Capítulo IX
Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte
(I)
A obra dos druidas, cujos pontos principais acabamos de
descrever, já demonstra toda a extensão de sua ciência e de sua erudição. Mas
não é somente na sua doutrina que acontece o sopro poderoso da inspiração: é
também na sua religião, no seu culto que revela um sentido profundo do mundo
invisível e das coisas divinas. Nesse ponto de vista é preciso refutar as
críticas e os erros sob os quais se tem querido enterrar o Druidismo.
Como atestam os historiadores como A. Thierry, Henri Martin,
Jean Reynaud, toda a grandeza do génio céltico se apresenta nessa obra. Na base
da instituição druídica encontram-se estes dois princípios que se irradiam sobre
a sociedade gaulesa e dela fazem mover todas as engrenagens: a igualdade e o direito eleitoral.
Todo o gaulês se podia tornar druida, o nascimento não lhe dava
nenhum direito a esse título, porque a antiga Gália nunca conheceu a
hereditariedade. Para adquiri-lo, para obter a iniciação, era preciso
justificar os méritos pessoais, além de lentos e pacientes estudos, pois os
celtas colocavam a instrução em primeiro lugar na sociedade e só isso já
bastaria para afastar a acusação de barbárie que tão levianamente dirigem aos
nossos antepassados.
As informações que damos sobre a organização do Druidismo
provêm, em grande parte, de autores latinos e gregos, num total de dezoito; filósofos e historiadores, geógrafos e poetas.
Além de César, de quem já falámos, citamos Aristóteles e
Cétion, Diógenes de Laerte, Posidónio, Cícero, (*) no ano 44, Diodoro de Sicília, ano 30, Timogéne, pelo ano 14,
em uma História da Gália, da qual
Ammien Marcellin nos deixou um extracto; Estrabão, no ano 20 d.C.; Pomponius Mela,
no ano 40; Lucano, entre 60 e 64, Plínio, o naturalista, pelo ano 77; Tácito,
pelo ano 96; Suetónio, no fim do século I; Díon Crisóstomo, no início do século
II. Nós concluiremos pelas indicações daqueles nossos guias espirituais que
viveram na época céltica.
O chefe dos druidas era eleito pela corporação inteira e
investido de um poder absoluto. Era ele que resolvia as divergências entre as
tribos turbulentas, agitadas, sempre prontas a recorrer às armas. Estando acima
das rivalidades dos clãs, essa instituição representava a verdadeira unidade da
Gália. Toda a elite juvenil da nação se agrupava em volta desses filósofos,
ávida de receber os seus ensinos que eram dados longe das cidades, no interior
dos recintos sagrados.
Os druidas não só mantinham a justiça nas tribos, como
também se pronunciavam sobre as causas graves, numa assembleia solene que se
reunia todos os anos no país de Chartres. Essa assembleia tinha ao mesmo tempo
um carácter político, e cada república gaulesa a ela enviava os seus delegados.
O génio religioso dos celtas tinha estabelecido três formas
superpostas de crenças e de culto em relação com o grau de aptidão e de
compreensão dos gauleses. Inicialmente era o culto dos espíritos dos mortos, ao alcance de todos e que todos
praticavam, pois os videntes e médiuns eram numerosos nessa época. Depois vinha
o culto popular dos semideuses ou
espíritos protectores das tribos, símbolos das forças da natureza ou das
faculdades do espírito; esse culto tinha sobretudo um carácter local. Finalmente,
havia o culto do espírito divino,
fonte e criador da vida universal, que domina e rege todas as coisas e cujas
obras são o principal objecto dos estudos e pesquisas dos druidas e dos
iniciados.
Na realidade, o politeísmo gaulês, que se condena como sendo
uma idolatria, não era senão a representação dos espíritos tutelares, guias,
protectores das famílias e das nações, dos quais nós podemos constatar, hoje em
dia, pelos factos, a existência e a intervenção nas horas necessárias. O mesmo
se deu em todas as religiões antigas e nas crenças dos povos que colocavam na
classe dos deuses os espíritos daqueles que eram distinguidos pelos seus
méritos e as suas virtudes. O povo tem necessidade de crer nos intermediários
entre ele e Deus infinito e eterno, que ele imagina estar bem afastado, embora
todos estejamos mergulhados nele, conforme a palavra de São Paulo. Em todos os
países, vários seres simbólicos, concebidos pela imaginação dos seus primeiros
homens, são, sob formas materiais, graciosas ou terríveis, a expressão viva dos
seus medos e de suas esperanças.
Os druidas, dizíamos, ensinavam a unidade de Deus. Os romanos, pervertidos nesses assuntos,
confundiram os personagens secundários do céu gaulês, as personificações
simbólicas das potências naturais e morais, com os seus próprios deuses. O
Panteão gaulês apresenta mais frescor e beleza do que os deuses envelhecidos do
Olimpo. O Teutatès gaulês era uma representação das forças superiores; Gwyon
representava a ciência e as artes; Esus o símbolo da vida e da luz. Outros,
como Hu-Kaddarn, chefe da grande migração “kymris”, eram heróis glorificados.
Mas, nesse Panteão não se encontravam os deuses do mal, os ídolos do Egipto e
de Roma. Ali não se viam os deuses infames, um Júpiter adúltero, uma Vénus
lasciva, um Mercúrio corrompido. Também não se encontrava esse cortejo imundo
dos Bacos, dos Priapos, isto é, os vícios endeusados. Conhecia-se somente a
sabedoria, a virtude e a justiça. E mais alto, acima dessas forças intelectuais
e morais, resplendia o foco de onde todas elas emanam, a potência infinita e
misteriosa que os druidas adoravam ao pé dos monumentos de granito, na solidão
das florestas. Eles diziam que o ordenador
do imenso Universo não poderia estar preso entre as muralhas de um templo,
que o único culto digno dele devia cumprir-se nos santuários da natureza, sob
as abóbadas sombrias dos grandes carvalhos, à beira dos vastos oceanos. Eles
afirmavam que Deus era grande de mais para ser representado por imagens, sob
formas modeladas pela mão do homem. Por isso, eles somente lhe consagravam
monumentos de pedra bruta, dizendo que toda a pedra talhada era uma pedra
maculada.
Assim, todos os símbolos religiosos dos druidas eram
emprestados da natureza virgem, livre. O carvalho era a árvore sagrada, o seu
tronco colossal, os seus possantes galhos representavam o emblema da força e da
vida. O visco, que era retirado com pompa, o visco sempre verde, mesmo quando a
natureza adormece, quando os vegetais parecem mortos, era, para os seus olhos,
o emblema da imortalidade e, ao mesmo tempo, um princípio regenerador e
curativo.
Esses ritos do Druidismo, esse culto sóbrio e grande, não
teriam alguma coisa de imponente? As matas de carvalho, o visco renascente
sobre os troncos carunchosos, as grandes rochas de pé, à beira do oceano, eram,
do mesmo modo, símbolos da eternidade dos tempos e do infinito dos Espaços.
O Catolicismo parece ter tomado emprestado do culto druídico
o que há de mais nobre e belo. Os pilares e as naves das catedrais góticas são
a imitação dos troncos esbeltos e dos galhos dos gigantes das florestas; o
órgão, pelos seus sons, lembra o sussurro do vento na folhagem; o incenso é o
vapor que se eleva das planícies e dos bosques ao surgirem os primeiros raios
solares.
O Druidismo era o culto do imutável, do que permanece, numa
palavra, o culto da natureza infinita, dessa natureza fecunda no seio da qual
todo o espírito se revigora, se viriliza, reencontra as forças naturais.
Para nós, como para os nossos antepassados, os espectáculos
que ele oferece são as fontes de meditação salutares, de ensinos pelos quais se
revela o Deus imenso, eterno, que os celtas adoraram, Deus, alma do mundo, “eu”
consciente do Universo, foco supremo em direcção do qual convergem todas as
ligações e de onde se irradiam, através dos espaços sem limites e dos tempos
sem demarcações, todas as potências morais: o Amor, a Justiça, a Verdade e a
Infinita Bondade!
/…
(*) Nos seus
escritos, Cícero louva a ciência profunda de Divitiac, o único druida que foi a
Roma.
LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível,
Segunda Parte – Capítulo IX
Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte (1
de 3) 29º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis
franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura
de Anne-Louis Girodet-Trioson)
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