Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 20 de janeiro de 2019

o grande desconhecido ~


Colaboração Inter-Existencial

A Filosofia actual, representativa do nosso século, é a Existencial. Dela derivou o movimento existencialista, por uma interpretação espúria do pensamento de Jean-Paul Sartre. Mas o pensamento deste famoso filósofo francês nada tem a ver com as extravagâncias de Juliette Gréco, que se aproveitou do renome de Sartre para criar no Café de Flore (i), em Paris, um movimento juvenil em que se atribuiu o título de Musa do Existencialismo, dando a Sartre o título de Papa do Existencialismo. Simone de Beauvoir, discípula e companheira do filósofo, perguntou-lhe porque aceitara esta situação. Sartre encolheu os ombros, dizendo que nada tinha a ver com o movimento da cantora e nem se interessava por ele. O famoso autor de O Ser e o Nada e da Crítica da Razão Dialéctica costumava escrever numa das mesas do Café, e ali continuou a trabalhar, indiferente aos shows da artista. A Filosofia Existencial desfigurou-se na opinião dos leigos, mas não abalou o seu prestígio no meio intelectual. Fundada por Kierkegaard, teólogo dinamarquês, que não pretendia filosofar, a Filosofia Existencial dominou o pensamento filosófico mundial e permanece como o marco de uma profunda revolução filosófica, semelhante à de Copérnico na Astronomia. O conceito existencial do homem foi desenvolvido pelos maiores filósofos contemporâneos, como Martin HeideggarKarl JaspersGabriel MarcelSimoneCamus e outros. Este conceito corresponde ao espírita, formulado por Kardec na Filosofia Espírita. O homem é um projecto, um Ser que se lança na existência e a atravessa como uma flecha em direcção à transcendência que é o objectivo da existência. Para Sartre, materialista, a morte é a frustração do homem. Para Heideggar, metafísico, o homem se completa na morte. A Filosofia Existencial admite, em geral, que o Ser é um embrião lançado à existência para desenvolver as suas potencialidades. Há uma diferença essencial entre Vida e Existência. Todos os seres vivem, mas só o Ser humano existe, porque existir é ter consciência de si mesmo e viver em ritmo de ascensão, buscando superar a condição humana e atingir a divina. O homem é o único existente. Esta palavra, existente, designa o homem como Ser na existência.

Vejamos o sentido tipicamente espírita desta concepção do homem. Antes de Ser; o homem é apenas um vir-a-ser, uma coisa misteriosa fechada em si mesma. Ansiando por relação, essa coisa projecta-se na existência e abre-se na relação, encontrando nela os elementos que a despertam e a transformam num Ser. Este toma consciência de sua própria natureza de Ser e como tal busca superar-se. No trânsito existencial desenvolve a sua essência e abre no maciço do mundo, feito de leis rígidas e fatalistas, a única brecha de liberdade, que é o homem com o seu livre-arbítrio. Para Sartre, ao chegar à morte o homem já elaborou a sua essência na existência, mas esta não subsiste porque o homem desaparece na morte: o homem é uma frustração. Para Heidegger, o Ser desenvolve-se na existência e completa-se na morte: é uma realização. Para Jaspers, o desenvolvimento do Ser na existência faz-se em duas etapas:

1ª) a transcendência horizontal, no plano social;
2ª) a transcendência vertical, em busca de Deus.

Sartre aplica ao existente a dialéctica de Hegel:

a) o homem antes da existência é o em-si;
b) o homem na existência é o para-si;
c) o homem na morte é o em-si-para-si.

Como vemos, o em-si-para-si é a síntese dialéctica em que o em-si, (fechado em si mesmo) e o para-si, (aberto na relação social), que é a transcendência, horizontal de Jaspers, resolve-se no em-si-para-si, que é a condição divina atingida na transcendência vertical.

O conceito filosófico de existência difere profundamente do conceito de vida. Enquanto a vida se define como o elã de Bergson, um impulso, uma força que penetra na matéria e, segundo a ideia hegeliana, modela as formas, a existência é subjectividade pura, o que vale dizer espírito. Assim, não vivemos como as plantas e os animais, integrados na matéria, mas como espíritos ligados à matéria para usá-la em função dos seus interesses subjectivos. Vivemos na psique e não no corpo. A nossa vida não é propriamente vida, mas um existir independente das coisas e dos seres materiais, cuja única aspiração verdadeira é a liberdade, que só podemos de facto ter e gozar na interioridade de nós mesmos. Mesmo encarnados, não saímos do plano espiritual, continuamos nele, o nosso habitat natural, como sonâmbulos. A matéria não nos absorve, apenas se reflecte na nossa sensibilidade. O dia e a noite, a vigília e o sono, como Jaspers observou, marcam o ritmo existencial da relação alma-corpo. Durante o repouso do corpo, para se refazer, voltamos ao mundo espiritual no veículo do perispírito, e mesmo em plena vigília escapamos da matéria através das fugas psíquicas, das projecções telepáticas, das várias modalidades da percepção extra-sensorial. A hipnose prova o sentido ilusório do viver. No estado sonambúlico ou hipnótico, semi-desligados do corpo, vagamos no intermúndio e aceitamos facilmente as sugestões de uma situação irreal: tocamos violino sem violino, sentimos calor e transpiramos sem calor, resistimos ao fogo sem nos queimar, regressamos no tempo e projectamo-nos no futuro através da memória e assim por diante. A Gestalt mostra-nos a ilusão da forma na percepção normal do mundo, em que as aparências pregnantes cobrem a realidade material precipitando-nos em quedas e frustrações. A evolução da Física roubou-nos o mundo sólido e opaco do passado e lançou-nos no torvelinho dos átomos e das partículas nucleares. A matéria esfarelou-se nas mãos dos físicos e obrigou-nos a reconhecer, como Seres evanescentes, que vivemos num mundo mágico de estruturas imponderáveis.

Diante desta realidade fantástica, as leis físicas às quais Bertrand Roussel se apegou para não naufragar no irreal, impõe-se a realidade-real das leis psíquicas, do espírito que domina, estrutura e ordena a matéria. O que chamamos de vida transforma-se em existência, e esta não é mais do que a curta medida do tempo necessário para nos libertar de um condicionamento mental determinado pela ilusão dos sentidos, como Descartes já verificara e demonstrara nas suas tentativas de nos dar a Ciência Admirável que o Espírito de Verdade lhe revelara em sonhos. O cogito ergo sum do filósofo aparece-nos hoje como um traço de união entre o Cristianismo puro do Cristo e o Espiritismo, em que a verdade revelada se restabelece na sua realidade incompreendida, como uma ponte fluídica e indestrutível que liga duas partes do real, separadas pelo abismo de quase dois milénios de loucura, de esquizofrenia religiosa. Ao descobrir que esta frase cartesiana – penso, logo existo – foi o abre-te Sésamo de um filósofo mágico que não queria ilusionar mas atingir a Verdade, compreendemos que a ponte cartesiana passou sobre um abismo onde espumou por milénios à voragem de sangue e impiedade de um pesadelo mundial. E tão hipnótica foi esta voragem que os cientistas e os filósofos ainda resistem ao chamado da nova concepção do homem e do mundo que o Espírito de Verdade nos oferece. O próprio Descartes, apegado aos ídolos de Bacon, saiu do seu deslumbramento para uma peregrinação ao ídolo de Nossa Senhora de La Saletti, no cumprimento de uma promessa. Repetiu-se neste episódio histórico a mensagem do Mito da Caverna na República de Platão. Um escravo escapou dos grilhões e foi ver à luz do Sol a realidade que só conhecia através das silhuetas das sombras. E quando voltou e contou o que vira lá fora, os demais consideraram-no perturbado. No entanto, a partir das suas obras iniciava-se no mundo a Renascença Cristã, que se completaria mais tarde numa eclosão mediúnica em que as línguas de fogo do Pentecostes se acenderiam de novo sobre a cabeça dos Apóstolos da Nova Era. O conceito de existência é o carisma do Século XX, da fase mais aguda da transição planetária para um grau superior na Escala dos Mundos. As inteligências terrenas foram convocadas para a nova batalha cristã, em que os Mártires da Verdade não sofreriam mais as penas cruentas do passado tenebroso, mas enfrentariam as angústias da incompreensão e o martírio inevitável da marginalização cultural. Os construtores da nova cultura, nascida dos princípios cristãos, iniciariam sob escárnio e calúnias a construção da Civilização do Espírito. Este o grave problema que os espíritas precisam encarar com a maior seriedade no nosso tempo, pois somos herdeiros desta causa e os continuadores desta obra. Se não nos empenharmos nela com a devida consciência da sua importância, se não formos capazes de sacrifício e abnegação em favor dos novos tempos, assumiremos também a nossa parte de responsabilidade nos fracassos que poderão levar-nos a uma catástrofe planetária.

Mas é bom lembrar que não estamos sós. Ao conceito de existência dos filósofos actuais o Espiritismo acrescenta o conceito da solidariedade existencial entre os espíritos e os homens. Provada a sobrevivência dos mortos pela pesquisa científica e demonstrada a interpretação dos mundos material e espiritual – que se evidência na nossa própria organização psicofísica –, impõe-se naturalmente o conceito espírita da inter-existência. Já vimos que não vivemos apenas no plano material, que não estamos fundidos no corpo carnal, mas apenas ligados a ele como o condutor ao seu veículo. Nos estudos do Hipnotismo aprendemos que a nossa vida diária também se processa simultaneamente em dois planos. O mesmo acontece com os espíritos, que não estão isolados no plano espiritual, mas passam constantemente do seu plano para o nosso, como vemos no caso das comunicações mediúnicas, das aparições, das materializações e até mesmo, de maneira espontânea e concreta, visível e palpável, no caso dos agéneres. Assim, a interpenetração do plano espiritual inferior com o plano material superior (a crosta terrena e a sua atmosfera), constitui a zona planetária a que chamamos de intermúndio. Os gregos antigos diziam que os seus deuses viviam no Intermúndio, entre o Céu e a Terra. O Espiritismo permite-nos compreender esta verdade de maneira clara e racional: para eles, os espíritos eram os deuses bons e maus que se comunicavam através dos oráculos e das pitonisas. Eles também conheciam os agéneres, pois os seus deuses podiam descer do Olimpo e aparecer aos homens como homens. O conceito de inter-existência deriva do conceito de intermúndio formulado pelos gregos.

E no Espiritismo estes conceitos se ampliam através das pesquisas mediúnicas, revelando as leis da colaboração inter-existencial a que naturalmente se entregam os espíritos e os homens, em todos os tempos, desde os primitivos até ao nosso. Contamos, pois, com a colaboração constante dos nossos companheiros de humanidade na batalha cristã de elevação da Terra.

Anotemos a importância que, neste contexto, adquirem as sessões mediúnicas de orientação e esclarecimento de espíritos sofredores ou malfeitores. A doutrinação espírita, sempre auxiliada pelos Espíritos Superiores e os Espíritos Bons que os servem, é um trabalho humilde de caridade que, no entanto, não se limita aos efeitos pessoais em favor do socorrido e das suas vítimas, pois a sua contribuição maior é a da renovação consciencial ou o despertar das consciências humanas para as responsabilidades do Ser na existência. Pouco pode fazer uma sessão de doutrinação, diante da extensão dos desequilíbrios, a multidão de sofredores e malfeitores que nos rodeiam. Mas cada espírito que se esclarece é uma nova irradiação nas trevas conscienciais. Além disso, numa pequena sessão não temos o esclarecimento apenas das entidades comunicantes. Em geral, é maior o número de espíritos assistentes, que se beneficiam com a doutrinação dos que se encontram na sua mesma situação. Por outro lado, o ambiente espiritual da sessão irradia as suas luzes muito para além do recinto estreito em que se realiza. O milagre da multiplicação dos pães repete-se em cada sessão de humildes servidores da causa que é de toda a Humanidade. Os resultados positivos das sessões vão muito para além do que podemos perceber, espalhando os seus benefícios no intermúndio, no Espaço e na Terra. Note-se ainda que estas sessões representam a colaboração humana nos trabalhos de esclarecimento e orientação que os Espíritos realizam incessantemente no plano espiritual. Esta participação dos homens nas tarefas espirituais restabelece os elos de fraternidade desfeitos pelo formalismo igrejeiro. E desfaz a fábula do ciúme dos anjos, que se teriam rebelado contra Deus pela encarnação de Jesus como homem, pela concessão aos padres do direito de perdoar pecados, que os anjos não possuem. Fábulas desta espécie, criadas pela pretensiosa imaginação teológica, dão-nos a medida do desconhecimento dos clérigos mais ilustrados e prestigiados sobre a realidade espiritual. Os anjos não são mais do que espíritos humanos que se sublimaram em encarnações sucessivas. O Espiritismo coloca o problema da Criação em termos evolutivos, à luz da concepção monista e monoteísta. Nas sessões mediúnicas de caridade, anjos, espíritos humanos e espíritos diabólicos participam como orientadores, doutrinadores e necessitados de doutrinação. Não sendo o Diabo mais do que uma alegoria, um mito representativo dos espíritos inferiores voltados para o mal, a presença dos impropriamente chamados espíritos diabólicos nas sessões de socorro espiritual é justa e necessária. Ninguém necessita mais do socorro humano do que estas criaturas transviadas. Quando elas não estão em condições de aproveitar a oportunidade, não lhes é facultada a comunicação mediúnica. Permanecem no ambiente como observadores, vigiados pelos espíritos guardiões, e aprendem, aos poucos, como alunos ouvintes, a prepararem-se para o tratamento de que necessitam. Muitas pessoas não gostam destas sessões de comunicações desagradáveis, onde a caridade brilha no seu mais puro esplendor. É nelas que os pretensos diabos, deixam cair as suas fantasias infelizes para vestir de novo a roupagem comum dos homens; voltando ao convívio dos que seguem a senda da evolução espiritual. Os grupos que se recusam a realizar estes trabalhos de amor acabam por cair nas mistificações de espíritos pseudo-sábios e pagam caro o seu comodismo e a sua pretensão.

A colaboração inter-existencial iniciada pelo Espiritismo estabeleceu a verdadeira fraternidade espiritual na Terra. Este facto marca um momento sublime nos rumos da transcendência humana. O planeta das sombras, cuja História é um terrível caleidoscópio de atrocidades e maldades, brutalidades e miséria moral, ganhou um ponto de luz celeste com esta reviravolta nas suas precariíssimas condições religiosas. O desenvolvimento das práticas de socorro espiritual indiscriminado, oferecido a todos os tipos de necessitados, dará condições à Terra para se libertar das sombras e elevar-se aos planos de luz. O lema espírita: Fora da Caridade não há Salvação é o passaporte da Terra para a sua escalada aos planos superiores. Os médiuns que trabalham nestas sessões de socorro, ao invés de preferirem aquelas em que só se interessam por mensagens de Espíritos Superiores, estão mais próximos dos planos elevados e das entidades realmente superiores. Não foi para os elegantes e vaidosos rabinos do Templo que Jesus veio à Terra, mas, como ele mesmo disse, para as ovelhas transviadas de Israel. Os que pensam que só devem tratar com Espíritos Superiores provam, por esta pretensão, a incapacidade de compreender a elevação espiritual.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XII – Colaboração Inter-existencial, 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Deus na Natureza ~

A Vida ~ Circulação da Matéria ~
(IV)

 Bichat definiaa vida como o conjunto de funções que resistem à morte. Sem tomarmos puerilmente, à letra, esta definição, perguntamos: qual é a primeira imagem que nos oferece o exame da estrutura de um vegetal ou de um animal? Certo, é a coordenação das funções orgânicas que constituem o ser vivente. E o que será esta coordenação, senão um sistema de forças destinadas a movimentar a máquina animada?

 Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva é a ideia dinâmica. Banida esta, o que nos fica é nada mais que um cadáver.

  Se, da descrição do órgão apropriado ao seu funcionamento e desse conceito de forças particulares remontarmos ao do seu conjunto e à sua conservação, desde o começo ao fim da vida, concluiremos com Cuvier que “a vida é um turbilhão contínuo, cuja directiva, por mais complexa que seja, permanece constante, tal como a espécie de moléculas que consigo arrasta, mas não as moléculas individuais em si mesmas”. Aqui, ainda há que reconhecer a presença da força, que, através da incessante mutação dos corpos, lhes assegura e conserva a identidade da forma. Ela – essa força – é pois a característica principal de todo o organismo. E frisamos estas palavras de Cuvier: “as moléculas individuais circulam perpetuamente, mas a espécie permanece sempre idêntica”. Essa permanência devemo-la à força.

  Que sucederia, por exemplo, se apenas a forma se salvaguardasse e nenhuma direcção virtual presidisse à eleição das moléculas químicas? Teríamos, a breve trecho, o mais heterogéneo dos corpos imagináveis, ainda que guardando a perfeição da sua formação.

 Imaginai, por exemplo, que o elemento essencial de uma face clara como a neve, que o coralino de uns lábios, a gracilidade de uma boca, o matiz expressivo de uns olhos pulcros, fossem, ocasionalmente, refeitos por moléculas de outra espécie, como, por exemplo, do iodo, que se torna negro ao contacto da luz, do ácido butírico, fundente ao Sol, ou de um sal qualquer, solúvel pela humidade, etc... Que belos espécimes daria assim a Humanidade! E contudo, eis aí ao que se chega, quando negamos a existência de uma força vital.

 Passando do indivíduo à espécie, ainda aí notamos o predomínio necessário da força. Se cada indivíduo se mantém vivo, é graças à sua dinâmica íntima. Se as espécies vegetais ou animais permanecem, é graças à força inicial que, só ela, pode caracterizar a identidade da espécie, transmissível à descendência e existente em estado latente, ou sensível, no óvulo vegetal como no óvulo animal.

 Como pôde um carvalho enorme sair da ínfima bolota caída no solo? Como se fez carvalho, ao lado de uma vagem que expeliu a faia; da pinha, que engendrou o pinheiro; da amêndoa, que se fez tumba do pilriteiro desdobrando-se em bagas escarlate; ou ainda, ao lado do grão de trigo e de aveia, na mesma terra, com o mesmo sol e a mesma chuva; em suma: nas mesmíssimas condições?

 Porque será que os elefantes de hoje são exactamente idênticos aos de que Pyrrhus se utilizava, há 20 séculos, e o corvo de Noé (se é que Noé existiu) se vestia do mesmo luto destes que aí sulcam os nossos céus de Setembro? Certo, porque o germe orgânico não reside somente na estrutura anatómica, mas, também e sobretudo, numa força especial que se encarrega, sem enganos possíveis, da organização do ser, de modo a não dar a um cavalo uma cabeça de carneiro, nem a um coelho uns pés de pato!

 Afirmando tão apaixonadamente a inexistência de uma força especial nos seres vivos e que a vida mais não é que o resultado da presença simultânea das moléculas constitutivas do animal ou vegetal, justo seria procurassem, os arautos de tão audaciosas afirmativas, comprová-las experimental e ainda que modestamente. Improvisai um único, e o mais ínfimo ser vivo, e... nós nos renderemos. Vejamos: aqui está uma garrafa com carbonato de amoníaco, cloreto de potássio, fosfato de soda, cal, magnésio, ferro, ácido sulfúrico e sílica.

 Sois vós mesmos a confessá-lo (i) que neste frasco está contido o princípio vital, completo, de plantas e animais. Fazei, portanto, uma plantinha, um só bichinho... Como assim? Calai-vos? Nada obstante, sois patrícios de Goethe! Não vos lembrais do lúgubre laboratório de Wagner, atochado de aparelhos esquisitos, disformes; de fornos e cubos destinados a fantásticas experiências? Ele, Wagner, já tem nas mãos a garrafa.

 Apelai à vossa memória e ouvi a cena maravilhosa do eterno Mefistófeles a dialogar com o alquimista.

 Wagner, atento ao forno: “O sino tocou, uma percussão formidável! Abalou as paredes negras, ferrugentas. Oh! a incerteza desta expectativa tão solene não pode prolongar-se mais. As trevas como que se desfazem, estou a ver no fundo da lente algo que reluz (ii) como o carbono vivo, ou, melhor, como esplêndido diamante, a clarear de mil facetas a escuridão ambiente. Agora, uma luz pura, branquíssima. Bem, desta vez espero que não escapará... ah! maldição, quem bate assim à porta, justamente...

 Mefistófeles: (entrando) – Que há?

 Wagner: (baixinho) – Está a fabricar-se um homem...

 Mefistófeles: – Um homem? Mas, que amoroso casal meteste aí nessa chaminé?

 Wagner: – Ora, valha-me Deus! Essa velha fórmula de procriar já foi, há muito, considerada de mero gracejo. O foco subtil de onde brotava a vida, a força suave que de si exalava, dava e voltava a dar, destinada a formar-se por si só, alimentando-se a princípio das substâncias circunvizinhas e, a seguir, de substâncias estranhas, tudo isso caducou e perdeu o seu prestígio. Se o animal ainda lhe encontra prazer, ao homem convém, por dotado de mais nobres qualidades, uma origem mais pura e mais alta. (Voltando-se para a fornalha) Quanto brilho! veja... De agora em diante, é lícito esperar que, se de cem matérias, e por mistura – pois tudo depende da mistura – conseguimos com facilidade preparar a massa humana, aprisioná-la num alambique, o "cohober" a preceito, a obra se completará em silêncio.(Voltando-se de novo para a fornalha) É o que está a acontecer: ela se clareia e mais convencido me deixa, a cada instante. Tentamos, judiciosamente, experimentar o que se chamava – mistérios da Natureza – e o que ela produzia outrora, organizando, fazemo-lo hoje cristalizando.

 Mefistófeles: – A experiência vem com a idade e a quem quer que tenha vivido o bastante, nada acontece de novo, na Terra. Por mim, confesso que nas minhas viagens encontrei, variadíssimas vezes, muita gente cristalizada...

 Wagner: (que não tirara o olho de sua lente) – A coisa está crescendo, brilhando, fervendo... Um instante mais e a obra estará pronta. Não há ideal grandioso que à primeira vista não pareça insensato; contudo, doravante, queremos enfrentar a chance e dessa arte, futuramente, um pensador não deixará de fabricar um cérebro pensante...

 (Contemplando a redoma extasiado) O cristal retine, vibra; comove-o uma força encantadora, ele como que se perturba e se aclara, o sucesso não tarda. Já estou a ver a forma elegante de um homenzinho gesticulando... Que mais desejar? Que pode o mundo querer de melhor? Eis o mistério a desnudar-se! Atenção! Esse timbre se articula, vozeia, fala!

  Homúnculo: (de dentro da redoma, para Wagner)

 – Bom dia, papá! então sempre era verdade, hein? Toma-me, aconchega-me nos teus braços com ternura, mas, olha, não me apertes muito, senão... quebras o vidro. Isso é a propriedade das coisas: ao que é natural, só o Universo pode bastar; mas o artificial, ao contrário, reclama o limitado. (Voltando-se para Mefistófeles) Tu aqui? Velhaco... Mas, ainda bem que o momento é azado e dou graças porque a boa estrela te trouxe até nós. Já que estou no mundo, quero agir e meter desde logo mãos à obra. Hábil és tu para me desbravares o caminho.

 Wagner: – Uma palavra ainda... Até aqui, muitas vezes me vi indeciso, quando jovens e velhos me vêm acumular de problemas. Ninguém, por exemplo, ainda compreendeu como a alma e o corpo, tão intimamente conjugados e ajustados entre si, ao ponto de os julgarmos para sempre inseparáveis, vivem em luta sem tréguas e chegam a envenenar a própria existência... e depois...

 Mefistófeles: – Alto lá! Eu antes quisera saber a razão por que o homem e a mulher não se entendem. Esta é uma questão que te há de custar a resolver. Isso é o que vale tentar e o petiz deseja fazê-lo...“

 Voltai, porém, à página do libreto. Vamos ao 1º acto, é Fausto, é a velha e a nova Ciência quem fala:

 "Como tudo se movimenta para o trabalho universal! Como operam e cooperam as actividades todas, umas pelas outras! Como sobem e descem as forças, a permutar de mão em mão os seus vasos de ouro, a tocá-los com as suas asas que exalam, neste vaivém, do céu à Terra, como uma bênção de universal harmonia!

 “Estupendo espectáculo! Mas... ó tortura! nada mais que espectáculo! Onde apreender-te, ó Natureza! Ó fontes de toda a vida! que abranjeis e nutris céus e terras, onde estais? Para vós se voltam os seios desnutridos, correis aos borbotões, inundais o mundo, enquanto em vão me consumo.”

 Sim. Em vão vos consumis, tentando reivindicar para o homem a obra do Criador. E em vão que escreveis: A omnipotência criadora é a afinidade da vida... Com todo o vasto conhecimento da matéria e das suas propriedades, não conseguistes engendrar sequer um cogumelo.

 Creio, porém, que de os fazeres decimais vos desculpais. O que não podemos, pode a Natureza, visto que ela ainda é mais hábil que nós. (Bela modéstia, na verdade.) Mas, então, que fazeis da inteligência, uma vez que, por outro lado, presumis não haver espírito na Natureza? Mas vamos adiante. Ao demais – acrescentais argutamente –, se ainda não produzimos seres vivos por processos químicos, temos, todavia, produzido matérias como, por exemplo, o ácido característico da urina, e o óleo essencial da mostarda (éter alilsulfociânico), o que muito nos lisonjeia. Detenhamo-nos, pois, um instante, nas decisivas manipulações destes ilustres químicos.

 A partir dos fins do último século, como adverte Alfred Maury (iii), tem-se reconhecido que as matérias que se desenvolvem nos vegetais e nos animais, recolhidas dos seus restos, encerram quase exclusivamente carbono, oxigénio, hidrogénio e azoto. Daí se concluiu serem estes quatro corpos os princípios básicos elementares de todas as substâncias orgânicas e que se encontram muitas vezes combinados com alguns outros corpos simples e diversos sais minerais.

 Este primeiro resultado nos ensinou que, se vegetação e vida são forças à parte, insusceptíveis de se confundirem com o simples movimento, com a afinidade e a coesão, elas de si nada criam e apenas apropriam o material do reino mineral que as rodeia. De facto, os quatro elementos orgânicos existem inteiramente formados na atmosfera. O ar é um composto de oxigénio e azoto, associados à pequena porção de ácido carbónico, ou seja de carbono combinado com o oxigénio. A atmosfera tem, ao demais, em suspensão, o vapor de água e ninguém ignora que a água é um composto de oxigénio e hidrogénio. Portanto, as matérias orgânicas tiram desta massa fluídica e inorgânica que as envolve e compenetra o nosso globo os elementos de sua composição. Quanto às outras substâncias encontradas, por assim dizer, acidentalmente, na sua trama, são apropriadas ao solo. As plantas os sugam e os animais, nutrindo-se das plantas, os assimilam.

 A Química pode criar imediatamente esses elementos orgânicos e foi o Sr. Büchner o primeiro a proclamá-lo, com entusiasmo. Os químicos fizeram o açúcar de uva bem como vários ácidos orgânicos. Criaram, dizem, diferentes bases orgânicas e entre elas a ureia, substância orgânica por excelência, em desmentido aos médicos que os acusavam de incapazes de obter produtos do organismo. Dia a dia vemos aumentarem as experiências químicas no sentido de criar combinações. O Sr. Berthelot conseguiu engendrar, de corpos inorgânicos, os derivados das combinações de carbono e hidrogénio e esta descoberta, mau grado ao seu desacordo com a natureza orgânica, forneceu um ponto de partida para a composição artificial dos corpos orgânicos.

 Hoje se fabrica o álcool e perfumes preciosos do carvão vegetal; da ardósia extraem-se velas; o ácido prússico, a ureia, a taurina e quantidade de outros corpos, havidos outrora por só criados de substâncias vegetais ou animais, tornam-se obteníveis de simples elementos da Natureza inorgânica. Assim, se apagou, graças as estas manipulações, a clássica distinção entre a Natureza orgânica e inorgânica.

 Em 1828, produzindo ureia artificial, Wöhler derrubou a velha teoria que sustentava só possíveis as combinações orgânicas engendradas por corpos orgânicos. Em 1856, Berthelot criou o ácido fórmico com substâncias inorgânicas, isto é, óxido carbónico e água, aquecendo estas matérias com a potassa cáustica e sem cooperação de quaisquer plantas ou animais. Logo após, conseguiram directamente destes elementos a síntese do álcool. Chegaram mesmo a produzir a gordura artificial do ácido oléico e da glicerina, duas substâncias que se podem obter por processos exclusivamente químicos, e aí temos um dos resultados mais extraordinários até hoje conseguidos na Química sintética.

  Destes dados, o autor de Força e Matéria (Büchner) concluiu que importa banir da vida e da Ciência a ideia de uma força orgânica, produtora dos fenómenos da vida, de maneira arbitrária e independente das leis da Natureza. Tal como ele, também repelimos o arbitrário, mas guardamos a força. Ele nos garante que a pretendida distinção rigorosa entre o orgânico e o inorgânico é meramente arbitrária. Mas, nisso, tem contra si os representantes da vida terrena, na sua totalidade.

 Sem embargo, Carl Vogt acrescenta que, “alegar a força vital, não passa de circunlóquio para mascarar a ignorância, espécie de alçapões de que a Ciência está cheia e pelos quais se salvam sempre os espíritos superficiais, que recuam perante o exame de uma dificuldade, para somente se contentarem com milagres imaginários”.

 Neste caso, a doutrina da força vital representaria hoje uma causa perdida. “Nem os esforços dos naturalistas místicos, no intuito de reanimar essa sombra; nem os lamentos dos metafísicos esconjurando as pretensões e a irrupção iminente do materialismo fisiológico e contestando-lhe o contingente filosófico; nem as vozes isoladas que assinalam os factos da Fisiologia ainda obscuros; nada disso pode salvar a força vital de próxima e completa ruína.

 Há alguns anos, Bunsen e Playfer mostraram – diz o autor de A Circulação da Vida, e Rieken confirmou logo após – que é possível obter cianogénio (combinação de azoto e hidrogénio) à custa de substância inorgânica. Por outro lado, sabemos que o hidrogénio, no momento em que se separa das suas combinações, pode unir-se ao azoto para formar o amoníaco. De resto, pode-se ir do cianogénio ao amoníaco. Basta expor ao ar o cianogénio dissolvido em água, para que se vejam flocos pardacentos desagregando-se do líquido, sinal de decomposição, em seguida à qual encontramos o ácido carbónico, o prússico, amoníaco, oxalato de amoníaco e ureia, dissolvidos no líquido. O ácido oxálico é uma combinação de carbono e oxigénio que, pela mesma quantidade de carbono, não contém senão três quartos do peso de oxigénio e ácido carbónico. O ácido oxálico é o causador do paladar acidulado de azeda, da oxálida e de muitas outras plantas. É um ácido orgânico que, conforme acabamos de dizer, podemos preparar mediante corpos simples, sem o concurso de qualquer organismo.

 “Assim, ficamos agora a conhecer três substâncias – exclama Moleschott –: uma base orgânica – o amoníaco; um principio acidulante orgânico – o cianogénio, e um ácido orgânico – o oxálico, que podemos fabricar com corpos simples.

 “Não há muitos anos, acreditava-se possível preparar um e outro mediante decomposição de combinações orgânicas as mais complexas, mas ninguém imaginaria obtê-las de elementos simples. No amoníaco temos uma combinação de azoto e hidrogénio, sem partilha de corpos orgânicos. Este enigma, que a esfinge da força vital nos antepunha como espantalho, para impedir o nosso avanço na preparação artificial das combinações orgânicas, foi resolvido por Berthelot. Ele derrubou a esfinge e os seus adoradores, substituindo-os por uma plêiade de investigadores, a cujas mãos passou os fios que lhes deverão servir para levar por diante a trama das descobertas, a fim de reproduzirem todas as peças do mundo orgânico.”

 Acrescentamos que se obtém hoje o ácido acético, fazendo passar por três estados um combinado de cloro e carbono, que são: percloreto de carbono, ácido cloracético e cloreto de carbono, bem como que a combinação directa de carbono e hidrogénio dá a síntese do acetileno (iv).

 Mais fácil ainda é preparar o ácido fórmico só com o auxílio de corpos simples, qual o conseguiu o professor do Colégio de França, operando com a potassa húmida sobre o gás óxido-carbónico, num globo de vidro à prova de fogo e por espaço de setenta e duas horas, à temperatura de 100 graus (v).

 De resto, a Natureza extrai as substâncias orgânicas da mesma fonte a que recorrem os químicos nas suas experiências de laboratório.

 Certamente, palmeamos a duas mãos (mesmo porque com uma só fora impossível) essas admiráveis tentativas da Ciência e não é a nós que poderiam imputar embargos ao génio criador do homem. Ele, o homem, está na Terra para conhecer a Natureza e assenhorear a matéria. O conhece-te a ti mesmo dos antigos se traduz nos nossos dias pelo estudo do mundo exterior e é por este estudo fecundo que verdadeiramente aprenderemos a conhecer-nos a nós mesmos.

 Acreditamos, com o Sr. Maury, que o alcance de tantas descobertas compensa de sobejo o esforço para as compreender. Que ciência nos poderá mais cativar do que a que nos revela a matéria de que nos constituímos e nos alimentamos; as substâncias com as quais estamos em contacto, os efeitos físicos que se operam dentro e fora de nós, onde transitam e como rejeitamos as partículas incessantemente assimiladas?

 Não são assuntos de somenos, estes, particularismos e instantâneos: antes são problemas que abrangem a humanidade física na sua totalidade, é o mundo dos seres a que pertencemos que está em jogo.

 Despendendo amiúde muito trabalho e inteligência para penetrar no labirinto de mesquinhas controvérsias e factos insignificantes, como descurarmos o que mais interessa, ou seja, esta maravilhosa Natureza no seio da qual nascemos, vivemos e morremos; que nos precede e nos sobrevive, fornecendo a todas as gerações os princípios essenciais de sua própria existência?

 Mas, nem por isso nos associamos às pretensas consequências que os senhores materialistas deduzem, consequências que os senhores BerthelotPasteur, e os químicos práticos são os primeiros a repudiar. Os materialistas presumem ter a chave mais difícil do enigma, uma vez que podem produzir gás artificial com os corpos simples. Misturando-se cianato de potassa e sulfato de amoníaco, a potassa combina-se com o ácido sulfúrico e o ácido ciânico com o amoníaco. Esta última combinação não é cianeto de amoníaco mas sim ureia. Admirai agora a ilação: “É graças a esta brilhante descoberta que Liebig e Wöhler abriram dilatadas perspectivas nessa via e conquistaram um eterno galardão, dando, um tanto involuntária e não preconcebidamente, a prova de que, doravante, a flama da vida se resolve em forças físicas e químicas.” Que honra para Liebig e Wöhler o serem assim arrastados para as nascentes do Aqueronte. Os nossos adversários gostam desse rio e das suas margens sombrias. “Certo – acrescentam –, o químico isento de preconceitos, que não fala ao serviço do trono e do altar, contando tranquilamente com a vitória certa, pode sorrir do pobre filósofo, cujo saber não ultrapassa o conhecimento da ureia e que acredita impor limites ao poder do fisiologista.” Que altar e que trono nomeariam ministros uns tais lógicos? A própria Ciência vive retraída no seu santuário e os deixa rondar o templo, ao repicar dos sinos e fazer evoluções.

 Que conclusão definitiva tira a escola materialista destas manipulações? A de que a Química e a Física nos oferecem provas evidentes de que as forças conhecidas, das substâncias inorgânicas, exercem a sua acção, tanto na Natureza viva como na morta.

 Pela mesma razão que os obrigou a divinizar a matéria, em substituição a Deus, vemo-los animar, sem cerimónias, a matéria para destronar a vida.

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(i) Circulation de la Vie, T. 2º, carta 15º.
(ii) A ideia de enclausurar Espíritos em frascos é muito comum na feitiçaria medieval. O Papa Benedito IX expeliu sete Espíritos de um açucareiro.
(iii) Revue des Deux Mondes – 1º de Setembro de 1865.
(iv) Berthelot – Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.
(v) Sobre os recentes progressos da Química orgânica, convém consultar os interessantes relatos das sessões da Academia, principalmente nestes últimos tempos.


Camille FlammarionDeus na Natureza, Segunda Parte – A Vida 1, Circulação da Matéria (4 de 5), 20º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895, pintura de James Jebusa Shannon)