Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 17 de abril de 2022

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...) 

a evolução do pensamento ~ 

Uma lei, já o dissemos, rege a evolução do pensamento, como a evolução física dos seres e dos mundos; a compreensão do universo, desenvolve-se com o progresso do espírito humano. 

Essa compreensão geral do universo e da vida, foi expressa de mil maneiras, sob mil formas diversas no passado. Ela é-o hoje, em termos mais amplos e sê-lo-á, sempre com mais amplitude, à medida que a humanidade for subindo, os degraus da sua ascensão. 

A Ciência, vê alargar-se sem cessar, o seu campo de exploração. Todos os dias, com auxílio dos seus poderosos instrumentos de observação e análise, descobre novos aspectos da matéria, da força e da vida; mas o que esses instrumentos verificam, já há muito tempo o espírito discernira, porque o voo do pensamento, precede sempre e excede os meios de acção da ciência positiva. Os instrumentos nada seriam sem a inteligência, a vontade que os dirige. 

A Ciência é incerta e mutável, renova-se sem cessar. Os seus métodos, teorias e cálculos, com grande custo arquitectados, desabam perante uma observação mais atenta ou uma indução mais profunda, para dar lugar a novas teorias, que não terão maior estabilidade. (i) A teoria do átomo indivisível, por exemplo, que há dois mil anos servia de base à Física e à Química, é actualmente qualificada como hipótese e puro romance pelos nossos químicos mais eminentes. 

Quantas decepções análogas não têm demonstrado, no passado, a fraqueza do espírito científico, que só chegará à realidade quando se elevar acima da miragem dos factos materiais para estudar-lhe as causas e as leis! 

Foi dessa maneira que a Ciência pôde determinar os princípios imutáveis da Lógica e das matemáticas. Não sucede o mesmo nos outros campos de investigação. Na maior parte das vezes, o sábio, para eles leva os seus preconceitos, tendências, práticas rotineiras, todos os elementos de uma individualidade acanhada, como se pode verificar no domínio dos estudos psíquicos, principalmente na França, onde até agora poucos sábios houve suficientemente corajosos e suficientemente ilustrados para seguirem a estrada já amplamente traçada pelas mais belas inteligências de outras nações. 

Não obstante, o espírito humano avança passo a passo no conhecimento do ser e do universo; o nosso saber, quanto à força e à matéria, modifica-se dia a dia; a individualidade humana revela-se com aspectos inesperados. À vista de tantos fenómenos verificados experimentalmente, em presença dos testemunhos que de toda a parte se acumulam, (ii) nenhum espírito perspicaz pode continuar a negar a realidade da outra vida, a esquivar-se às consequências e às responsabilidades que ela acarreta. 

O que dizemos da Ciência poder-se-ia, igualmente, dizer das filosofias e das religiões que se têm sucedido através dos séculos. Constituem elas outros tantos estádios ou trechos percorridos pela humanidade, ainda criança, elevando-se a planos espirituais cada vez mais vastos e que se ligam entre si. No seu encadeamento, essas crenças diversas nos aparecem como o desenvolvimento gradual do ideal divino, que o pensamento reflecte, com tanto mais brilho e pureza quanto mais delicado e perfeito se vai tornando. 

É essa a razão pela qual as crenças e os conhecimentos de um tempo ou de um meio parecem ser, para o tempo ou o meio onde reinam, a representação da verdade, tal qual a podem alcançar e compreender os homens dessa época, até que o desenvolvimento das suas faculdades e consciências os tornem capazes de perceber uma forma mais elevada, uma radiação mais intensa dessa verdade. 

Sob esse ponto de vista, o próprio feiticismo, apesar dos seus ritos sangrentos, tem uma explicação. É o primeiro balbuciar da alma infantil, ensaiando-se para soletrar a linguagem divina e fixando, em traços grosseiros, em formas apropriadas ao seu estado mental, a concepção vaga, confusa, rudimentar de um mundo superior. 

Paganismo representa uma concepção mais elevada, posto que mais antropomórfica. Nele os deuses são semelhantes aos homens, têm todas as suas paixões, todas as suas fraquezas; mas, agora, a noção do ideal se aperfeiçoa com a do bem. Um raio de beleza eterna vem fecundar as civilizações no berço. 

Mais acima, vem a ideia cristã, essencialmente feita de sacrifício e abnegação. O paganismo grego era a religião da Natureza radiosa; o Cristianismo é a da humanidade sofredora, religião das catacumbas, das criptas e dos túmulos, nascida na perseguição e na dor, conservando o cunho de sua origem. Reacção necessária contra a sensualidade pagã, tornar-se-á ela, pelo seu próprio exagero, impotente para vencê-la, porque, com o cepticismo, a sensualidade renascerá. 

Cristianismo, na sua origem, deve ser considerado como o maior esforço tentado pelo mundo invisível para comunicar ostensivamente com a nossa humanidade. É, segundo a expressão de F. Myers, “a primeira mensagem autêntica do Além”. Já as religiões pagãs eram ricas em fenómenos ocultos de toda a espécie e de factos de adivinhação; mas a ressurreição, isto é, as aparições do Cristo materializado, depois de ter morrido, constituem a mais poderosa manifestação de que os homens têm sido testemunhas. Foi o sinal de uma entrada em cena do mundo dos Espíritos, entrada que, nos primeiros tempos cristãos, se produziu de mil maneiras. Dissemos em outro lugar (iii) como e por que pouco a pouco foi descendo de novo o véu do Além e o silêncio se fez, salvo para alguns privilegiados: videntes, extáticos, profetas. 

Assistimos hoje a uma nova florescência do mundo invisível na História. As manifestações do Além, de passageiras e isoladas, tendem a converter-se em permanentes e universais. Entre os dois mundos desdobra-se um caminho, a princípio simples carreiro, estreita senda, mas que se alarga, melhora pouco a pouco e, que se tornará estrada larga e segura. O Cristianismo teve como ponto de partida fenómenos de natureza semelhante aos que se verificam nos nossos dias, no domínio das ciências psíquicas. É por esses factos que se revelam a influência e a acção de um mundo espiritual, verdadeira morada e pátria eterna das almas. Por meio deles se rasga um claro azul na vida infinita. Vai renascer a esperança nos corações angustiados e a humanidade vai reconciliar-se com a morte. 

As religiões têm contribuído poderosamente para a educação humana; têm oposto um freio às paixões violentas, à barbaria das idades de ferro e, gravado fortemente a noção moral no íntimo das consciências. A estética religiosa criou obras-primas em todos os domínios; teve parte activa na revelação da arte e da beleza que prossegue pelos séculos fora. A arte grega criara maravilhas; a arte cristã atingiu o sublime nas catedrais góticas que se erguem, bíblias de pedra sob o céu, com as suas altaneiras torres esculpidas, as suas naves imponentes, cheias das vibrações dos órgãos e dos cantos sagrados, as suas altas ogivas, de onde a luz desce em ondas e se derrama pelos afrescos e pelas estátuas; mas o seu papel está a terminar, visto que, actualmente, ou se copia a si mesma, ou, exausta, entra em descanso. 

O erro religioso, principalmente o católico, não pertence à ordem estética, que não engana; é de ordem lógica. Consiste em encerrar a Religião em dogmas estreitos, em moldes rígidos. Enquanto o movimento é a própria lei da vida, o Catolicismo imobilizou o pensamento, em vez de provocar-lhe o voo. 

Está na natureza do homem, exaurir todas as formas de uma ideia, ir até aos extremos, antes de prosseguir o curso normal da sua evolução. Cada verdade religiosa, afirmada por um inovador, enfraquece-se e altera-se com o tempo, por serem quase sempre incapazes, os discípulos, de se manterem à altura a que o Mestre os atraíra. Desde esse momento a doutrina torna-se uma fonte de abusos e provoca pouco a pouco um movimento contrário, no sentido do cepticismo e da negação. À fé cega, sucede a incredulidade; o materialismo, faz a sua obra e somente quando ele mostra toda a sua impotência na ordem social é que se torna possível uma renovação idealista. 

Correntes diversas – judaica, helénica, gnóstica – misturam-se e chocam-se, desde os primeiros tempos do Cristianismo, na esteira da religião nascente; declaram-se cismas. Sucedem-se rupturas, conflitos, no meio dos quais, o pensamento do Cristo se vai pouco a pouco velando e obscurecendo. 

Mostrámos (iv) quais as alterações, as acomodações sucessivas de que foi objecto a doutrina cristã na sucessão dos tempos. O verdadeiro Cristianismo, era uma lei de amor e liberdade, as igrejas fizeram dele, uma lei de temor e escravidão. Daí o se afastarem, gradualmente, da igreja os pensadores; daí o enfraquecimento do espírito religioso. 

Com a perturbação que invadiu os espíritos e as consciências, o materialismo ganhou terreno. A sua moral, que pretende foros de científica, que proclama a necessidade da luta pela vida, o desaparecimento dos fracos e a selecção dos fortes, reina hoje, quase como soberana, tanto na vida pública, quanto na vida privada. Todas as actividades se aplicam à conquista do bem-estar e dos gozos físicos. Por falta de preparação moral e de disciplina, a alma perde as suas energias; insinuam-se por toda a parte o mal-estar e a discórdia, na família e na nação. É, dizíamos, um período de crise. Não obstante as aparências, nada morre; tudo se transforma e renova. A dúvida, que assedia as almas na nossa época, prepara o caminho para as convicções de amanhã, para a fé inteligente e esclarecida, que há de reinar no futuro e estender-se a todos os povos, a todas as raças. 

Embora jovem e dividida pelas necessidades de território, de distância, de clima, a humanidade começou a ter consciência de si mesma. Acima e fora dos antagonismos políticos e religiosos, constituem-se agrupamentos de inteligências. Homens preocupados com os mesmos problemas, aguilhoados pelos mesmos cuidados, inspirados pelo Invisível, trabalham numa obra comum e procuram as mesmas soluções. Pouco a pouco vão aparecendo, fortificando-se, aumentando, os elementos de uma ciência psicológica e de uma crença universais. Um grande número de testemunhas imparciais, vê nisso o prelúdio de um movimento do pensamento, tendendo a abranger todas as sociedades da Terra. (v) 

A ideia religiosa, acaba de percorrer o seu ciclo inferior e vão-se desenhando os planos de uma espiritualidade mais elevada. Pode dizer-se que, a Religião é o esforço da humanidade para comunicar com a Essência eterna e divina. É essa a razão, pela qual haverá sempre religiões e cultos, cada vez mais liberais e conformes às leis superiores da Estética, que são a expressão da harmonia universal. O belo, nas suas regras mais elevadas, é uma lei divina e, as suas manifestações em relação com a ideia de Deus, revestirão forçosamente um carácter religioso. 

À proporção que o pensamento se vai aperfeiçoando, missionários de todas as ordens vêm provocar a renovação religiosa no seio da humanidade. Assistimos ao prelúdio de uma dessas renovações, maior e mais profunda que as precedentes. Já não tem somente homens por mandatários e intérpretes, o que tornaria a nova dispensação tão precária como as outras. São os Espíritos inspiradores, os génios do espaço, que exercem ao mesmo tempo a sua acção, em toda a superfície do Globo e em todos os domínios do pensamento. Sobre todos os pontos, aparece um novo espiritualismo. 

Imediatamente surge a pergunta: “Que és tu, ciência ou religião? Espíritos de pouco alcance, credes então que o pensamento há de seguir eternamente os carreiros abertos pelo passado?!” 

Até aqui, todos os domínios intelectuais, têm permanecido separados uns dos outros, cercados de barreiras, de muralhas – a Ciência de um lado, a Religião do outro. A Filosofia e a Metafísica, estão eriçadas de silvas impenetráveis. Quando tudo é simples, vasto e profundo, no domínio da alma como no do universo, o espírito de sistema tudo complicou, apoucou, dividiu. A Religião foi emparedada no sombrio ergástulo dos dogmas e dos mistérios; a Ciência foi enclausurada, nas mais baixas camadas da Matéria. Não é essa a verdadeira religião, nem a verdadeira ciência. Bastará, nos elevemos acima dessas classificações arbitrárias, para compreendermos que tudo se concilia e reconcilia numa visão mais alta. 

A nossa ciência, posto que elementar, quando se entrega ao estudo do espaço e dos mundos, não provoca, desde logo e imediatamente, um sentimento de entusiasmo, de admiração quase religiosa? Lede as obras dos grandes astrónomos, dos matemáticos de génio. Dir-vos-ão que o universo é um prodígio de sabedoria, de harmonia, de beleza e, que já na penetração das leis superiores se realiza a união da Ciência, da Arte e da Religião, pela visão de Deus, na sua obra. Chegado a essas alturas, o estudo, converte-se em contemplação e o pensamento em prece

O Espiritualismo moderno, vai acentuar, desenvolver, essa tendência, dar-lhe um sentido mais claro e mais rigoroso. Pelo lado experimental, ainda não é mais do que uma ciência; pelo objectivo das suas investigações, penetra nas profundezas invisíveis e eleva-se até aos mananciais eternos, donde dimanam, toda a força e toda a vida. Por essa forma, une o homem ao Poder Divino e torna-se uma doutrina, uma filosofia religiosa. É, além disso, o laço que reúne, as duas humanidades. Por ele, os Espíritos prisioneiros na carne e os que estão livres, chamam e respondem uns aos outros. Entre eles, estabelece-se uma verdadeira comunhão. 

Cumpre, pois, não ver nele uma religião, no sentido restrito, no sentido actual, dessa palavra. As religiões do nosso tempo, querem dogmas e sacerdotes e, a doutrina nova não os comporta; está patente, a todos os investigadores. O espírito de livre crítica, exame e verificação preside às suas investigações. 

Os dogmas e os sacerdotes, são necessários e sê-lo-ão por muito tempo ainda, às almas jovens e tímidas, que todos os dias penetram, no círculo da vida terrestre e não se podem reger por si, nem analisar, as suas necessidades e sensações. 

O Espiritualismo moderno, dirige-se principalmente às almas desenvolvidas, aos espíritos livres e emancipados, que querem por si mesmos, encontrar a solução dos grandes problemas e, a fórmula do seu Credo. Oferece-lhes uma concepção, uma interpretação das verdades e das leis universais, baseada na experiência, na razão e no ensino dos Espíritos. Acrescentai a isso, a revelação dos deveres e das responsabilidades, única condição que dá base sólida, ao nosso instinto de justiça; depois, com a força moral, as satisfações do coração, a alegria de tornar a encontrar, pelo menos com o pensamento, algumas vezes até com a forma, (vi) os seres amados que julgávamos perdidos. À prova da sua sobrevivência, junta-se a certeza de irmos ter com eles e com eles, reviver vidas inumeráveis, vidas de ascensão, de felicidade ou de progresso. 

Assim, se esclarecem, gradualmente, os problemas mais obscuros, entreabre-se o Além; o lado divino dos seres e das coisas se revela. Pela força, desses ensinamentos, a alma humana cedo ou tarde subirá e, das alturas a que chegar, verá que tudo se liga, que as diferentes teorias, contraditórias e hostis na aparência, não são mais do que aspectos diversos, de um mesmo todo. As leis do majestoso universo, resumir-se-ão, para ela, numa lei única, numa força ao mesmo tempo inteligente e consciente, modo de pensamento e acção. Por ela encontrar-se-ão ligados, numa mesma unidade poderosa, todos os mundos, todos os seres, associados numa mesma harmonia, arrastados para um mesmo fim. 

Dia virá, em que todos os pequenos sistemas acanhados e envelhecidos, se fundirão numa vasta síntese, abrangendo todos os reinos da ideia. Ciências, filosofias, religiões, divididas hoje, reunir-se-ão na luz e será então a vida, o esplendor do espírito, o reinado do Conhecimento

Nesse acordo, magnífico, as ciências fornecerão a precisão e o método na ordem dos factos; as filosofias, o rigor das suas deduções lógicas; a Poesia, a irradiação das suas luzes e a magia das suas cores; a Religião, juntar-lhes-á as qualidades do sentimento e a noção da estética elevada. Assim, se realizará a beleza na força e na unidade do pensamento. A alma orientar-se-á para os mais altos cimos, mantendo ao mesmo tempo, o equilíbrio de relação necessário para regular a marcha paralela e ritmada da inteligência e da consciência na sua ascensão, para a conquista do bem e da verdade

/… 

(i) O Professor Charles Richet assim o reconhece: “A Ciência nunca deixou de ser uma série de erros e aproximações, elevando-se constantemente para constantemente cair com rapidez tanto maior quanto mais elevado é o seu grau de adiantamento.” (Anais das Ciências Psíquicas, Janeiro de 1905, pág. 15.)
(ii) Ver a minha obra No Invisível, (passim). 
(iii) Ver Cristianismo e Espiritismo, cap. V. 
(iv) Cristianismo e Espiritismo (1ª parte, passim). 
(v) “Sir O. Lodge, reitor da Universidade de Birmingham, membro da Academia Real, vê nos estudos psíquicos o próximo advento da nova e mais livre religião (Annales des Sciences Psychiques, Dezembro de 1905, pág. 765.) Ver também Os fenómenos psíquicos, pág. 11, de Maxwell, advogado geral na Corte de Apelação de Paris. 
(vi) Ver: No Invisível - “Aparições e materializações de Espíritos”. 


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, I A evolução do pensamento, 2º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa

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