Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 21 de fevereiro de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~


O Perigo das Religiões Primitivas

As práticas do Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro correspondem à mentalidade primitiva dos povos selvagens, mentalidade que Durkheim considerou como pré-lógica, anterior ao desenvolvimento da razão propriamente lógica, ou seja, não só discriminadora, mas também organizadora e classificadora da experiência natural do mundo. Essa mentalidade mítica, idólatra, nascida da experiência empírica não controlada pelos processos racionais, é determinada por impressões de uma realidade fantástica. É dela que surgem as visões deformadoras das coisas e dos seres. É dessa mentalidade que surgem as mitologias grotescas dos deuses indianos de muitos braços e pernas, a magia dos ritos e cerimónias até hoje residuais nas práticas religiosas da nossa cultura lógica. A mentalidade teológica e politeísta, que sucede à pré-lógica, é essencialmente sensorial e impressionista, gerando a concepção fantasiosa de um mundo de mistérios e superstições que caracterizam as civilizações agrárias e pastoris. Entre esse mundo e o nosso temos a distância entre a selva e a civilização, entre a imaginação e a realidade. O Sincretismo superpõe esses mundos contraditórios, misturando à força mundividências discrepantes e gerando desequilíbrios perigosos no comportamento do homem civilizado.

A convivência bastarda dessas duas mundividências ou concepções do mundo no plano sócio-cultural perturba o desenvolvimento da civilização e deforma o comportamento do homem racional. A razão é esmagada debaixo das patas do instinto, dando motivo aos surtos de bestialidade que rompem brutalmente o equilíbrio racional do homem e das colectividades, no pandemónio do arbítrio, da violência e das eclosões do sexualismo desvairado e criminoso das multidões místicas e delinquentes de Ortega y Gasset. A recente tragédia da seita Templo do Povo, de São Francisco da Califórnia, nas selvas da Guiana Inglesa, com o suicídio colectivo de mais de novecentas pessoas e a morte de mais de cem crianças, serve de exemplo recente das consequências desses desajustes. Nas vésperas do natal tivemos a repetição da matança dos inocentes em Belém de Judá, como advertência à nossa incúria. As tragédias deste século, incluindo as duas Conflagrações Mundiais, o desencadeamento do terror nazi-fascista, o domínio dos instintos selvagens nas nações africanas, a figura tragicómica de Idi Amim no Uganda, os bombardeios atómicos no Japão, a ameaça da bomba de neutrões, o impacto da pornografia europeia, a devassidão homossexual nas cúpulas governamentais de países altamente civilizados, como a Inglaterra, a explosão ridícula das teologias da Morte de Deus (imitando a Morte de Pan no mundo mitológico), a eclosão arrasadora da toxicomania e assim por diante, têm a sua origem nos desajustes de uma civilização em conflito com as suas raízes selvagens.

O Espiritismo surgiu, em meados do século passado, como um socorro espiritual a essa civilização, firmando o princípio da Razão sobre os resíduos mágicos do irracionalismo religioso dogmático, para reorientar a Civilização Cristã, mas o mundo preferiu a volta ao paganismo, na sua mais deslavada expressão. Nos países em que a mensagem espírita penetrou mais amplamente, como os latino-americanos, as raízes amargas da barbárie tentaram e tentam deformá-lo com os tóxicos do misticismo selvagem. A nossa luta tem de se desenvolver no sentido de mostrar ao povo os perigos dessa infiltração de bárbaros no Império da Cultura. Todo o espírita que se entrega às fascinações bastardas das religiões selvagens é um traidor da Civilização Cristã, desde o seu início atacada sem cessar pelos vândalos inconscientes. Não podemos combater as práticas sincréticas em si mesmas, pois elas correspondem à incultura da maioria, apegada ainda à placenta selvagem, mas podemos e temos de lutar pelo esclarecimento doutrinário, afastando dos terreiros de macumba os que julgam encontrar ali formas mais eficazes, porque mais fortes, de manifestações mediúnicas, como se o poder do espírito dependesse dos precários poderes da matéria. As criaturas arrastadas pela fascinação das práticas selvagens revelam a sua sintonia com o passado bárbaro e a sua incapacidade para ajustar-se à Civilização. Mas essa incapacidade é motivada pela incultura geral, pois todas as criaturas encarnadas nesta fase de transição evolutiva do planeta têm condições para superar a barbárie e integrar-se no meio civilizado. Todo o esforço deve ser feito pelos espíritas para manterem a integridade da Doutrina Espírita nesta fase crucial da nossa evolução. Estamos na hora da escolha: ou ficaremos no passado, apegados ao materialismo dos rituais, dos mitos e da voracidade carnal, ou buscaremos o espírito e o seu poder na espiritualidade pura que o Espiritismo nos oferece. Procuremos compreender claramente esse problema. Temos um exemplo histórico, na nossa própria história, da impossibilidade de mistura de graus evolutivos diferentes. Todo o esforço de catequese cristã dos jesuítas no nosso país fracassou por completo, ante o desnível cultural existente entre os padres, de um lado, e os indígenas e negros do outro lado. O livro do Padre Nóbrega, A Catequese do Gentio, constitui uma confissão dolorosa do fracasso dessa catequese. Nem mesmo os esforços de Anchieta, com as suas peças teatrais e a sua dedicação aos índios conseguiu superar as dificuldades do desnível cultural. Ele mesmo admitiu, com Nóbrega, que só a força e a violência poderiam sujeitar o gentio ao Cristo, o que negava a própria essência do Cristianismo.

Nos grupos sociais, que englobam clãs e famílias, as heranças individuais, as tradições, aspirações e instintos, bem como as características raciais em mistura formam o ser colectivo da visão spenceriana, com o seu psiquismo e mentalidade colectivos. Essas pequenas estruturas fundem-se no ser maior e mais complexo das sociedades, que a lei de inércia consolida. A dinâmica interna dessas estruturas gera o clima mental e emocional de um novo processo cultural, de uma nova cultura. As tendências gregárias reforçam o instinto de conservação e toda a interferência discrepante gera reacções de defesa do status quo. Numa civilização que já atingiu a sua maturidade possível e luta para superar-se, o repúdio ao retrocesso histórico-cultural torna-se uma constante irredutível, na busca da transcendência. Indivíduos e grupos que se oponham a essa tendência formam quistos negativos que resistem às forças evolutivas e desencadeiam atritos e conflitos. O isolamento desses quistos em si mesmos não os torna marginais mas transforma-os em focos de oposição interna. Esses focos tendem a negar as conquistas evolutivas da estrutura geral e levam a situações conflitivas e a explosões de desespero. Palmares, Canudos, entre nós, a minoria basca na Espanha, o IRA na Irlanda são exemplos desse processo. No desenvolvimento da Civilização Cristã temos o massacre impiedoso pela piedade cristã das seitas divergentes da estrutura geral. No processo actual do desenvolvimento da cultura espírita, que retoma os valores cristãos na sua originalidade, as forças discrepantes recorrem ao lastro do passado e reactivam o fermento velho de que trata o Evangelho, na reactivação dos processos mágicos das religiões primitivas, do paganismo mítico formalista, idólatra e supersticioso. Para superarmos essa fase perigosa temos de superar primeiro a nossa própria ignorância dessa realidade ameaçadora, firmando-nos nos princípios espíritas de rejeição ao mito, ao falso fazer da magia com os seus rituais e cerimoniais emotivos. Só a razão kardeciana, em que a verdade se comprova na investigação fenoménica, pode nos dar os elementos eficazes da libertação espiritual. Não se trata de apelo à Providência Divina, mas de tomada de consciência do momento em que vivemos. Todos os recursos igrejeiros a que se apegam os mestres improvisados de nada valem nesta fase em que só a consciência lúcida pode libertar o espírito do visco da matéria, segundo a imagem de Kardec, e do acúmulo milenar de superstições místicas e mágicas.

Dizia o Apóstolo Paulo aos seus discípulos que, em pequenos, eles se alimentavam de líquidos, mas, ao crescer, necessitavam de alimentos sólidos. A recomendação aplica-se aos espíritas actuais, que não querem largar o "mingau" da infância pelo "tutu" de feijão. O Espiritismo tem por finalidade libertar o espírito humano do visco da matéria, para que ele possa alçar o voo da transcendência. A Religião Espírita não comporta lamúrias e ladainhas, nem exige dos adeptos atitudes formais, voz modulada, gestos artificiais e estudados, olhares lânguidos e lágrimas ou carpideiras em velórios e funerais. As dores e angústias do mundo não são castigos do céu, mas provas necessárias ao desenvolvimento das potencialidades do espírito. Viver é lutar, como no verso de Gonçalves Dias. A luta da vida não se destina a angelizar as criaturas, mas a virilizar o espírito, predispondo-o para voos de águia e não para o esvoaçar das borboletas. A Angelitude, que é o quarto reino da natureza, nada tem a ver com anjinhos de procissão com asas de papel de seda. Da Humanidade temos de evoluir para a Angelitude, que é o plano imediatamente superior ao plano terreno, povoado de espíritos elevados em saber e moral, responsáveis por si mesmos e pelo desenvolvimento espiritual dos homens. O anjo espírita não tem asas. Não voa como um pássaro, pois levita no seu corpo espiritual. Os Anjos não constituem uma criação à parte na Natureza, onde tudo se encadeia. Os Anjos são homens que se tornaram mais fortes e viris, capazes de enfrentar as mais pesadas e difíceis tarefas da vida superior. Ninguém pense que chegará com rezas e humildade fingida ao plano dos Anjos. A virilidade angélica é de dignidade, coragem, moralidade e permanente disposição para o trabalho. A graça, como explicou Kardec, não é um privilégio concedido gratuitamente a alguém, em detrimento de outros. A graça, segundo Kardec, é a força que Deus concede ao homem de boa-vontade para vencer as suas imperfeições. Lutar e vencer são as duas espadas simbólicas das vitórias do espírito. O Espiritismo é o Consolador prometido por Jesus, mas o consolo espírita não é cantiga de embalar e sim conhecimento da razão e das finalidades da vida. Só o conhecimento real, o encontro com a verdade pode dar ao espírito a consolação necessária.

Na concepção espírita da vida a morte não é morte, é apenas passagem de um plano da vida para outro. A morte é a páscoa do espírito, que nela e através dela conquista a ressurreição. A palavra páscoa vem do hebraico. A Páscoa dos judeus foi a travessia do mar Vermelho, que os livrara da morte no Egipto. Jesus ressuscitou, como todos ressuscitamos, e a sua ressurreição transformou a páscoa judaica em páscoa cristã, mudando o sentido material da palavra em sentido espiritual. Não há morte para os espíritas, pois Deus não é deus de mortos, mas de vivos. Os que temem a morte não sabem que ela, como afirmou Richet, é a porta da vida.

A palavra eternidade foi substituída nos nossos dias pela palavra duração. Quem diz eternidade exprime um conceito estático, lembrando a pasmaceira de um céu de asilo para inválidos. Quem diz duração exprime um conceito dinâmico e vital. O tempo, como Galileu o definiu, pela mediunidade de Flammarion, é a sucessão das coisas no Infinito. Tudo é vida e movimento em todo o Universo. Tudo é luta e trabalho, construção incessante. Kardec lembrou que, se somos seres humanos, de natureza espiritual, temos também o ser do corpo, que mesmo na metamorfose da morte é vida e movimento. A concepção estática das coisas é uma ilusão sensorial. A Física actual abandonou a concepção material do Universo. Vivemos em espírito e pelo espírito, desde a pedra até ao anjo.

Ante essa abertura do mundo, que o Espiritismo nos apresentou muito antes da evolução da Física, o espírita é obrigado a sair da sacristia e fugir dos velórios para proclamar a continuidade da vida em todas as dimensões da realidade cósmica. Seria estranho e inexplicável se os espíritas, possuindo essa visão nova do mundo e da vida, resolvessem voltar aos terreiros de macumba. As religiões primitivas são formas superadas de interpretação do mundo. Serviram no seu tempo, conviviam com os bichos e não com as ideias. A religião verdadeira, segundo Pestalozzi, mestre de Kardec, é a Moralidade; não a moral social de regras e normas, mas a Moralidade, como processo de elevação espiritual do homem. Para evitar o religiosismo comum e banal, Kardec explicou que a Ciência e a Filosofia espíritas tinham consequências morais. Só no final de sua missão declarou que o Espiritismo é a Religião em Espírito e Verdade, anunciada pelo Cristo. Essa Religião Verdadeira não está nos templos, nas Igrejas, mas no coração do homem, na forma de uma lei fundamental da natureza humana – a Lei de Adoração –, que leva o homem a adorar a Deus no recesso de si mesmo, sem alardes nem fantasias. Se não pudermos compreender essa rotação de noventa graus no pensamento humano, o recurso é mergulharmos na leitura e estudo sistemático das obras de Kardec, meditando a sério sobre os seus ensinos. A razão kardeciana não tem a frieza do racionalismo científico, porque o Espiritismo é a síntese de todas as potencialidades ônticas do homem; Razão e Fé, intuição e pesquisa globalizante da doutrina.

A razão é considerada como um processo linear de captação da realidade sensível. Ela fragmenta e esmiúça a estrutura das coisas e dos seres, trocando em miúdos a sua inteireza global. As Ciências apegaram-se a esse processo de percepção quantitativa, considerando-o meio seguro para a obtenção da certeza. Com essa ambição de medidas exactas perderam a visão de conjunto. Era natural que assim acontecesse, em virtude da nossa confiança ingénua na percepção sensorial. Mas o reconhecimento da intuição como forma de percepção e captação imediatas da realidade, gerando o flash do insight, o processo racional da razão mostrou-se deficiente. No campo da percepção da forma na sua inteireza, descoberto pela Psicologia da Gestalt, verificou-se que a captação das estruturas globais nos oferece a totalidade do objecto, com os seus elementos de pregnância interna e de integração externa na realidade total. A nossa mundividência científica deu um salto da fragmentação para a globalização. A realidade misteriosa da forma (Gestalt em alemão) produziu a revolução copérnica da Psicologia da Percepção. Mas essa revolução já tinha os seus precedentes na pesquisa espírita da natureza humana, por Kardec, no plano da fenomenologia paranormal. Dessa maneira, as divergências entre as chamadas ciências da matéria e a ciência espírita derivavam do avanço da desprezada e malsinada ciência espírita sobre a arrogante e intransigente ciência oficial e académica. Hoje a Física atómica e nuclear está fazendo justiça a Kardec nas suas descobertas mais recentes. A visão gestáltica de toda a realidade como interacção constante de espírito e matéria, cabendo ao espírito a função essencial de aglutinação e estruturação da matéria em elementos formais, revela a necessidade de conjugação dos dois campos científicos.

Foi o que Rhine ressaltou na sua observação sobre as duas antropologias em que se dividiu a nossa concepção do homem, o que vale dizer da nossa self-conception. De um lado o conceito material do homem como animal e de outro o conceito psíquico-espiritual. A Parapsicologia e a Medicina Psicossomática eliminam actualmente essa dualidade, graças ao desenvolvimento nas ciências de uma mentalidade gestáltica. O Espiritismo resgata os seus direitos na cultura do século.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e as suas implicações terapêuticas, O Perigo das Religiões Primitivas, 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

o grande desconhecido ~


O Espírito como Elemento da Natureza |

Os conceitos de naturalidade e normalidade decorrem das experiências da Cultura Empírica e subsistem na Cultura Científica como resíduos daquela fase primária. Esses resíduos emocionais foram alimentados ao longo de todo o processo religioso, por enquadrarem-se na concepção mágica e mística do Universo Misterioso, inacessível à compreensão humana normal. As Religiões ligaram estreitamente esses conceitos aos do sagrado e do profano e não tiveram condições para superá-los. O misticismo é uma forma de alienação, de fuga necessária do homem à dureza da realidade objectiva, onde as leis da estruturação sensorial agem de maneira inflexível. O místico é um desertor do real. O anseio de transcendência no homem, não esclarecido na sua motivação, leva-o a rejeitar o real e buscar o sucedâneo de uma suposta realidade, imaginada como refinamento do real-sensível. Surgem daí as categorias do espiritual e do material, que se mostram confusas na fase mitológica e posteriormente geram a divisão arbitrária e misteriosa das concepções teológicas. Os principais factores desse processo são:

a intuição da indestrutibilidade do ser;

o medo da morte como aniquilamento total;

o desejo de libertação do condicionamento material.

O ser é o que é e recusa-se a deixar de ser. Ele se reconhece como forma existencial subjectiva integrada na estrutura objectiva da realidade material, mas sabe por experiência empírica que esse condicionamento material é efémero e terá fatalmente de se desfazer na morte. O instinto de conservação leva-o a reagir contra essa fatalidade. As provas de sobrevivência dadas pelos fenómenos mediúnicos não o satisfazem, pois essa sobrevivência espiritual o desliga do sensível, a única que lhe parece natural. Ele se apega a essa realidade através de uma concepção mística indefinida, que lhe permite aceitar a possibilidade de uma continuidade natural após a morte. As múmias e os mausoléus egípcios, o paraíso sensorial dos árabes e os dogmas religiosos da ressurreição no próprio corpo carnal atestam essa esperança no próprio processo histórico. Há pessoas cultas, ainda hoje, que não conseguem conceber a sobrevivência humana após a morte em termos espirituais. Condicionaram a sua mente, de tal maneira, ao mundo tridimensional, assustadas com os delírios da cultura religiosa, que temem afastar-se da segurança sensorial da matéria. A concepção materialista do mundo, tão absurda como a concepção mística, nasce da frustração do ser ante o pandemónio das alucinações do fabulário religioso. Kardec teve de agir com prudência na divulgação do Espiritismo, para que a reacção violenta e fanática das religiões não asfixiasse no berço a nova mundividência que nascia das suas pesquisas mediúnicas. Mas no seu livro O Céu e o Inferno colocou o Cristianismo sincrético da igreja no banco dos réus e mostrou que a mitologia dos clérigos era mais absurda e mais cruel do que a do mundo clássico mitológico. A vida eterna oferecida pela Igreja depende de quinquilharias sagradas, de crendices simplórias, de condicionamento mental a um dogmatismo irracional, enquanto os mitos do paganismo se radicavam na realidade empírica, nas experiências naturais do homem no mundo e na lei universal da metamorfose, da incessante transformação das coisas e dos seres ao longo do tempo e do processo histórico racional. A indestrutibilidade do ser não se condicionava, no pensamento mitológico, às exigências de uma corporação religiosa artificial e autoritária, mas às condições visíveis e palpáveis da realidade natural. A simbologia mítica não criava a loja de bugigangas, não dependia de um comércio de contrabandistas nas fronteiras despoliciadas da morte, mas de representações emotivas da sensibilidade humana ante os mistérios do mundo ainda indevassável. A indestrutibilidade do ser, e portanto a sua imortalidade, decorria espontaneamente da indestrutibilidade do mundo, em que as coisas e os seres se transformam por lei natural, sem depender de bênçãos ou maldições sacramentais. Os deuses nasciam das águas e da terra, como nascem todas as coisas. Essa naturalidade do pensamento mitológico foi rejeitada pela cultura teológica, que fugiu do real para o irreal, do natural para o imaginário.

O medo da morte como destruição total do ser humano tinha no paganismo a compensação da continuidade da alma além das dimensões da matéria. Sócrates expôs bem esse problema ao defender-se no tribunal de Atenas. Segundo a apologia que Platão lhe dedicou, Sócrates considerou a morte como natural e até mesmo conveniente na idade em que se encontrava. Lembrou que os juízes que o condenaram também já estavam condenados e analisou as duas alternativas da morte: sobreviver a ela e encontrar os sábios do passado no plano espiritual, o que seria uma felicidade, ou não sobreviver e dissolver-se no todo, o que seria o descanso total. De nenhum modo a morte o preocupava. A lei humana que o condenara apenas apressava o cumprimento inevitável da lei natural a que todos estão sujeitos. Ele era médium vidente e audiente, consultava sempre o seu daimon ou espírito protector, conhecia o problema da sobrevivência espiritual, mas falava a homens que não tinham essa experiência e usava o raciocínio mais apropriado ao momento. Esse episódio nos mostra que o medo da morte não era tão angustiante entre os gregos pagãos, que encontravam no pensamento dos filósofos uma consolação racional que a Igreja Cristã jamais ofereceu aos seus adeptos, sempre aterrorizados com o julgamento final, a ira de Deus e as crueldades eternas a que estariam sujeitos se caíssem nas garras do Diabo. Entre os celtas, nas Gálias devastadas pela brutal conquista romana, os bardos cantavam nas tríades druídicas, a felicidade dos que sobreviviam após uma existência dedicada ao cumprimento dos deveres humanos. A morte não os assustava. Mas o terror cristão da morte, na era teológica de deformação do Cristianismo, revestiu a morte com todos os aparatos trágicos de uma civilização insegura e angustiada, semeando o terror na mente popular. A pressão excessiva dessa forma coercitiva de terrorismo mental. Como em todos os excessos, a pressão esmagadora gerou a revolta e a descrença, levando os cristãos a optar pela segunda alternativa de Sócrates: o materialismo inconsequente, mas pelo menos racional.

Era natural e inevitável. Só a volta à experiência empírica poderia sustar a evasão mística, reconduzir os homens ao bom-senso, às medidas controladoras do pensamento racional. O desejo de libertação do condicionamento material, provocado pelo êxtase místico, pelos delírios da imaginação excitada, tinha de chocar-se com a dúvida metódica de Descartes e logo mais com o cepticismo desolador e o materialismo árido. Era necessário esvaziar o mundo das alucinações teológicas para que o homem voltasse a pisar o chão, a apalpar a terra. Kardec assinalaria, mais tarde, que a finalidade do Espiritismo era transformar o mundo, afastando o homem do egoísmo e do materialismo. Mas isso porque, no seu tempo, a vitória da razão já se definia, através das conquistas científicas de três séculos, do XVI ao XVIII, preparando o século XIX para a Renascença Cristã através do Espiritismo. Nessa fase, tão próxima da nossa, urgia restabelecer no homem a fé em termos de razão, mostrar-lhe que a insensatez mística devia ser corrigida pela experiência não menos insensata do materialismo. Se a mística levara o homem a querer fugir das limitações corporais através de cilícios e isolamentos negativos, que o afastavam das experiências da relação humana, o materialismo o levava a agarrar-se ao corpo, perdendo a visão espiritual da sua realidade subjectiva. A grande tarefa do Espiritismo se definia com clareza: era conter a emoção e a imaginação, ligar a fé à razão, unificar o psiquismo humano nos quadros da realidade terrena.

Era o que Jesus havia feito na Palestina, combatendo os excessos do misticismo judeu e as misérias do materialismo saduceu. O Espiritismo dava continuidade, quase dois mil anos depois, ao pensamento cristão desfigurado pelo sincretismo religioso dos clérigos ambiciosos, que não vacilavam em trocar o Reino de Deus pelos reinos da Terra. Kardec podia então proclamar a verdade simples que não havia sido aceite, por falta de condições culturais válidas: o espírito não era sobrenatural, mas natural, o parceiro da matéria na constituição de uma realidade única, a realidade espiritual e material do mundo e do homem. A conclusão de Kardec é límpida e simples: os espíritos são uma das forças da Natureza. Sem compreendermos isso não poderemos compreender o Espiritismo. Espírito e matéria são os elementos constitutivos de toda a realidade. Esses elementos são dimensionais, constituem dimensões diversas da realidade única. Não podemos dividi-los em natural e sobrenatural, pois ambos se fundem na unidade real da Natureza, como a Ciência actual o demonstra, sem ainda compreender as suas conexões profundas e subtis.

Léon Denis, discípulo e continuador de Kardec, considerou o Espiritismo como a síntese conceptual de toda a realidade. O mistério da Trindade, que se manifesta em forma mitológica ou mística em todas as grandes religiões do mundo, define-se na racionalidade espírita nos termos da explicação kardeciana:

Deus
Espírito
Matéria

Deus é a Inteligência Suprema, a Consciência Cósmica de que tudo deriva e que a tudo controla. Só Ele é sobrenatural, pois sobrepõe-se a toda a Natureza. É a Unidade Solitária da concepção pitagórica, que paira no Inefável. Esse é o seu aspecto transcendente. Mas Pitágoras nos fala de um estremecimento da Unidade que desencadeou a Década, gerando o Universo. E temos, assim, o aspecto imanente de Deus, que se projecta na sua criação e a ela se liga, fazendo-se espontaneamente a sua alma e a sua lei: Dessa maneira, o próprio Sobrenatural se torna Natural. A consciência Cósmica impregna o Cosmos e imprime-lhe o esquema infinito dos seus desígnios. Leibniz desenvolveu a teoria da mónada para explicar filosoficamente o processo da criação. As mónadas seriam partículas infinitesimais do pensamento divino que, como as sementes, trazem em si mesmas o plano secreto daquilo que vai ser criado. Da dinâmica das mónadas invisíveis aos nossos olhos formam-se os reinos naturais:

Mineral
Vegetal
Animal
Hominal
Espiritual.

Esse processo criador é explicado por Kardecsob orientação do Espírito de Verdade, como um desenvolvimento incessante das potencialidades monádicas, num fluxo evolutivo que sobe sem cessar dos reinos inferiores aos reinos superiores. Léon Denis explica esse fluxo numa expressão poética: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Deus, a Lei Suprema, controla todo esse processo nos seus mínimos detalhes. A alma é a mónada, princípio individualizador que se caracteriza como princípio inteligente n’O Livro dos Espíritos. É assim que o espírito estrutura a matéria dispersa no espaço infinito. As hipóteses científicas do Universo Finito decorrem da incapacidade da Ciência para abranger a infinitude cósmica. Kardec adverte que, por mais que ampliemos os limites supostos do Universo, sempre haverá na nossa imaginação uma infinita continuidade do espaço cósmico. A consideração científica dos limites é puramente metodológica, determinada pela necessidade de ordenação na nossa mente. A própria Criação é infinita, incessante. Gustave Geley, metapsiquista francês, considera a mónada como um dínamo-psiquismo-inconsciente que dirige a constante metamorfose das coisas em seres, até chegar ao homem, que por sua vez, tomando consciência do seu destino, se transforma em anjo, integrando o reino espiritual da Angelitude, dos espíritos superiores.

Nessa cosmogonia dinâmica vemos que nada escapa do plano natural. Os espíritos nascem das entranhas da matéria, inseridos nela e nela se metamorfoseando. Os filósofos existenciais do nosso tempo referendam nas suas teorias essa concepção naturalista do espírito. Pois o que é o espírito senão a própria criatura humana? A morte nos mostra que o corpo perece, mas o espírito não. Ensinava o Padre Vieira: Quereis saber o que é a alma? Olhai um corpo sem alma. A Filosofia Existencial proclama: A existência é subjectividade pura. E a existência, no caso, é o espírito, que faz do homem um existente, um ser que existe, sabe que é e por que existe e busca a sua transcendência. A Vida é comum a todas as coisas e todos os seres, mas a Existência é a condição específica do homem, que não se limita a viver, mas luta por transcender-se. Nessa transcendência o homem passa da humanitude (do reino hominal) para a Angelitude (o reino espiritual). Sendo o espírito a nossa própria essência, o que somos realmente, com toda a nossa personalidade, é evidente que o espírito não é sobrenatural, mas natural, um elemento vivo e dinâmico da Natureza. Quando tomamos consciência dessa concepção espírita do mundo e do homem, a realidade se impõe à nossa mente, afugentando as confusas e incongruentes fabulações teológicas.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 2 – O Espírito como Elemento da Natureza, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)