Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 14 de maio de 2017

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo IX

Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte
(I)

   A obra dos druidas, cujos pontos principais acabamos de descrever, já demonstra toda a extensão de sua ciência e de sua erudição. Mas não é somente na sua doutrina que acontece o sopro poderoso da inspiração: é também na sua religião, no seu culto que revela um sentido profundo do mundo invisível e das coisas divinas. Nesse ponto de vista é preciso refutar as críticas e os erros sob os quais se tem querido enterrar o Druidismo.

   Como atestam os historiadores como A. Thierry, Henri Martin, Jean Reynaud, toda a grandeza do génio céltico se apresenta nessa obra. Na base da instituição druídica encontram-se estes dois princípios que se irradiam sobre a sociedade gaulesa e dela fazem mover todas as engrenagens: a igualdade e o direito eleitoral.

   Todo o gaulês se podia tornar druida, o nascimento não lhe dava nenhum direito a esse título, porque a antiga Gália nunca conheceu a hereditariedade. Para adquiri-lo, para obter a iniciação, era preciso justificar os méritos pessoais, além de lentos e pacientes estudos, pois os celtas colocavam a instrução em primeiro lugar na sociedade e só isso já bastaria para afastar a acusação de barbárie que tão levianamente dirigem aos nossos antepassados.

   As informações que damos sobre a organização do Druidismo provêm, em grande parte, de autores latinos e gregos, num total de dezoito; filósofos e historiadores, geógrafos e poetas.

   Além de César, de quem já falámos, citamos Aristóteles e Cétion, Diógenes de Laerte, Posidónio, Cícero, (*) no ano 44, Diodoro de Sicília, ano 30, Timogéne, pelo ano 14, em uma História da Gália, da qual Ammien Marcellin nos deixou um extracto; Estrabão, no ano 20 d.C.; Pomponius Mela, no ano 40; Lucano, entre 60 e 64, Plínio, o naturalista, pelo ano 77; Tácito, pelo ano 96; Suetónio, no fim do século I; Díon Crisóstomo, no início do século II. Nós concluiremos pelas indicações daqueles nossos guias espirituais que viveram na época céltica.

   O chefe dos druidas era eleito pela corporação inteira e investido de um poder absoluto. Era ele que resolvia as divergências entre as tribos turbulentas, agitadas, sempre prontas a recorrer às armas. Estando acima das rivalidades dos clãs, essa instituição representava a verdadeira unidade da Gália. Toda a elite juvenil da nação se agrupava em volta desses filósofos, ávida de receber os seus ensinos que eram dados longe das cidades, no interior dos recintos sagrados.

   Os druidas não só mantinham a justiça nas tribos, como também se pronunciavam sobre as causas graves, numa assembleia solene que se reunia todos os anos no país de Chartres. Essa assembleia tinha ao mesmo tempo um carácter político, e cada república gaulesa a ela enviava os seus delegados.

   O génio religioso dos celtas tinha estabelecido três formas superpostas de crenças e de culto em relação com o grau de aptidão e de compreensão dos gauleses. Inicialmente era o culto dos espíritos dos mortos, ao alcance de todos e que todos praticavam, pois os videntes e médiuns eram numerosos nessa época. Depois vinha o culto popular dos semideuses ou espíritos protectores das tribos, símbolos das forças da natureza ou das faculdades do espírito; esse culto tinha sobretudo um carácter local. Finalmente, havia o culto do espírito divino, fonte e criador da vida universal, que domina e rege todas as coisas e cujas obras são o principal objecto dos estudos e pesquisas dos druidas e dos iniciados.

   Na realidade, o politeísmo gaulês, que se condena como sendo uma idolatria, não era senão a representação dos espíritos tutelares, guias, protectores das famílias e das nações, dos quais nós podemos constatar, hoje em dia, pelos factos, a existência e a intervenção nas horas necessárias. O mesmo se deu em todas as religiões antigas e nas crenças dos povos que colocavam na classe dos deuses os espíritos daqueles que eram distinguidos pelos seus méritos e as suas virtudes. O povo tem necessidade de crer nos intermediários entre ele e Deus infinito e eterno, que ele imagina estar bem afastado, embora todos estejamos mergulhados nele, conforme a palavra de São Paulo. Em todos os países, vários seres simbólicos, concebidos pela imaginação dos seus primeiros homens, são, sob formas materiais, graciosas ou terríveis, a expressão viva dos seus medos e de suas esperanças.

   Os druidas, dizíamos, ensinavam a unidade de Deus. Os romanos, pervertidos nesses assuntos, confundiram os personagens secundários do céu gaulês, as personificações simbólicas das potências naturais e morais, com os seus próprios deuses. O Panteão gaulês apresenta mais frescor e beleza do que os deuses envelhecidos do Olimpo. O Teutatès gaulês era uma representação das forças superiores; Gwyon representava a ciência e as artes; Esus o símbolo da vida e da luz. Outros, como Hu-Kaddarn, chefe da grande migração “kymris”, eram heróis glorificados. Mas, nesse Panteão não se encontravam os deuses do mal, os ídolos do Egipto e de Roma. Ali não se viam os deuses infames, um Júpiter adúltero, uma Vénus lasciva, um Mercúrio corrompido. Também não se encontrava esse cortejo imundo dos Bacos, dos Priapos, isto é, os vícios endeusados. Conhecia-se somente a sabedoria, a virtude e a justiça. E mais alto, acima dessas forças intelectuais e morais, resplendia o foco de onde todas elas emanam, a potência infinita e misteriosa que os druidas adoravam ao pé dos monumentos de granito, na solidão das florestas. Eles diziam que o ordenador do imenso Universo não poderia estar preso entre as muralhas de um templo, que o único culto digno dele devia cumprir-se nos santuários da natureza, sob as abóbadas sombrias dos grandes carvalhos, à beira dos vastos oceanos. Eles afirmavam que Deus era grande de mais para ser representado por imagens, sob formas modeladas pela mão do homem. Por isso, eles somente lhe consagravam monumentos de pedra bruta, dizendo que toda a pedra talhada era uma pedra maculada.

   Assim, todos os símbolos religiosos dos druidas eram emprestados da natureza virgem, livre. O carvalho era a árvore sagrada, o seu tronco colossal, os seus possantes galhos representavam o emblema da força e da vida. O visco, que era retirado com pompa, o visco sempre verde, mesmo quando a natureza adormece, quando os vegetais parecem mortos, era, para os seus olhos, o emblema da imortalidade e, ao mesmo tempo, um princípio regenerador e curativo.

   Esses ritos do Druidismo, esse culto sóbrio e grande, não teriam alguma coisa de imponente? As matas de carvalho, o visco renascente sobre os troncos carunchosos, as grandes rochas de pé, à beira do oceano, eram, do mesmo modo, símbolos da eternidade dos tempos e do infinito dos Espaços.

   O Catolicismo parece ter tomado emprestado do culto druídico o que há de mais nobre e belo. Os pilares e as naves das catedrais góticas são a imitação dos troncos esbeltos e dos galhos dos gigantes das florestas; o órgão, pelos seus sons, lembra o sussurro do vento na folhagem; o incenso é o vapor que se eleva das planícies e dos bosques ao surgirem os primeiros raios solares.

   O Druidismo era o culto do imutável, do que permanece, numa palavra, o culto da natureza infinita, dessa natureza fecunda no seio da qual todo o espírito se revigora, se viriliza, reencontra as forças naturais.

   Para nós, como para os nossos antepassados, os espectáculos que ele oferece são as fontes de meditação salutares, de ensinos pelos quais se revela o Deus imenso, eterno, que os celtas adoraram, Deus, alma do mundo, “eu” consciente do Universo, foco supremo em direcção do qual convergem todas as ligações e de onde se irradiam, através dos espaços sem limites e dos tempos sem demarcações, todas as potências morais: o Amor, a Justiça, a Verdade e a Infinita Bondade!

/…
(*) Nos seus escritos, Cícero louva a ciência profunda de Divitiac, o único druida que foi a Roma.


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo IX Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte (1 de 3) 29º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

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