O Espírito como Elemento da Natureza |
Os conceitos de naturalidade e normalidade decorrem das
experiências da Cultura Empírica e subsistem na Cultura Científica como
resíduos daquela fase primária. Esses resíduos emocionais foram alimentados ao
longo de todo o processo religioso, por enquadrarem-se na concepção mágica e
mística do Universo Misterioso, inacessível à compreensão humana normal. As
Religiões ligaram estreitamente esses conceitos aos do sagrado e do profano e
não tiveram condições para superá-los. O misticismo é uma forma de alienação,
de fuga necessária do homem à dureza da realidade objectiva, onde as leis da
estruturação sensorial agem de maneira inflexível. O místico é um desertor do
real. O anseio de transcendência no homem, não esclarecido na sua motivação,
leva-o a rejeitar o real e buscar o sucedâneo de uma suposta realidade,
imaginada como refinamento do real-sensível. Surgem daí as categorias do
espiritual e do material, que se mostram confusas na fase mitológica e
posteriormente geram a divisão arbitrária e misteriosa das concepções
teológicas. Os principais factores desse processo são:
a intuição da indestrutibilidade do ser;
o medo da morte como aniquilamento total;
o desejo de libertação do condicionamento material.
O ser é o que é e recusa-se a deixar de ser. Ele se
reconhece como forma existencial subjectiva integrada na estrutura objectiva da
realidade material, mas sabe por experiência empírica que esse condicionamento
material é efémero e terá fatalmente de se desfazer na morte. O instinto de conservação
leva-o a reagir contra essa fatalidade. As provas de sobrevivência dadas pelos
fenómenos mediúnicos não
o satisfazem, pois essa sobrevivência espiritual o desliga do sensível, a única
que lhe parece natural. Ele se apega a essa realidade através de uma
concepção mística indefinida, que lhe permite aceitar a possibilidade de uma
continuidade natural após a morte. As múmias e os mausoléus egípcios, o
paraíso sensorial dos árabes e os dogmas religiosos da ressurreição no próprio
corpo carnal atestam essa esperança no próprio processo histórico. Há
pessoas cultas, ainda hoje, que não conseguem conceber a sobrevivência humana
após a morte em termos espirituais. Condicionaram a sua mente, de tal
maneira, ao mundo tridimensional, assustadas com os delírios da cultura
religiosa, que temem afastar-se da segurança sensorial da matéria. A
concepção materialista do mundo, tão absurda como a concepção mística, nasce da
frustração do ser ante o pandemónio das alucinações do fabulário religioso. Kardec teve de agir
com prudência na divulgação do Espiritismo, para que a
reacção violenta e fanática das religiões não asfixiasse no berço a nova
mundividência que nascia das suas pesquisas mediúnicas. Mas no seu
livro O Céu e o Inferno colocou o Cristianismo sincrético da igreja no
banco dos réus e mostrou que a mitologia dos clérigos era mais absurda e mais
cruel do que a do mundo clássico mitológico. A vida eterna oferecida pela
Igreja depende de quinquilharias sagradas, de crendices simplórias,
de condicionamento mental a um dogmatismo irracional, enquanto os mitos do
paganismo se radicavam na realidade empírica, nas experiências naturais do
homem no mundo e na lei universal da metamorfose, da incessante transformação
das coisas e dos seres ao longo do tempo e do processo histórico racional. A
indestrutibilidade do ser não se condicionava, no pensamento mitológico, às
exigências de uma corporação religiosa artificial e autoritária, mas às
condições visíveis e palpáveis da realidade natural. A simbologia
mítica não criava a loja de bugigangas, não dependia de um comércio de
contrabandistas nas fronteiras despoliciadas da morte, mas de representações
emotivas da sensibilidade humana ante os mistérios do mundo ainda indevassável. A
indestrutibilidade do ser, e portanto a sua imortalidade, decorria
espontaneamente da indestrutibilidade do mundo, em que as coisas e os seres se
transformam por lei natural, sem depender de bênçãos ou maldições
sacramentais. Os deuses nasciam das águas e da terra, como nascem todas as
coisas. Essa naturalidade do pensamento mitológico foi rejeitada pela cultura
teológica, que fugiu do real para o irreal, do natural para o imaginário.
O medo da morte como destruição total do ser humano tinha no
paganismo a compensação da continuidade da alma além das dimensões da matéria. Sócrates expôs bem
esse problema ao defender-se no tribunal de Atenas. Segundo a apologia que Platão lhe dedicou,
Sócrates considerou a morte como natural e até mesmo conveniente na idade em
que se encontrava. Lembrou que os juízes que o condenaram também já estavam
condenados e analisou as duas alternativas da morte: sobreviver a ela e
encontrar os sábios do passado no plano espiritual, o que seria uma felicidade,
ou não sobreviver e dissolver-se no todo, o que seria o descanso total. De
nenhum modo a morte o preocupava. A lei humana que o condenara apenas
apressava o cumprimento inevitável da lei natural a que todos estão sujeitos. Ele
era médium vidente
e audiente, consultava sempre o seu daimon ou espírito
protector, conhecia o problema da sobrevivência espiritual, mas falava a homens
que não tinham essa experiência e usava o raciocínio mais apropriado ao
momento. Esse episódio nos mostra que o medo da morte não era tão
angustiante entre os gregos pagãos, que encontravam no pensamento dos filósofos
uma consolação racional que a Igreja Cristã jamais ofereceu aos seus adeptos,
sempre aterrorizados com o julgamento final, a ira de Deus e as crueldades
eternas a que estariam sujeitos se caíssem nas garras do Diabo. Entre os
celtas, nas Gálias devastadas pela brutal conquista romana, os bardos cantavam
nas tríades
druídicas, a felicidade dos que sobreviviam após uma existência dedicada ao
cumprimento dos deveres humanos. A morte não os assustava. Mas o terror
cristão da morte, na era teológica de deformação do Cristianismo, revestiu a
morte com todos os aparatos trágicos de uma civilização insegura e angustiada,
semeando o terror na mente popular. A pressão excessiva dessa forma coercitiva
de terrorismo mental. Como em todos os excessos, a pressão esmagadora gerou a
revolta e a descrença, levando os cristãos a optar pela segunda alternativa de
Sócrates: o materialismo inconsequente, mas pelo menos racional.
Era natural e inevitável. Só a volta à experiência
empírica poderia sustar a evasão mística, reconduzir os homens ao bom-senso, às
medidas controladoras do pensamento racional. O desejo de libertação do
condicionamento material, provocado pelo êxtase místico, pelos delírios da
imaginação excitada, tinha de chocar-se com a dúvida metódica de Descartes e
logo mais com o cepticismo desolador e o materialismo árido. Era
necessário esvaziar o mundo das alucinações teológicas para que o homem
voltasse a pisar o chão, a apalpar a terra. Kardec assinalaria,
mais tarde, que a finalidade do Espiritismo era
transformar o mundo, afastando o homem do egoísmo e do materialismo. Mas
isso porque, no seu tempo, a vitória da razão já se definia, através das conquistas
científicas de três séculos, do XVI ao XVIII, preparando o século XIX para a
Renascença Cristã através do Espiritismo. Nessa fase, tão próxima da
nossa, urgia restabelecer no homem a fé em termos de razão, mostrar-lhe que a
insensatez mística devia ser corrigida pela experiência não menos insensata do
materialismo. Se a mística levara o homem a querer fugir das limitações
corporais através de cilícios e isolamentos negativos, que o afastavam das
experiências da relação humana, o materialismo o levava a agarrar-se ao corpo,
perdendo a visão espiritual da sua realidade subjectiva. A grande tarefa
do Espiritismo se
definia com clareza: era conter a emoção e a imaginação, ligar a fé à razão,
unificar o psiquismo humano nos quadros da realidade terrena.
Era o que Jesus havia
feito na Palestina, combatendo os excessos do misticismo judeu e as misérias do
materialismo saduceu. O Espiritismo dava
continuidade, quase dois mil anos depois, ao pensamento cristão desfigurado pelo
sincretismo religioso
dos clérigos ambiciosos, que não vacilavam em trocar o Reino de Deus pelos
reinos da Terra. Kardec podia
então proclamar a verdade simples que não havia sido aceite, por falta de
condições culturais válidas: o espírito não era sobrenatural, mas
natural, o parceiro da matéria na constituição de uma realidade
única, a realidade espiritual e material do mundo e do homem. A conclusão
de Kardec é límpida e simples: os espíritos são uma das forças da
Natureza. Sem compreendermos isso não poderemos compreender o
Espiritismo. Espírito e matéria são os elementos constitutivos de toda a
realidade. Esses elementos são dimensionais, constituem
dimensões diversas da realidade única. Não
podemos dividi-los em natural e sobrenatural, pois
ambos se fundem na unidade real da Natureza, como a Ciência actual o demonstra,
sem ainda compreender as suas conexões profundas e subtis.
Léon
Denis, discípulo e continuador de Kardec, considerou o Espiritismo como a
síntese conceptual de toda a realidade. O mistério da Trindade, que se
manifesta em forma mitológica ou mística em todas as grandes religiões do
mundo, define-se na racionalidade espírita nos termos da
explicação kardeciana:
Deus
Espírito
Matéria
Deus é a Inteligência Suprema, a Consciência Cósmica de que
tudo deriva e que a tudo controla. Só Ele é sobrenatural, pois sobrepõe-se a
toda a Natureza. É a Unidade Solitária da concepção pitagórica, que paira no
Inefável. Esse é o seu aspecto transcendente. Mas Pitágoras nos fala
de um estremecimento da Unidade que desencadeou a Década, gerando o Universo. E
temos, assim, o aspecto imanente de Deus, que se projecta na sua criação e a
ela se liga, fazendo-se espontaneamente a sua alma e a sua lei: Dessa maneira,
o próprio Sobrenatural se torna Natural. A consciência Cósmica impregna o
Cosmos e imprime-lhe o esquema infinito dos seus desígnios. Leibniz desenvolveu
a teoria da mónada para explicar filosoficamente o processo da criação. As
mónadas seriam partículas infinitesimais do pensamento divino que, como as
sementes, trazem em si mesmas o plano secreto daquilo que vai ser criado. Da
dinâmica das mónadas invisíveis aos nossos olhos formam-se os reinos naturais:
Mineral
Vegetal
Animal
Hominal
Espiritual.
Esse processo criador é explicado por Kardec, sob
orientação do Espírito
de Verdade, como um desenvolvimento incessante das potencialidades
monádicas, num fluxo evolutivo que sobe sem cessar dos reinos inferiores aos
reinos superiores. Léon
Denis explica esse fluxo numa expressão poética: A alma dorme na
pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Deus, a Lei
Suprema, controla todo esse processo nos seus mínimos detalhes. A alma é a
mónada, princípio individualizador que se caracteriza como princípio inteligente
n’O Livro dos Espíritos. É assim que o espírito estrutura a matéria
dispersa no espaço infinito. As hipóteses científicas do Universo Finito
decorrem da incapacidade da Ciência para abranger a infinitude cósmica. Kardec
adverte que, por mais que ampliemos os limites supostos do Universo, sempre
haverá na nossa imaginação uma infinita continuidade do espaço cósmico. A
consideração científica dos limites é puramente metodológica, determinada pela
necessidade de ordenação na nossa mente. A própria Criação é infinita,
incessante. Gustave
Geley, metapsiquista francês, considera a mónada como um
dínamo-psiquismo-inconsciente que dirige a constante metamorfose das coisas em
seres, até chegar ao homem, que por sua vez, tomando consciência do seu
destino, se transforma em anjo, integrando o reino espiritual da Angelitude,
dos espíritos superiores.
Nessa cosmogonia dinâmica vemos que nada escapa do plano
natural. Os espíritos nascem das entranhas da matéria, inseridos nela e nela se
metamorfoseando. Os filósofos existenciais do nosso tempo referendam nas suas
teorias essa concepção naturalista do espírito. Pois o que é o espírito
senão a própria criatura humana? A morte nos mostra que o corpo perece,
mas o espírito não. Ensinava o Padre Vieira:
Quereis saber o que é a alma? Olhai um corpo sem alma. A Filosofia Existencial
proclama: A existência é subjectividade pura. E a existência, no caso, é
o espírito, que faz do homem um existente, um ser que
existe, sabe que é e por que existe e busca a sua
transcendência. A Vida é comum a todas as coisas e todos os seres, mas
a Existência é a condição específica do homem, que não se limita a viver, mas
luta por transcender-se. Nessa transcendência o homem passa da
humanitude (do reino hominal) para a Angelitude (o reino espiritual). Sendo o
espírito a nossa própria essência, o que somos realmente, com toda a nossa
personalidade, é evidente que o espírito não é sobrenatural, mas natural, um
elemento vivo e dinâmico da Natureza. Quando tomamos consciência dessa
concepção espírita do mundo e do homem, a realidade se impõe à nossa mente,
afugentando as confusas e incongruentes fabulações teológicas.
/…
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
2 – O Espírito como Elemento da Natureza, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)
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