheiro, Carlo? – pressionou.

   – É exactamente isso, meu nobre amo, – prosseguiu.

   – Quando estive com o Cavaliere Dom Girólamo, em sua herdade, acompanhando-vos, narrei-lhe a minha desdita e, compadecido da minha sorte, o nobre senhor resolveu devolver-me o que ganhara de mim nos dados, oferecendo-me algo mais. Disse-me compreender o drama que me afligia e, agradecido pela forma como eu defendera as cores da vossa casa, ele resolveu retribuir-me a devoção…

   – Muito bem, Carlo. Irei informar-me de Dom Girólamo quanto à veracidade do que você acaba de narrar-me, preferindo confiar até comprovação contrária, se esta vier posteriormente.

   – Eu vos afirmo, senhor: jamais faria alguma coisa que vos pudesse molestar ou desagradar.

   Despedido, o moço saiu cerimoniosamente, da forma que muito agrada aos iludidos da transitória posição na Terra.

   Dali saindo, porém, inquietou-se. Tinha necessidade de advertir o seu cômpar na infelicidade do crime. Pensando demoradamente, resolveu pedir ao amo uma licença para visitar familiares em Florença, de quem afirmava ter recebido notícias muito dolorosas e, como naqueles dias de chuvas as estradas eram difíceis de transitar, solicitou ao Conde o empréstimo de um animal, no que foi atendido, partindo então, a visitar o dementado Senhor di Bicci.

   Vencida a distância a muito custo, Carlo atingiu o Solar Cherubini-Bicci.

   Foi agradavelmente recebido pelos servos da casa, que incontinente o anunciaram à ama, considerando o estado do Conde.

   A Condessa, surpreendida, supondo que houvesse acontecido alguma desventura em Siena, mandou chamá-lo imediatamente à sua presença, recebendo-o na sala em que bordava, acolitada por duas aias. O viajante apressou-se em tranquilizar a senhora, informando que seguia a Florença, a tratar de problemas pessoais, quando, colhido pela tormenta, resolvera suplicar agasalho ali até que amainassem as chuvas. Jubilosamente reconfortada, a condessa assentiu.

   – Apresentai, senhora – disse, servil –, as minhas saudações ao nobre esposo, informando-o que estarei inteiramente às suas ordens, logo que o deseje para qualquer coisa.

   – Muito obrigada, Carlo, pela sua atitude de cortesia. Meu marido apreciará devidamente o seu respeito. Darei as suas saudações. Pode retirar-se.

   – Com licença, senhora.

   Quando Girólamo soube do indesejável visitante, não pôde esconder a mágoa e a ira, provocando na esposa o espicaçar da curiosidade para saber das razões do incómodo. Não desejando, porém, produzir contrariedades maiores, silenciou. No dia imediato, pela manhã, Carlo mandou solicitar entrevista ao enfermo, que parecia mais perturbado ainda. Justificava-se como desejoso de despedir-se. Recebido a contragosto, o Conde lhe sentenciou:

   – Não me roubarás mais uma moeda cão!

   – Acalmai-vos, senhor, – retorquiu o visitante. – Estou de passagem com destino a Florença e, de lá, partirei definitivamente. Pretendo seguir adiante e crescer… Sinto-me capaz de qualquer aventura e sou ambicioso. As oportunidades multiplicam-se em Veneza e pretendo rumar para lá. Venho despedir-me, senhor.

   – Não era necessário, – remoeu o paciente, reflectindo na face o lamentável estado em que se encontrava. – Não és aqui considerado e a tua ausência não seria notada… podes retirar-te, portanto.

   – Um momento, senhor. Suporto as palavras azedas mas não as ofensas graves. Afinal, a única diferença entre nós é a oportunidade que tiveste e eu ainda não… Venho recordar-vos o meu silêncio…

   Girólamo, que parecia disposto ao último lance, avançou com um punhal na mão, resolvido a qualquer tentame. O hábil contentor, no auge da força física e da agilidade, saltou, felino, empurrando violentamente o senense, que tombou ofegante, e, acto contínuo, o dominou, tomando a arma e falando-lhe no rosto, com voz pegajosa, que traduzia a sua disposição terminante de não perder o evento:

   – E o meu silêncio, senhor?

   – Solta-me, bandido – estertou o doente, cujas forças diminuíam ante o domínio taurino que o estatelava –, solta-me, infame, ou pagarás caro a afronta. Mandarei enforcar-te, mesmo que isso seja a última coisa que eu faça…

   – Estais solto, senhor, – libertou-o, blasonando, o chantagista, que assumiu atitude arrogante, face à inferioridade do litigante enfermo –, mas daqui somente sairei remunerado, ou trarei as autoridades senenses para um doloroso inquérito… Soube que a família Médici tem os olhos sobre esta casa, não só os de Siena como os de Florença. Os peçonhentos estão sempre procurando a quem despojar, ainda mais no que foram vilmente despojados… Portanto, senhor, em vossas mãos a decisão…

   Girólamo arfava, dolorosamente combalido. O declinar das forças orgânicas e o desequilíbrio da harmonia psíquica transformam a presunção e a altivez fanfarrona em humilhação amesquinhadora. Vencido, irreparavelmente vencido, pelas armas com que sempre esgrimia à socapa, o antigo usurpador experimentava o frio gume da derrota. O outro sorria, e a sua embófia recordava no derrotado a própria audácia de outrora, com que, insensível, vilipendiava os dons da vida… Cambaleante, atirou na face do dominador, com supremo desprezo, a bolsa das moedas, recheada, praguejando:

   – Encontrar-nos-emos… Verás…

/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 10 SUICÍDIO ABOMINÁVEL (1 de 2) 32º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

domingo, 14 de maio de 2017

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo IX

Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte
(I)

   A obra dos druidas, cujos pontos principais acabamos de descrever, já demonstra toda a extensão de sua ciência e de sua erudição. Mas não é somente na sua doutrina que acontece o sopro poderoso da inspiração: é também na sua religião, no seu culto que revela um sentido profundo do mundo invisível e das coisas divinas. Nesse ponto de vista é preciso refutar as críticas e os erros sob os quais se tem querido enterrar o Druidismo.

   Como atestam os historiadores como A. Thierry, Henri Martin, Jean Reynaud, toda a grandeza do génio céltico se apresenta nessa obra. Na base da instituição druídica encontram-se estes dois princípios que se irradiam sobre a sociedade gaulesa e dela fazem mover todas as engrenagens: a igualdade e o direito eleitoral.

   Todo o gaulês se podia tornar druida, o nascimento não lhe dava nenhum direito a esse título, porque a antiga Gália nunca conheceu a hereditariedade. Para adquiri-lo, para obter a iniciação, era preciso justificar os méritos pessoais, além de lentos e pacientes estudos, pois os celtas colocavam a instrução em primeiro lugar na sociedade e só isso já bastaria para afastar a acusação de barbárie que tão levianamente dirigem aos nossos antepassados.

   As informações que damos sobre a organização do Druidismo provêm, em grande parte, de autores latinos e gregos, num total de dezoito; filósofos e historiadores, geógrafos e poetas.

   Além de César, de quem já falámos, citamos Aristóteles e Cétion, Diógenes de Laerte, Posidónio, Cícero, (*) no ano 44, Diodoro de Sicília, ano 30, Timogéne, pelo ano 14, em uma História da Gália, da qual Ammien Marcellin nos deixou um extracto; Estrabão, no ano 20 d.C.; Pomponius Mela, no ano 40; Lucano, entre 60 e 64, Plínio, o naturalista, pelo ano 77; Tácito, pelo ano 96; Suetónio, no fim do século I; Díon Crisóstomo, no início do século II. Nós concluiremos pelas indicações daqueles nossos guias espirituais que viveram na época céltica.

   O chefe dos druidas era eleito pela corporação inteira e investido de um poder absoluto. Era ele que resolvia as divergências entre as tribos turbulentas, agitadas, sempre prontas a recorrer às armas. Estando acima das rivalidades dos clãs, essa instituição representava a verdadeira unidade da Gália. Toda a elite juvenil da nação se agrupava em volta desses filósofos, ávida de receber os seus ensinos que eram dados longe das cidades, no interior dos recintos sagrados.

   Os druidas não só mantinham a justiça nas tribos, como também se pronunciavam sobre as causas graves, numa assembleia solene que se reunia todos os anos no país de Chartres. Essa assembleia tinha ao mesmo tempo um carácter político, e cada república gaulesa a ela enviava os seus delegados.

   O génio religioso dos celtas tinha estabelecido três formas superpostas de crenças e de culto em relação com o grau de aptidão e de compreensão dos gauleses. Inicialmente era o culto dos espíritos dos mortos, ao alcance de todos e que todos praticavam, pois os videntes e médiuns eram numerosos nessa época. Depois vinha o culto popular dos semideuses ou espíritos protectores das tribos, símbolos das forças da natureza ou das faculdades do espírito; esse culto tinha sobretudo um carácter local. Finalmente, havia o culto do espírito divino, fonte e criador da vida universal, que domina e rege todas as coisas e cujas obras são o principal objecto dos estudos e pesquisas dos druidas e dos iniciados.

   Na realidade, o politeísmo gaulês, que se condena como sendo uma idolatria, não era senão a representação dos espíritos tutelares, guias, protectores das famílias e das nações, dos quais nós podemos constatar, hoje em dia, pelos factos, a existência e a intervenção nas horas necessárias. O mesmo se deu em todas as religiões antigas e nas crenças dos povos que colocavam na classe dos deuses os espíritos daqueles que eram distinguidos pelos seus méritos e as suas virtudes. O povo tem necessidade de crer nos intermediários entre ele e Deus infinito e eterno, que ele imagina estar bem afastado, embora todos estejamos mergulhados nele, conforme a palavra de São Paulo. Em todos os países, vários seres simbólicos, concebidos pela imaginação dos seus primeiros homens, são, sob formas materiais, graciosas ou terríveis, a expressão viva dos seus medos e de suas esperanças.

   Os druidas, dizíamos, ensinavam a unidade de Deus. Os romanos, pervertidos nesses assuntos, confundiram os personagens secundários do céu gaulês, as personificações simbólicas das potências naturais e morais, com os seus próprios deuses. O Panteão gaulês apresenta mais frescor e beleza do que os deuses envelhecidos do Olimpo. O Teutatès gaulês era uma representação das forças superiores; Gwyon representava a ciência e as artes; Esus o símbolo da vida e da luz. Outros, como Hu-Kaddarn, chefe da grande migração “kymris”, eram heróis glorificados. Mas, nesse Panteão não se encontravam os deuses do mal, os ídolos do Egipto e de Roma. Ali não se viam os deuses infames, um Júpiter adúltero, uma Vénus lasciva, um Mercúrio corrompido. Também não se encontrava esse cortejo imundo dos Bacos, dos Priapos, isto é, os vícios endeusados. Conhecia-se somente a sabedoria, a virtude e a justiça. E mais alto, acima dessas forças intelectuais e morais, resplendia o foco de onde todas elas emanam, a potência infinita e misteriosa que os druidas adoravam ao pé dos monumentos de granito, na solidão das florestas. Eles diziam que o ordenador do imenso Universo não poderia estar preso entre as muralhas de um templo, que o único culto digno dele devia cumprir-se nos santuários da natureza, sob as abóbadas sombrias dos grandes carvalhos, à beira dos vastos oceanos. Eles afirmavam que Deus era grande de mais para ser representado por imagens, sob formas modeladas pela mão do homem. Por isso, eles somente lhe consagravam monumentos de pedra bruta, dizendo que toda a pedra talhada era uma pedra maculada.

   Assim, todos os símbolos religiosos dos druidas eram emprestados da natureza virgem, livre. O carvalho era a árvore sagrada, o seu tronco colossal, os seus possantes galhos representavam o emblema da força e da vida. O visco, que era retirado com pompa, o visco sempre verde, mesmo quando a natureza adormece, quando os vegetais parecem mortos, era, para os seus olhos, o emblema da imortalidade e, ao mesmo tempo, um princípio regenerador e curativo.

   Esses ritos do Druidismo, esse culto sóbrio e grande, não teriam alguma coisa de imponente? As matas de carvalho, o visco renascente sobre os troncos carunchosos, as grandes rochas de pé, à beira do oceano, eram, do mesmo modo, símbolos da eternidade dos tempos e do infinito dos Espaços.

   O Catolicismo parece ter tomado emprestado do culto druídico o que há de mais nobre e belo. Os pilares e as naves das catedrais góticas são a imitação dos troncos esbeltos e dos galhos dos gigantes das florestas; o órgão, pelos seus sons, lembra o sussurro do vento na folhagem; o incenso é o vapor que se eleva das planícies e dos bosques ao surgirem os primeiros raios solares.

   O Druidismo era o culto do imutável, do que permanece, numa palavra, o culto da natureza infinita, dessa natureza fecunda no seio da qual todo o espírito se revigora, se viriliza, reencontra as forças naturais.

   Para nós, como para os nossos antepassados, os espectáculos que ele oferece são as fontes de meditação salutares, de ensinos pelos quais se revela o Deus imenso, eterno, que os celtas adoraram, Deus, alma do mundo, “eu” consciente do Universo, foco supremo em direcção do qual convergem todas as ligações e de onde se irradiam, através dos espaços sem limites e dos tempos sem demarcações, todas as potências morais: o Amor, a Justiça, a Verdade e a Infinita Bondade!

/…
(*) Nos seus escritos, Cícero louva a ciência profunda de Divitiac, o único druida que foi a Roma.


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo IX Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte (1 de 3) 29º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

segunda-feira, 1 de maio de 2017

o grande desconhecido ~


VII – A Medicina e O Espiritismo |

Por que motivo, o Espiritismo, desde o início da sua elaboração doutrinária, teve de enfrentar a mais cerrada oposição das corporações médicas em todo o mundo? Por estranho que pareça, o motivo fundamental é simplesmente este: a Ciência Espírita abre novas e grandiosas perspectivas para o desenvolvimento da Medicina, oferecendo-lhe nada menos do que a metade desconhecida da realidade humana e das possibilidades terapêuticas de que ela necessita. 
Pasteur, que não era médico, mas químico, teve de enfrentar a mesma oposição por razões semelhantes. No seu tempo, a Medicina conhecia apenas um quarto da realidade humana e Pasteur oferecia-lhe mais um quarto. Foi ridicularizado e espezinhado por esse gesto de atrevimento. Kardec era professor de ciências médicas e exerceu em Paris, como o demonstra André Moreil na sua recente biografia do Codificador. Mas nem por isso escapou da excomunhão científica. É curioso o paralelo entre eles. Pasteur descobriu e revelou, provando-o cientificamente, a existência do mundo invisível das bactérias microbianas, que respondem, juntamente com as viroses, pela totalidade das doenças infecto-contagiosas, e descobriu a maneira científica de prevenir e curar essas doenças. Kardec descobriu e revelou cientificamente o mundo invisível dos espíritos infestadores e, descobriu a maneira, científica, de prevenir e curar essas infestações. Estes dois mundos invisíveis não estão localizados no Além, mas aqui mesmo, na Terra, envolvendo e, interpenetrando o mundo visível. Porém, a Medicina é um organismo vivo do mundo das ciências e, como todo o organismo biológico ou conceptual, é dotado do instinto de sobrevivência, repelindo instintivamente toda e qualquer interferência estranha à sua estrutura.

Além disso, temos de considerar que descobertas desta natureza rompem sempre ameaçadoras fendas na estrutura superior das civilizações. A civilização científica, que nascera de brechas abertas na civilização teológica, enfrentando batalhas impiedosas para se desenvolver, reagiu com a mesma violência instintiva na defesa da sua estrutura. Rémy Chauvin, director do laboratório do Instituto de Altos Estudos de Paris, considerou recentemente a existência de uma doença alérgica no meio científico e chamou-lhe de alergia ao futuro. É essa alergia, o novo nome do instinto de sobrevivência, que ainda hoje mantém acesa a luta defensiva da Medicina contra o Espiritismo, não obstante as comprovações científicas actuais de toda a realidade espírita.

Espiritismo aliou-se à Medicina desde os primórdios, a partir das investigações sobre as curas espíritas, realizadas na Clínica do Dr. Demeure, em Paris, a pedido de Allan KardecA terapêutica espírita desenvolveu-se à revelia da Medicina, ao contrário do que Kardec desejava, revestindo-se de aspectos anti-espíritas. Mas, apesar disso, os espíritas não tomaram, salvo raras excepções, geralmente individuais e da parte de pessoas incultas, a posição das religiões ou de seitas terapêuticas milagreiras. É grande o número actual de médicos espíritas e existem até mesmo associações de Medicina e Espiritismo, como as do Rio e São Paulo. Esse é o aspecto institucional do problema, sem dúvida importante, porque dele depende, em grande parte, a aceitação da verdade espírita nos meios culturais oficiais, facto que talvez possa ocorrer no próximo milénio, com o desenvolvimento da Civilização do Espírito. A situação actual é curiosa: só a Filosofia Espírita goza de cidadania oficial, enquanto a Ciência Espírita e a Religião Espírita continuam em posição marginal. Essa marginalização é a mesma que o Cristianismo sofreu no mundo romano, agora atenuada pelas conquistas do mundo moderno no tocante aos direitos humanos. Espiritismo não é nem pode fazer-se (uma) religião institucionalizada e muito menos oficializada em parte alguma, porque os seus princípios são contrários a toda a sistemática fingida e fechada. O que importa no Espiritismo, como Kardec acentuou desde o início, não é a forma, mas a substância. Toda a tentativa de institucionalização exige hierarquia, que implica autoridade e é acção autoritária. O fundamento ético do Espiritismo é a liberdade, sem a qual não há actividade criadora nem responsabilidade individual. Por isso, só a associação livre convém ao Espiritismo, que perde com isso em representação social, mas ganha em compensação no tocante à responsabilidade individual.

Nas suas relações com as instituições sociais e políticas da actualidade Espiritismo encontra muitas dificuldades, mas a liberdade tem o seu preço. É preferível lutar com dificuldades externas, a expor-se ao perigo das congestões internas. Por toda a parte, no nosso mundo, pululam os mestres pretensiosos e os tiranetes vaidosos, prontos a servirem-se dos títulos e dos cargos oficiais para esmagarem a liberdade. Muitos espíritas não compreendem esse problema e tentam sujeitar o movimento espírita a cúpulas pretensiosas. Tratando desse tipo de institucionalização, fatalmente dogmáticaKardec recomendou a multiplicidade dos Centros Espíritas pequenos, unidos por laços de fraternidade, e Emmanuel, através da mediunidade de Francisco Cândido Xavier, declarou numa mensagem orientadora: "A Religião organizada é o cadáver da Religião". Isso porque a organização religiosa está sempre sujeita à dominação dos fanáticos e ambiciosos. A ambição do poder asfixia o espírito democrático. O Espiritismo iniciou no campo religioso a era democrática que Jesus lançara no seu tempo, mas que morreu asfixiada com o fracasso da Comunidade Apostólica.

No tocante às relações do Espiritismo com a Medicina a institucionalização "espírita igrejeira" cortaria qualquer possibilidade de entendimento. O Espiritismo não tem por objectivo opor-se à Medicina, mas ajudá-la na melhor compreensão da natureza humana e dos recursos naturais de que esta pode dispor para o seu maior progresso. Ajudando a Medicina a completar a imagem parcial do homem, de que dispõe, o Espiritismo a levará, como já vai acontecendo, à utilização dos recursos insuspeitados do espírito. A mediunidade, fonte inesgotável de recursos espirituais no combate às doenças, que seria renegada pelos médicos. A finalidade do Espiritismo nesse campo é colocar os recursos mediúnicos nas mãos de médicos esclarecidos, para benefício de toda a Humanidade. As descobertas de Kardec seriam assim postas à disposição de todos, como o foram as de Pasteur. Esse é um dos motivos da exigência kardeciana de mediunidade gratuita. A profissionalização mediúnica seria um atentado à própria finalidade do Espiritismo, sempre aberto a todas as investigações para melhor servir a todos e em todos os tempos.

Kardec intuiu desde logo esse problema, recorrendo à Clínica Demeure para o controle dos casos de mediunidade curadora. Disso resultou a conjugação médico-espírita, hoje em franco desenvolvimento, evitando o divinismo fanático das seitas religiosas que proíbem aos adeptos recorrer à Medicina. Não somos apenas espíritos, mas espíritos encarnados, dotados do corpo material que é objecto dos estudos e da terapêutica médica. A maioria absoluta dos espíritas utiliza-se de ambos os recursos, o médico e o mediúnico, no tratamento das doenças. Compreendem que os recursos em causa atendem aos dois elementos da constituição humana, o material e o espiritual, sendo por isso necessário conjugar as duas acções terapêuticas, agindo cada uma no seu campo específico. Na proporção em que se acentuar a evolução espiritual do homem, os recursos espirituais se intensificarão no plano mediúnico, contribuindo para a espiritualização da Medicina. A Medicina espiritualizada pertence aos mundos superiores, entre os quais a Terra brilhará um dia, como planeta vitorioso, apesar de todas as incompreensões e dificuldades desta fase de transição. Compreenderemos então que Deus concede os seus recursos ao homem, na medida em que ele se torna capaz de utilizá-los, sem se demorar na espreguiçadeira do comodismo e da irresponsabilidade.

mediunidade curadora, é hoje mais perigosa do que benéfica, no nosso mundo, porque excita a vaidade e a ambição dos médiuns e dos seus familiares, além dos agudos interesses políticos sempre despertados na comunidade, envolvendo os médiuns em manobras subtis que acabam por afectar a sensibilidade mediúnica e desviar o médium da sua verdadeira missão. Na maioria dos médiuns de cura os primeiros sucessos provocam espanto e humilde respeito pelos espíritos que os assistem, mas a continuidade dos sucessos tornam os factos corriqueiros e o médium acaba convencendo-se de que age por si mesmo. A fascinação do dinheiro e do prestígio social e político, levam o médium à exploração simoníaca dos seus dons. Ao benefício das curas materiais, opõe-se então o malefício das enfermidades espirituais, criando dificuldades e conflitos de toda a espécie. O pior desses males é a situação contraditória em que o médium acaba caindo (por cair), fingindo humildade e cultivando a arrogância, e não raro, na falta da assistência espiritual que se afasta, entregando-se à prática de expedientes condenáveis. As condições morais do nosso mundo ainda não permitem a constância da terapêutica mediúnica ostensiva no planeta. Os médiuns de cura são voluntários da espiritualidade que se julgam capazes de vencer essas condições adversas, mas na maioria fracassam, cedo ou tarde, caindo nas mãos de exploradores visíveis e invisíveis. Com isso aumentam as suspeitas e desconfianças, por parte da Medicina, acrescidas pelo ambiente de competição entre os médiuns e os médicos. Lutas mesquinhas que se desenvolvem, envolvendo famílias e comunidades, num torvelinho absorvente de ódios e disputas desesperadas. O que era uma bênção, transforma-se, então, em maldição. Esses os reais motivos por que a mediunidade curadora de grande eficácia é rara, aparece esporadicamente, facto que também contribui para afastar o interesse científico puro, desse campo de tantas e tão grandiosas possibilidades para o desenvolvimento da Medicina.

Quando os médiuns resistem a todas às tentações, não escapam ainda assim às calúnias, perseguições, processos criminais e prisões, como já acontecia na era apostólica. Os métodos de combate aos factos mediúnicos inegáveis continuam a ser os mesmos nos nossos dias.

Para superar essas dificuldades milenares, os Espíritos Superiores preferem agir em silêncio nos processos de curas espirituais directas, geralmente despercebidos, em que a Medicina só considera a acção espontânea dos recursos naturais do organismo do doente. Nessa cómoda posição hipotética, a maioria dos médicos não percebe a contradição em que cai, atribuindo poderes sobrenaturais ao organismo carnal dos doentes, onde ocorrem os milagres da fé ingénua, com a violação, pela própria natureza humana, das leis naturais. As relações entre a medicina e o espiritismo são de importância básica para ambos, e particularmente para a Humanidade. Mas não poderão melhorar enquanto os espíritas não tomarem consciência da sua responsabilidade doutrinária e os médicos não superarem os seus preconceitos, mais profissionais do que científicos, em relação aos problemas espirituais e em particular ao Espiritismo e à mediunidade curadora, hoje comprovada na sua realidade auspiciosa nos grandes centros universitários do mundo. Os conceitos do sagrado e do sobrenatural, de um lado, e os preconceitos científicos de outro, ainda pesam esmagadoramente sobre a nossa cultura, que terá de alijar esse fardo para sobreviver.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, VII – A Medicina e O Espiritismo, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)