Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – O Céu ~

               A contemplação da Natureza oferece ao homem culto, sem lugar a contestação, inefáveis, particulares encantos. Na organização dos seres descobre-se o incessante movimento dos átomos que os compõem, tanto quanto a permuta constante e operante entre todas as coisas.

   Justa é a nossa admiração por tudo o que vive na superfície da Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos abutres e das pombas. A luz que espalha a viço nos prados e nutre as plantas com um sopro impalpável também povoa a atmosfera de maravilhosas belezas aéreas. O som que estremece a folhagem canta na orla dos bosques, ruge nas plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de forças físicas, que abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunhão das mesmas leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admiração pelo esplendor da vida planetária, mais extensiva e aplicável se tornará, em relação aos mundos que aí fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo das noites silenciosas. Esses mundos longínquos que, como o nosso, se embalam no mesmo éter, sob o império das mesmas energias e das mesmas leis, são igualmente sedes de actividade e vida. Poderíamos apresentar este grandioso e magnífico espectáculo da vida universal como eloquente testemunho da inteligência, sabedoria e omnipotência da causa anónima, que houve por bem reverberar, dos primórdios da Criação, o seu mágico esplendor no espelho da Natureza criada. Mas, não é sob este prisma que desejamos aqui desdobrar o panorama das grandezas celestes. Apenas, para o teatro das leis que regem o nosso mundo, queremos convocar os negadores da inteligência criadora.

   Se, abrindo os olhos diante desse espectáculo, eles persistirem na sua negativa, já não teremos como nos eximir de responder-lhes, em consciência, que também duvidaremos de suas faculdades mentais. Porque, para falar com franqueza, a inteligência do Criador parece-nos infinitamente mais curta e incontestável que a dos ateus franceses e estrangeiros.

   E, como o método positivo consiste em não julgar antes de observar os factos, temos o dever de examinar primeiro os factos astronómicos de que falamos e depois da interpretação com que se satisfazem os nossos antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretação satisfizer, subscreveremos de antemão as suas doutrinas; mas, se, ao contrário, se revelar insensata, temos, como dever de honra e por amor à verdade, de a desmascarar e entregar ao apupo da plateia.

   Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao espaço e veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos e mundos, sistemas após sistemas, na infinita sucessão de universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras, as harmonias siderais nas amplas e céleres revoluções das esferas e contemplemos, na sua realidade, esses movimentos simultaneamente vertiginosos e regulares que enfeudam as terras celestes nas suas órbitas ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige esses mundos. Em torno do nosso sol, centro, foco luminoso, eléctrico, calorífico do sistema planetário, giram os planetas obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano deram-nos a fórmula da lei, que se divide em três pontos fundamentais, conhecidos em Astronomia por leis de Kepler, laborioso sábio que a descobriu graças ao seu génio, como à sua paciência, e que discutiu opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu mestre Tycho-Braheantes que distinguisse sob o véu da matéria a força que a rege.

   Esses três pontos são:

   1º – Cada planeta descreve em torno do Sol uma órbita elíptica, na qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos.

   2º – As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vector (*) de um planeta em volta do foco solar são proporcionais aos tempos que levam a descrevê-las.

   3º – Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em torno do Sol, são proporcionais aos cubos dos grandes eixos orbitários.

   (*) Assim se denomina a linha ideal que liga um planeta ao Sol.

   A síntese dessas leis integra o grande axioma que Newton foi o primeiro a formular na sua obra imortal sobre os Princípios.

   Nesse livro, ensina-nos ele – como bem adverte Herschel – que todos os movimentos celestes são consequências da lei, isto é: – que duas moléculas materiais se atraem na razão directa do volume de suas massas e na inversa do quadrado das distâncias. Partindo deste princípio, ele explica como a atracção exercida entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema, é regulada por uma lei cuja expressão é exactamente idêntica, como os movimentos elípticos dos planetas em volta do Sol e dos satélites à volta dos planetas, tal como os determinou Képler, se deduzem consequentes necessários da mesma lei, e como as próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares dos movimentos planetários. Passando em seguida às aplicações difíceis, faz-nos ver como as desigualdades tão complicadas do movimento lunar se prendem à acção perturbadora do Sol, assim como se originam as marés da desigualdade de atracção que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos equinócios não passa de consequência necessária da mesma lei.

   Pois é à execução dessas leis que está confiada a harmonia do sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos, as suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor distribuídos em diversos graus pela fonte cintilante; é delas que derivam a eclosão da vida, a forma e ornamento dos corpos celestes. Sob a acção incoercível dessas forças colossais, os mundos se transportam no espaço com a rapidez do relâmpago e percorrem centenas de mil léguas por dia, sem parar, seguindo estritamente a rota certa e previamente traçada por essas mesmas forças.

   Se nos fosse dado libertar-nos um momento das aparências, sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do Universo, e se pudéramos abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as esferas, haveríamos de ficar surpreendidos com a imponência desses movimentos. Aos nossos olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilhonariam rápidos sobre si mesmos, projectados no vácuo a toda a velocidade, quais gigantescas balas que uma força de projecção inimaginável houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos desses comboios ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes e, no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa Terra deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas tanto quanto a destas ultrapassa a das tartarugas. A terra que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a velocidade de seiscentos e cinquenta mil léguas por dia. Rodeando esses mundos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes, mas adstritos e submissos às mesmas leis. E todas essas repúblicas flutuantes inclinam os pólos alternativamente para o calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentando, cada manhã, os diferentes pontos de sua superfície ao beijo do astro-rei. Tiram, assim, da combinação mesma dos seus movimentos, a renovação da beleza e da juventude; renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios, dos outonos e dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento suspira; reflectem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se, às vezes, na lanugem atmosférica, fazendo dela um manto protector, ou transformando-a em cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por superfícies imensas a força das ondas oceânicas, que, também por si, se alteiam sob a atracção dos astros, qual seio ofegante; iluminam crepúsculos com os matizes policrómicos dos ocasos comburentes e fremem nos seus pólos às palpitações eléctricas despedidas dos leques de boreais auroras; geram, embalam e nutrem a multidão de seres que as povoam; e renovam o filão da vida desde as plantas fósseis, do passado, até ao homem que pensa e sonda o futuro. Todos esses mundos, todas essas moradas do espaço, departamentos da vida, nos apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo através do oceano celeste tripulantes que não têm a temer escolhos nem imperícias de comando, nem falta de combustível, nem fome, nem tempestades.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu 1 de 3, 11º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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