Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

| o grande enigma ~


Objecções e contradições

Sendo o problema divino o mais vasto, o mais profundo dos problemas, pois que abrange todos os outros, embalou teorias, sistemas sem-número, que correspondem a outros tantos graus de compreensão humana, a outros tantos estádios do pensamento na sua marcha para o absoluto.

Nesse domínio as contradições pululam. Cada religião explica Deus à sua maneira; cada teoria o descreve a seu modo. E de tudo isso resulta uma confusão, um caos inextricável. Quantas formas variadas da ideia de Deus, desde o fetiche do negro até ao Parabrahm dos hindus, até ao Acto puro de São Tomás! Dessa confusão os ateus têm tirado argumentos para negar a existência de Deus; os positivistas, para declará-lo “incognoscível”. Como remediar tal desordem? Como escapar a essas contradições? Da maneira mais simples. Basta nos elevarmos acima das teorias e dos sistemas, bastante alto, para ligá-las no seu conjunto e pelo que têm de comum. Basta elevarmo-nos até à grande Causa, na qual tudo se resume e tudo se explica.

estreiteza de vistas desnaturou, comprometeu a ideia de Deus. Suprimamos as barreiras, as peias, sistemas fechados, que se contradizem, se excluem e se combatem, substituindo-os pelas vistas largas das concepções superiores. A certa altura, a Ciência, a Filosofia e a Religião, até então divididas, opostas, hostis, sob as suas formas inferiores, se unem e se fundem numa potente síntese, que é a do moderno Espiritualismo. Assim se cumpre a lei da evolução das ideias. Depois da tese, temos a antítese. Tocamos na síntese, que resumirá todas as formas e crenças, e será a glória do vigésimo século tê-las estabelecido e formulado.

Examinemos rapidamente as objecções mais comuns. A mais frequente é a que consiste em dizer: Se Deus existe, se Ele é, como pretendeis, Bondade, Justiça, Amor, por quê o mal e o sofrimento reinam feitos senhores em torno dos seres? Deus é bom, e milhões sofrem na alma e na carne. Tudo é dor e aflição na vida das multidões. A iniquidade é soberana no nosso globo e a ardente luta pela existência faz, todos os dias, vítimas sem-número.

Conforme mostramos noutra parte, (*) o sofrimento é um meio poderoso de educação para as Almas, pois desenvolve a sensibilidade, que já é, por si mesma, um acréscimo de vida. Por vezes é uma forma de justiça, um correctivo aos nossos actos anteriores e longínquos.

O mal é a consequência da imperfeição humana. Se Deus tivesse feito só seres perfeitos, o mal não existiria. Mas então o Universo seria fixo, imobilizado na sua monótona perfeição. A magnífica ascensão das Almas, através do Infinito, seria suprimida de chofre. Nada mais a conquistar; nada mais a desejar! Ora, que seria uma perfeição sem méritos, sem esforços para obtê-la? Teria algum valor aos nossos olhos? Em resumo, o mal é o Menos evoluindo para o Mais, o Inferior para o Superior, a Alma para Deus.

Deus nos fez livres; daí o mal, a fase transitória da nossa ascensão. A liberdade é a condição necessária da variante na unidade universal. Sem isso, a monotonia teria feito um Universo insuportável. Deus nos deu a liberdade com essa impulsão de vida inicial, pela qual o ser evoluirá pelo seu próprio esforço, através dos espaços e dos tempos sem limites, sobre a escala das vidas sucessivas, até à superfície dos mundos que povoam a imensidade.

Emanamos de Deus, tal qual os nossos pensamentos emanam do nosso Espírito, sem fraccioná-lo, sem diminuí-lo. Livres e responsáveis, nos tornamos senhores e artífices dos nossos destinos. Mas, para desenvolver os germens e as forças que estão em nós, a luta é necessária, a luta contra a matéria, contra as paixões, contra tudo a que chamamos de mal.

Essa luta é dolorosa e os choques são numerosos. No entanto, pouco a pouco, a experiência se adquire a vontade se tempera, o bem se desprende do mal. Chega a hora em que a Alma triunfa das influências inferiores, se resgata e se eleva pela expiação e purificação até à vida bem-aventurada. Então, compreende, admira a sabedoria e a providência de Deus, que, fazendo dela o árbitro dos seus próprios destinos, dispôs todas as coisas de maneira a destas tirar a maior soma de felicidade final para cada ser.

A condição actual de todas as Almas é o resultado justo de suas existências passadas. Da mesma forma, numa existência presente, a nossa Alma tece dia-a-dia, os actos livres, a sorte que teremos no futuro.

Outras objecções se apresentam. Há uma que não podemos desprezar, porque constitui uma das questões capitais da Filosofia. Pergunta-se-nos:

Será Deus um ser pessoal ou é o ser universal, infinito?

Não pode ser ambos, porque – dizem – essas concepções são diferentes e se excluem mutuamente. Daí os dois grandes sistemas sobre Deus; o deísmo e o panteísmo. Na realidade, tal contribuição é apenas um erro de óptica do espírito humano, que não sabe compreender, nem a personalidade, nem o infinito.

A personalidade verdadeira é o eu, a inteligência, a vontade, a consciência. Nada impede concebê-la sem limites, isto é, infinita. Sendo Deus a perfeição, não pode ser limitado. Assim se conciliam duas noções, na aparência contraditória.

Outra coisa: Deus é incognoscível, como dizem os positivistas e, entre eles, Berthelot? É o abismo dos gnósticos, a Ísis velada dos templos do Egipto, o terrível e misterioso Santo dos Santos dos Hebreus, ou pode ser conhecido?

A resposta é fácil: Deus é incognoscível na sua essência, nas suas profundezas íntimas; mas revela-se em toda a sua obra, no grande livro aberto aos nossos olhos e no fundo de nós mesmos.

Insiste-se, ainda disseste, que o fim essencial da vida, de todas as nossas vidas, era entrar, cada vez mais, na comunhão universal, para melhor amar e melhor servir a Deus nos seus desígnios. Não podendo Deus ser conhecido na sua plenitude, como se poderia amar e servir o desconhecido?

Sem dúvida, replicaremos nós, não podemos conhecer Deus na sua essência, mas nós conhecemo-lo pelas suas leis admiráveis, pelo plano que traçou todas as existências e no qual brilham a sua sabedoria e a sua justiça. Para amar a Deus não é necessário separá-lo da sua obra; é preciso vê-lo na sua universalidade, na onda de vida e amor que derrama sobre todas as coisas. Deus não é desconhecido: é somente invisível.

A alma, o pensamento, o bem e a beleza moral são igualmente invisíveis. Entretanto, não devemos amá-los? E amá-los não será ainda amar a Deus – a sua origem e, ao mesmo tempo, o pensamento supremo, a beleza perfeita, o bem absoluto?

Não compreendemos, na sua essência, nenhum desses princípios; entretanto, sabemos que existem e que não podemos escapar à sua influência, dispensando-nos de lhes prestar culto. Se amarmos somente o que conhecemos e compreendemos com plenitude, o que amaríamos, afinal, limitados qual somos actualmente, nos marcos estreitos de nossa compreensão terrestre?

Aqueles que reclamam absolutamente uma definição poder-se-ia dizer que Deus é o Espírito puro, o Pensamento puro. Mas a ideia pura, na sua essência, não pode ser formulada sem, por isso mesmo, ser diminuída, alterada. Toda a fórmula é uma prisão. Encerrada no cárcere da palavra, o pensamento perde a sua irradiação, o seu brilho, quando não perde o seu sentido verdadeiro, completo. Empobrecido, deformado, torna-se assim sujeito à crítica e vê desvanecer-se o que nele havia de mais probante. Na vida do Espaço, o pensamento é uma imagem brilhante.

Comparado ao pensamento expresso por palavras humanas, é o que seria uma jovem resplendente de vida e de beleza, comparada à mesma, porém deitada num caixão, sob a forma rígida e gelada da morte.

Entretanto, apesar da nossa impotência em exprimi-la na sua extensão, a ideia de Deus impõe-se, dissemos, por ser indispensável à nossa vida. Acabamos de ver que o Bem, o Verdadeiro, o Belo, nos escapam na sua essência, porque são de natureza divina. A nossa própria inteligência é para nós incompreensível, precisamente porque encerra uma partícula divina que a dota de faculdades augustas.

Só penetrando o sistema da alma humana chegaremos um dia a resolver o enigma do Ser infinito. Deus está na criatura, e a criatura Nele. Deus é o grande foco de vida e de amor do qual cada Alma é uma centelha, ou antes, um foco ainda obscuro e velado que contém, em estado embrionário, todas as potências; a tal ponto que, se soubéssemos tudo quanto em nós existe, e as grandiosas obras que podemos realizar, transformaríamos o mundo: elevar-nos-íamos, de um salto, na senda imensa do progresso.

Para nos conhecermos, é mister, pois, estudar Deus, porque tudo que está em Deus está nos seres, pelo menos em estado de gérmen. Deus é o Espírito Universal que se exprime e se manifesta na Natureza, da qual o homem é a expressão mais alta.

Todos os homens devem chegar a essa compreensão de sua natureza superior; na ignorância dessa natureza e dos recursos que em nós dormitam é que está a causa de todas as provações, dos nossos desfalecimentos e das nossas quedas.

Eis por que a todos diremos: Elevemo-nos acima das querelas de escola, acima das discussões e das polémicas vãs. Elevemo-nos bastante alto para compreender que somos outra coisa mais do que uma roda na máquina cega do mundo: somos os filhos de Deus e, por isso, ligados estreitamente a Ele e à sua criação, destinados a um fim imenso, ao lado do qual tudo mais se torna secundário; esse fim é a entrada na santa harmonia dos seres e das coisas, que não se realizam senão em Deus e por Deus!

Elevemo-nos até lá, e sentiremos a potência que está em nós; compreenderemos o papel que somos solicitados a desempenhar na obra do progresso eterno. Lembremo-nos de que somos Espíritos imortais. As coisas da Terra são um degrau, um meio de educação, de transformação. Podemos perder neste mundo todos os bens terrestres. Que importa? O indeclinável, antes de tudo, é engrandecer, arrancar da sua grosseira ganga esse Espírito divino, esse deus interior que é, em todo o homem, a origem da sua grandeza, da sua felicidade no porvir. Eis o fim supremo da vida!

Concluamos: Deus é a grande Alma do Universo, o foco de onde emana toda a vida, toda a luz moral. Não podeis passar sem Deus, de igual modo que a Terra e todos os seres que vivem na sua superfície não podem dispensar o seu foco solar: Se o Sol se extinguir, de repente, que acontecerá? O nosso planeta rolará no vazio dos espaços, levando nessa correria a Humanidade deitada para sempre no seu sepulcro de gelo. Todas as coisas morrerão, o globo será uma necrópole imensa. Triste silêncio reinará nas grandes cidades adormecidas no seu último sono.

Pois bem! Deus é o Sol das Almas! Extingui a ideia de Deus, e imediatamente a morte moral se estenderá sobre o mundo. Precisamente porque a ideia de Deus está falseada, desnaturada por uns, desconhecida por muitos outros, é que a Humanidade actual erra no meio das tempestades, sem piloto, sem bússola, sem guia, presa da desordem, entregue a todas as aflições.

Levantar, engrandecer a ideia de Deus, desembaraçá-la das escórias em que as religiões e os sistemas a têm envolvido, tal é a missão do Espiritualismo moderno!

Se tantos homens são ainda incapazes de ver e compreender a harmonia suprema das leis, dos seres e das coisas, é que a Alma deles não entrou ainda, pelo senso íntimo, em comunicação com Deus, isto é, com os seus pensamentos divinos, que esclarecem o Universo e que são a luz imperecível do mundo.

Indagamos de nós mesmos, ao terminar, se conseguimos dar um resumo da ideia de Deus. A palavra humana é muito fraca, muito árida e extremamente fria para tratar de semelhante assunto. Só a própria harmonia, a grande sinfonia das esferas e a voz do Infinito poderiam esboçar e exprimir a lei universal.

Há coisas que, de tão profundas, só se sentem, não se descrevem. Deus, somente no seu amor sem limites, pode revelar-nos o seu sentido oculto. E é o que fará, se na nossa fé, na nossa ascensão para a Verdade, soubermos apresentar, Àquele que sonda os recônditos mais misteriosos das consciências, uma alma capaz de compreendê-lo, um coração digno de amá-lo.

/...
(*) Vide Depois da Morte, segunda parte; O Problema do Ser, do Destino e da Dor, caps. XVIII e XIX.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo / IX – Objecções e contradições (fim da primeira parte), 20º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 17 de dezembro de 2017

Victor Hugo e o invisível ~


Perguntas sobre o próprio eu

  A filosofia de todas as idades pergunta pela existência do Eu individual. Fizeram-se perguntas, certamente muitas técnicas, sobre este Eu que nos conforma como um Ser existente, perguntas que não têm chegado à carne viva do homem: existir nos braços da incerteza e sobre a obscuridade do nada.

  Eu sou um eu, tem-se dito; mas este não foi nunca real e objectivo, antes um eu académico, envernizado por complicados tecnicismos psicológicos, metafísicos e ontológicos. Um eu que ao sair do âmbito oficial se esfuma como realidade existencial, surgindo dela um Ser sem nenhuma relação com a realidade humana. Quer dizer, é um eu desvinculado do dramatismo da vida diária em cujas esferas se prova a veracidade espiritual do Ser.

  Falou-se de um eu superficial, baseado no conceito fisicalista da vida, uma vez que para a filosofia oficial o homem não possui profundidade espiritual nem existencial, esta o considera uma ''massa fisiológica" e um mecanismo sem mundo interior. Mas o pensamento tem apetências que se tornam imperativos em todos os níveis ideológicos. Estas apetências são causadas pela sede de verdade que existe no eu e se sobrepõem ao físico e corporal, porque nisso está a vida do homem e dos seus processos interiores e exteriores.

  Que é o eu? pergunta a filosofia, ao que se pode acrescentar: quem sou eu? Nestas perguntas se concentra a essência ontológica do Ser e do mundo. São duas perguntas que persistem nas investigações filosóficas. O que e o quem constituem o saber ontológico que perdura com muito valor num momento do homem em que tudo muda e se confunde.

  Afinal, existe o eu para "algo" ou é o resultado de uma cega casualidade? O eu é uma entidade com dimensões ainda desconhecidas ou só existe para entrar no nada?

  Dir-se-á que estas inquietudes foram experimentadas pela alma humana em todos os tempos do planeta. Mas aqui, pela sua urgência, pode peguntar-se: quem deu sobre elas uma resposta capaz de satisfazer a alma da humanidade? Quem demonstrou por bases experimentais que o eu é um Ser profundo com dimensões desconhecidas? Quem demonstrou que no eu físico pode estar o eu metafísico?

  Foi esta última sempre aceite teoricamente, o que nada representa perante o mundo material da inteligênciaAgora trata-se de uma demonstração material, da mesma carne do homem, de uma metafísica existencial e viva do eu. Pois bem, aspirar a esta demonstração não é estar no campo de uma "má filosofia", mas buscar o homem e a vida como realidades espirituais que se sobreponham a todos os conceitos niilistas do Ser.

  O eu, porém, sempre sedento de infinito, não se detém à direita nem à esquerda da filosofia. O seu Ser profundo se sobrepõe ao conceito de "massa fisiológica" para exprimir os seus brados existenciais. A consciência moderna não se aquietará perante suposições teóricas; se o subjectivo não se transforma em realidade prática e objectiva, o eu prosseguirá reclamando um saber que esteja de acordo com as suas profundidades ontológicasSeguirá reclamando "direitos espirituais", posto que intui que existe nele um Ser que luta por instalar-se como uma realidade no mundo. É como um novo Ser que é vida com disposições espirituais bem diferentes das do passado, ansioso de encarnar no histórico e conduzi-lo mediante um novo processo tanto material como espiritual.


A pré-existência como base existencial do eu

  Se o eu existe, é para a vida ou para a morte? Essa ideia de regresso que se agita nas profundezas do eu pode ser tomada como uma prova de sua perdurabilidade espiritual? Se o eu pressente que o seu nascimento é um regresso, isso nos leva a supor que possui um pré-existir e não apenas um existir presente. Intui que regressa porque possui, de facto, um pré-existir ou um tempo anterior ao actual. Sente que regressa porque já esteve em alguma parte, o que assinala que o seu presente existir se baseia em um pré-existir.

  O eu existe hoje porque existiu antes e existirá depois porque existe agora. E por esse encadeamento de pré-existências, existências e super-existências o eu se afirma sobre a base de um novo existir consciente e definitivo. Deste modo, o homem reconhecerá um eu existencial responsável pelo seu crescimento como personalidade espiritual, até alcançar o sentido palingenésico de seu próprio Ser.

  eu ao possuir uma pré-existência poderá projectar-se sobre o passado, o presente e o futuro até perceber o enlace do humano e do divino. Sem pré-existência, o eu não passa de um Ser limitado às relatividades do presente. Existe sim uma conexão com o passado e o futuro. A história possui para ele apenas uma face, que consegue perceber com o seu sentido de presente. Mas com o tempo pré-existente, o eu é um Ser comprometido com o histórico em razão de sua participação no tempo passado que, para a filosofia universitária, carece de vinculação com o eu do tempo presente. O eu está comprometido com o histórico por causa do seu estar no pré-histórico, como o estará, por sua permanência no histórico actual, com o supra-histórico e o futuro histórico.

  A pré-existência do eu é uma prolongação do Ser desde o antigo e, uma projecção para o novo. eu já foi ontem e será novamente amanhã por ser hoje. Como se vê, a ideia da pré-existência determina no eu um enlace dialéctico que esclarece o processo histórico e nos dá essa historiosofia cristã de que falou Nicolas Berdiaev.

  A ideia de regresso experimentada pelo eu é o resultado de sua natureza pré-existenteeu intui que volta de algum lugar porque o seu Ser provém de um passado que, à medida em que se actualiza na sua memória, recorda o seu pré-existir constituído por uma série de extractos existenciais. Do que se infere que o eu é uma sucessão de seres que passaram através de um tempo infinito. Esta sucessão de seres que constituem o eu actual é o que determina a segurança de sua pré-existência e dá fundamento à sua natureza imortal. O eu, em suma, é infinito por causa de seu pré-existir, já que sem ele não seria mais que uma máquina sem capacidade de recordar ou de intuir um regresso mediante a penetração dos seus extractos pré-existenciais.

  A imortalidade do eu tem a sua base na sua própria pré-existênciaNenhum eu pode ser e existir sem que nele exista uma acumulação de idades e de tempos, pois todo o eu é uma formação sucessiva de outros eus cujas imagens estão gravadas na sua memória histórica.Ser é uma teoria de eus que não se decompôs através do processo histórico em razão de uma acumulação de experiências existenciais.

  O eu perdura através do tempo histórico e avança para o seu próprio estado absoluto, ou seja, para a sua perdurabilidade imortal por causa de seu Ser pré-existencialO passado nele traz a intuição, que se traduz pela lembrança de "algo" que regressa para a sustentação do seu Ser imortal. Em suma, a pré-existência do eu é que assegura ao Ser "salvar-se'' do nada, desse nada que destrói tanto o passado como o presente e o futuro, simultaneamente.


O nascimento como um regresso do eu

  O eu existe não obstante as negações que pretendem destruí-lo. Há nele um Ser que existe para algo transcendental, como se penetrasse na realidade material para sobrevir um "existente corporal". Mas o eu não é um existente corporal; a sua existência, quando está no mais profundo de si mesmo, vislumbra ou pressente as novas representações existenciais.

  A isso se poderia objectar o seguinte: o eu nasce como todo o humano, por conseguinte está exposto ao finito e ao relativo; é o resultado de um nascimento fisiológico e é, por isso mesmo, um factor psíquico determinado por combinações fisioquímicas, o que o situaria num plano puramente material. Porque se tem acreditado sempre que tudo o que nasce está sujeito a deteriorar-se, à categoria das coisas finitas. Sem dúvida, a sua afirmação como Ser existencial tem numerosos recursos a seu favor; contudo, o mais decisivo é essa percepção em si mesmo de uma presença anterior no seu Ser actual. Essa presença faz pressentir ao eu que o seu nascimento não é um fenómeno fisiológico, mas um regresso, um caminho pelo qual vem avançando através de um tempo infinito.

  De facto, o eu se sente como um-ser-que-nas-ce, mas sabe que regressa ou que vem de alguma parte. O seu nascimento não anula a sua sede de imensidade; pelo contrário, sem deter-se frente ao que nele é do ponto de vista corporal, continua sentindo-se no seu Ser como ''algo" que regressa, que é alguém que se está a formar através de um mundo que dura pelo espaço e o tempo.

  O que se agita no eu profundo está a comover as bases do saber materialista. Pois, enquanto do fundo do eu surgirem ideias e novas apetências gnosiológicas, o saber resultará sempre inseguro, já que os seus dogmas só se converterão em realidades experimentais se se consegue demonstrar que o eu não é mais que uma "massa fisiológica" ou uma consequência psíquica segregada pelos lóbulos cerebrais.

  Nas profundidades do eu está o novo saber da existência do Espírito. E isto não é uma simples expressão, posto que existe uma dialéctica do eu pela qual a sua natureza e o seu Ser se compreendem como o regresso de alguém que quer fazer-se presente no cenário do mundo. Essa dialéctica do eu é que determinará uma nova realidade nos campos do conhecimento, ou seja, uma realidade mutante e progressiva cujas raízes se encontram nos tempos pretéritos do Ser. Será um eu que se manifestará no temporal para dizer: eu fui, logo sou e serei eternamente.

/…


Humberto Mariotti (i)Victor Hugo Espírita, Adendo | perguntas sobre o próprio eu, a pré-existência como base existencial do eu, o nascimento como um regresso do eu, 17º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

domingo, 3 de dezembro de 2017

~~~Párias em Redenção~~~


SUICÍDIO ABOMINÁVEL
(II)

  Carlo afastou-se lépido, rindo, cínico, e desceu à cavalariça, partindo em seguida.

  O dia húmido e sombrio estava carregado. Caíam bátegas e a trovoada ameaçadora fechava o tempo sobre a região, com relâmpagos e trovões.

  Carlo, resguardado em pesado capuz, esporeou o animal e enfrentou a tormenta. O vento e a chuva fustigavam-lhe o rosto. Desejava, porém, atingir a estrada real, a Via Cassia, para alcançar a próxima hospedaria, evadindo-se da herdade, quanto antes.

  Coriscos rasgavam a noite que se fez no dia e o cavaleiro, a galope, surge e desaparece na alameda que desemboca na estrada de acesso à via para Florença. Raios singram em muitas direcções, acompanhados de trovões quais gargalhadas de Fúrias. O intrépido viajante sonha com as ambições. Repentinamente, um raio atinge um imponente carvalho, que arde em célere clarão e se rasga ao meio. O animal relincha e, assustando-se, atira longe o cavalgador, que tomba, recebendo em cheio o tronco decepado pela faísca eléctrica. Um grito de horror escapa-lhe dos lábios e o imenso silêncio continua, somente interrompido pelo troar da tempestade violenta.

  No solar, estremecendo e gritando, aparvalhado pela visão fantástica da tormenta que lhe produz recordações desesperantes, Girólamo se enfurece. Os servos se apressam em socorrê-lo e Beatriz ordena que seja atado com cordas.

  De coração despedaçado e sentindo o horror da situação delicada, sufoca as lágrimas e as angústias, pensando no filho, e, acompanhada pela velha aia, entrega-se à desatrelada litania da oração.

  O vento ulula fora do solar estremece aos choques das forças desgovernadas da Natureza. As sombras invadem tudo, clareadas apenas nos espaços rápidos dos relâmpagos. Olhos fora das órbitas, o obsidiado, em subjugação total, luta nas amarras contra as entidades que agora se consubstanciam diante dele, em visões incessantes, alucinadoras. Tomando o aspecto tradicional das concepções satânicas, para dominá-lo mais adiante pelo pavor, o duque desencarnado aparece-lhe armado de tridente e investe, cruel. O demente grita, esbraveja, estorce-se nas grimpas afiadas, que parecem dilacerá-lo. A demência o aniquila e a voz soturna do vingador esbraveja no pandemónio mental em que se contorce o atormentado:

  – Confessa os crimes, antes que a morte te arrebate, usurpador de vidas e de bens. Pede perdão a Deus, antes que seja tarde demais!

  – Beatriz, Beatriz, por que me abandonaste? Beatriz, socorre-me! O meu tio aqui está, matando-me. Beatriz, Beatriz, salva-me…

  A senhora, ajoelhada com a ama, crava os olhos na imagem do Crucificado, presa à parede, e suplica a protecção divina:

  – Oh! Deus meu! Por que sofro tanto, Senhor? Piedade para ele, para todos nós! – desespera-se a Condessa…

  – Os demónios me despedaçam, Beatriz, – baldoa o enfermo, entre as cordas, atado ao leito. – Oh! desgraça, mil vezes desgraçado…

  – Coragem, Girólamo! – replica a esposa. – A tormenta logo passará. Mandarei alguém a Siena buscar socorro. Coragem!

  – Será tarde, muito tarde, muito tarde… (Exaure-se numa voz que se apaga, enrouquecida pela dor e pelo cansaço.)

  A noite avança e, conquanto a chuva amaine, o tempo continua carrancudo, pesado.

  O silêncio no solar traduz o torpor que de todos se apossa.

  O paciente, desfalecido, mergulha nas sombras desalentadoras do mundo espiritual inferior. Defronta-se com o tio, que o arrasta em espírito, aturdido, e fá-lo experimentar nefanda perseguição, implacável, que parece não terminar nunca… A sugestão perniciosa da sua voz, da sua mente corroída pelo monoideísmo do desforço, esmaga as últimas resistências e apaga os derradeiros lampejos de lucidez no jovem senense…

  O novo dia começa em brumas escuras, que cobrem a região.

  Pela manhã, os servos encontram o animal que conduzia Carlo, no pátio de entrada da herdade… Dado o alarme, saem-lhe em busca e a menos de um quilómetro do portão central deparam-no morto, debaixo da árvore tombada. Conduzem o cadáver ao solar e um mensageiro ruma a Siena, para informar da tragédia o Conde Castaldi, rogando-lhe a presença.

  O sepultamento é feito entre choros das pessoas da plebe, que ali se agasalham, amedrontadas. Tem-se a impressão de que as tragédias do passado recomeçam no burgo malsinado.

  Libertado das cordas que o maltratam, o Conde Girólamo tem o olhar distante, vazio e não participa de nada que acontece à sua volta.

  Logo após o enterro, quando os lacaios vêm assistir o amo, na noite que chega e a borrasca que anuncia repetir-se, ele se levanta e, apontando a ampla janela rasgada na direcção do céu pardo-cinzento, estremece, faz-se marmóreo e grita:

  – Tirem Carlo daqui… O desgraçado está em sangue, arrastado pelo meu tio. Socorro!...

  Os servos seguram-no e o conduzem ao leito. Ele debate-se e se acalma no sono ofegante da demência.

  Quando os Condes chegam, atendendo ao aviso da filha e ao seu pedido de socorro, a casa tem aspecto fúnebre.

  – Vimos dispostos a levar-te para Siena, custe-nos o custar. Levaremos também o nosso doente, que perdeu o uso da razão. Lá, talvez…

  Depois de inteirados por Beatriz dos acontecimentos da véspera, e cansados da viagem, vencidos todos pelas emoções sucessivas, recolhem-se cedo, para o necessário refazimento.

  A noite avança e a borrasca desaba.

  Girólamo desperta e, desvairado, e ouve Assunta, que o chama:

  – Vem, perdoei-te. Poderás fugir. Vem comigo. Vamos à recâmara…

  Teleguiado pela mente da comparsa desditosa, ergue-se do leito e quando se dispõe a segui-la escuta-a dizer:

  – A corda… Traze a corda. É necessário.

  O subjugado, olhos além das órbitas, cambaleante, no silêncio da noite clareada pelos relâmpagos e de quando em quando sacudida pelo ribombar dos trovões, adentra-se pela peça da ala esquerda. Ali estão: Lúcia e as crianças (*) a debaterem-se inermes sob o travesseiro de plumas, vigorosamente aplicado sobre cada uma. Ele ri, blasfema em surdina e Assunta impõe:

  – Faze um laço corrediço. Fugiremos daqui. Ninguém nos alcançará. Unir-nos-emos. Vem, apressa-te!

  Com as mãos nervosas, ele ata a ponta da corda em nó corrediço e lança-a por cima da trave de carvalho, na peça em sombra.

  – Outro nó, Girólamio. Traze a arca, a de cânfora, para mais perto… Sim, essa traze…

  Automaticamente, o jugulado obedece. Frio cortante o vence. As mãos estão geladas e o suor escorre-lhe abundante.

  – Sobe na arca; coloca a corda. Vem! Vem, eu te ordeno; vem!

  – Sim, obedeço, sim…

  – Salta! Arroja o corpo para fora! Agora!

  – Ai… iii… uughug…

  O grito surdo não foi ouvido.

  Girólamo suicidara-se.

  Num clarão mais forte do relâmpago, quando os lacaios acordaram assustados e não encontraram o amo, deram o alarme. Acenderam-se tocheiros e velas e saíram em busca. O alvoroço tomou conta da casa.

  – Na recâmara da ala esquerda – suplicou Beatriz – , pelo amor de Deus…

  Os servos e os Condes Castaldi trouxeram o corpo do inditoso cavaliere para a alcova e logo após desceram-no para a câmara ardente, onde fora erguido um catafalco. A bandeira que ele ostentava no palio cobria o ataúde. Mensageiros foram despachados em todas as direcções. O Bispo de Siena foi chamado às pressas.

  Após o desfalecimento demorado, Beatriz continuou inspirando cuidados.

  Apesar da hora avançada, os agregados e os aldeães das cercarias foram chamados a prantear o morto.

  Nas exéquias fúnebres, quando o cortejo se dirigia à capela mortuária para o sepultamento, o Bispo, realmente comovido, depois das palavras habituais, proferiu:

  – “Requiescat in pace.”

  Um calafrio percorreu os circunstantes e alguns tiveram a impressão de escutar estridente gargalhada.

  Possivelmente, pois eram o duque Dom Giovanni di Bicci di M. e Assunta, que zombavam quanto às possibilidades de o Conde Girólamo Cherubini di Bicci “ repousar em paz”…

  O dia nevoento e sombrio morreu numa débil fímbria bruxuleante no ocaso…

  O calendário assinalava 22 de Dezembro de 1753…

  Por exigência da viúva, a Condessa Beatriz di Castaldi Cherubini di Bicci, no Duomo de Siena, um ano depois, Sua Eminência Reverendíssima proferiu, entre júbilos generalizados:

  – “Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, eu te baptizo Conde Dom Carlo di Castaldi Cherubini di Bicci…”

  As invioláveis e inabordáveis Leis Divinas davam curso à Justiça, à Misericórdia e ao Amor de Nosso Pai.

/…
(*) Fenómeno de ideoplastia proporcionado pela consciência culpada.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 10 SUICÍDIO ABOMINÁVEL (2 de 2) 33º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo IX

Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte
(II)

  Uma sombra, porém, se estende sobre o Druidismo. A história ensina-nos que os sacrifícios humanos se cumpriam debaixo dos grandes carvalhos, o sangue corria sobre as mesas de pedra. Talvez esteja aí o erro capital, o lado imperfeito do culto, tão grande noutros pontos de vista. Não esqueçamos, entretanto, que todas as religiões, na sua origem, todos os cultos primitivos tinham o sacrifício do sangue.

  Ainda hoje, em cada manhã e em todos os ambientes do mundo católico o sangue do Cristo não jorra sobre o altar, pela voz do padre? Com efeito, perante os olhos dos crentes isso não é uma simples imagem, é o corpo e o sangue do grande crucificado que lhes são oferecidos. O dogma da presença real é, para eles, absoluto. Se alguma dúvida subsiste em certos espíritos, meditemos nestas palavras de Bossuet:

  “Por que os cristãos já não reconhecem o santo pavor de que eram tomados outrora perante o sacrifício? Será que ele cessou de ser terrível? Será que o sangue da nossa vítima já não corre a não ser sobre o Calvário? (*)

  Além do sacrifício sangrento da missa, é preciso ainda lembrar os suplícios e as fogueiras da inquisição, todas essas imolações que não são somente atentados à vida, mas também ultrajes à consciência?

  Esses sacrifícios não são mais odiosos do que aqueles dos druidas, onde somente figuravam criminosos e vítimas voluntárias? É preciso lembrar que os druidas eram magistrados e justiceiros. Os condenados à morte, os assassinos, eram oferecidos em holocaustos àquele que era para eles a fonte da justiça.

  Era um acto sagrado e, para torná-lo mais solene, para permitir ao condenado reflectir em si mesmo e preparar-se para o arrependimento, eles deixavam sempre um intervalo de cinco anos entre a sentença e a execução. Essas cerimónias expiatórias não seriam mais dignas do que as execuções dos nossos dias, onde vemos um povo, que pretende ser civilizado, passar as noites à volta das guilhotinas, atraído pelo chamariz de um espectáculo horrível e de impressões nocivas?

  Os sacrifícios voluntários entre os gauleses revestiam-se também de um carácter religioso. Os seus sentimentos profundos de imortalidade faziam com que se entregassem facilmente aos nossos antepassados. O homem oferecia-se como uma hóstia viva pela família, pela nação, pela salvação de todos. Mas todos esses sacrifícios caíram em desuso e tornaram-se muito raros no tempo de Vercingétorix. Em lugar de matar, contentavam-se em tirar algumas gotas de sangue dos fiéis estendidos sobre a pedra dos dolmens.

  Umas das características da filosofia céltica é a indiferença pela morte. Sob esse ponto de vista, a Gália era objecto de admiração para os povos pagãos, os quais não possuíam, no mesmo grau, a noção de imortalidade. Os nossos antepassados, não receando a morte, certos de viver no além-túmulo, estavam libertos de todo o medo.

  Em nenhuma crença se encontra um sentimento tão intenso do invisível e da solidariedade que une o mundo dos vivos ao dos espíritos. Todos aqueles que deixavam a Terra faziam-no carregados de mensagens destinadas aos mortos. Diodoro da Sicília deixou-nos esta passagem preciosa: “Nos funerais eles depositavam as cartas escritas aos mortos, pelos seus parentes, para que elas lhes fossem transmitidas”. A comunicação dos dois mundos era coisa comum. Pomponius Mela, Valério Máximo e todos os autores latinos que nós citamos dizem que entre os gauleses “se emprestava um valor para ser reembolsado no outro mundo”.

  Se, como no exemplo dos nossos ancestrais, consideramos a morte como um véu, uma simples cortina que pende sobre o caminho que percorremos, véu de grande efeito para o nosso olhar, que ele detém, mas impotente para impedir a nossa marcha que não pára; se compreendemos que só se trata de abandonar esse corpo usado para nos encontrarmos no nosso manto fluídico permanente, essa morte, tão temível para aqueles que nela vêem o aniquilamento, nada teria de espantoso para nós.

  Os druidas, dizíamos, tinham um amplo conhecimento da pluralidade dos mundos. A sua fé na imortalidade lhes apresentava as almas, libertas dos liames terrestres, percorrendo os espaços, reunindo os amigos, os parentes que partiram antes delas, visitando com eles os arquipélagos estelares, as esferas inumeráveis onde desabrocham a vida, a luz e a felicidade.

  Que espectáculos, que maravilhas representam para os nossos olhos esses mundos longínquos, que variedade de sensações que se podem tirar desses universos! E essas almas prosseguem a sua viagem na imensidade, até que, submetidas à lei eterna, retomam órgãos novos, se fixam sobre um desses mundos para cooperar, pelo trabalho, para o seu adiantamento, para o seu progresso. Perante esses horizontes imensos, como a nossa Terra fica pequena! E, diante de tais perspectivas, pode temer-se a morte?

Os gauleses não conheciam, então, os infernos sinistros nem os paraísos de imobilidade. As vidas de além-túmulo eram, para eles, repletas de actividade, fecundadas por uma faina constante, vidas onde a personalidade e a liberdade do ser se desenvolviam e se aperfeiçoavam incessantemente.

É isso que diz Lucano para os druidas, no primeiro canto de A Farsália:

“Para vós, as sombras não estão enterradas nos reinos sombrios de Plutão, mas a alma voa para animar outros membros em mundos novos. A morte nada mais é do que o meio de uma longa vida. Felizes são os povos que não conhecem o medo da morte. Daí o seu heroísmo no seio das disputas sangrentas, o seu desprezo pela morte.”

  Horácio definia a Gália nestes termos: A região onde não se sofre o terror da morte.

  Não haveria um contraste chocante entre esta crença máscula e poderosa e a ideia da eternidade dos suplícios ou daquela, não menos importuna, do aniquilamento absoluto? A fé na sobrevivência era a essência do Druidismo, e deste ponto de vista decorria uma ordem política e social fundada nos princípios de igualdade, de liberdade moral.

  Essa mesma fé inspirava também as práticas, as cerimónias fúnebres, tão diferentes das nossas. Nós, modernos, temos pelo nosso corpo uma complacência infinita; os gauleses consideravam os cadáveres como ferramentas inaptas, apressavam-se em dar-lhes fim. Frequentemente eles queimavam os corpos, recolhendo as cinzas em urnas. Nós estendemos a credulidade até crer, com o Catolicismo, que a nossa alma está ligada a esses resíduos e que um dia ela ressuscitará com eles!

  Mas o tempo zomba da nossa cegueira e sejam os nossos restos enterrados sob o mármore ou sob a pedra, sempre chega uma hora onde, pó, eles retornam ao pó, onde a grande lei cíclica dispersa os seus átomos.

  Um dia que está próximo, quando estivermos mais esclarecidos sobre os nossos destinos, nós não suportaremos mais esse aparato e esses cantos lúgubres, todas essas manifestações de um culto que responde tão pouco à realidade das coisas.

  Penetrados, como os nossos antepassados, pela ideia de que a nossa vida é infinita, de que ela se renova incessantemente em diversos meios, nós veremos na morte somente uma transformação necessária, uma das fases da existência do progresso.

  É dos gauleses que nos vem a comemoração dos mortos, essa festa do dia dois de Novembro que caracteriza o nosso povo entre todos. Só que, em vez de comemorar, como nós, nos cemitérios, entre túmulos, era no lar que eles celebravam a lembrança dos amigos afastados, mas não perdidos, que eles evocavam a memória dos espíritos amados que algumas vezes se manifestavam por meio das druidisas e dos bardos inspirados.

  Henri Martin, na sua Histoire de France, volume I, página 71, assim se expressa:

  “Tudo o que se relaciona com a doutrina da morte e do renascimento periódico do mundo e de todos os seres parece estar concentrado na crença e nos ritos do primeiro de Novembro.

  A noite cheia de mistérios que o Druidismo legou ao Cristianismo e que o dobre de finados (i) anuncia, ainda hoje, a todos os povos católicos esquecidos das origens desta antiga comemoração. Cada uma das grandes regiões do mundo galo-kímrico tinha um centro ou ambiente sagrado a cuja jurisdição correspondiam todas as partes do território confederado. Nesse centro ardia um fogo perpétuo que era chamado de “fogo-pai”.

  Na noite de primeiro de Novembro, conforme as tradições irlandesas, os druidas se reuniam em volta do “fogo-pai”, guardado por um pontífice forjador, e o extinguiam. A este sinal, pouco a pouco, se apagavam todos os fogos; por toda a parte reinava um silêncio de morte, a natureza inteira parecia mergulhada numa noite primitiva. De repente, o fogo brilhava de novo sobre a montanha santa e gritos de alegria rebentavam de todos os lados. A chama cedida pelo “fogo-pai” corria de foco em foco, de uma ponta à outra, e reanimava a vida em toda a parte.”

/…
(*) Citado por Jean Reynaud (i) em L’Esprit de la Gaule.


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo IX Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte (2 de 3) 30º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

domingo, 5 de novembro de 2017

o grande desconhecido ~


VIII – Espiritismo e Psicologia |

Estamos na Era Psicológica, sob o signo avançado da Psi, a letra grega que designa os fenómenos parapsicológicos. Até 1930 os críticos do Espiritismo tentavam explicar os processos mediúnicos por hipóteses psicológicas. Depois dessa data, com as pesquisas de Rhine e da sua equipa, o socorro inesperado da Parapsicologia forneceu novas armas aos negadores. Tivemos o espectáculo de uma estranha euforia nos meios intelectuais: os homens de cultura proclamavam com entusiasmo a absoluta nulidade destes fenómenos. Não eram mais do que pó que se reverte ao pó. Isso era suficiente para mostrar que a consciência mundial estava muito pesada. Mas dez anos depois das difíceis investigações iniciais da Universidade de Duke, as pesquisas tomaram um ritmo acelerado e Rhine anunciou as suas absurdas descobertas: o pensamento não é físico; há no homem um conteúdo extrafísico; a mente sobrevive à morte do corpo; a percepção extra-sensorial supera todas as barreiras físicas. Vassiliev, na URSS, dispôs-se a desfazer essas balelas burguesas e fracassou no seu intento. Soal e Carington, da Universidade de Londres e Cambridge, afirmaram a sobrevivência da alma e tiveram o desplante de obter sucesso com as experiências de voz-directa (psicofonia), fenómeno em que uma entidade espiritual falava directamente, fazendo vibrar a sua voz no ar. Price, também da Universidade de Londres, teve a audácia de explicar as assombrações londrinas como manifestações de espíritos.

A última esperança das libélulas humanas, dos homens-pó, apagava-se como chama de fogo-de-artifício nas mãos dos negadores. Surgiram então os mágicos de palco e os politiqueiros de feira, sacerdotes broncos e frades ignorantes, para combater com os seus truques ingénuos aquilo mesmo que eles pregavam e que era a base do seu profissionalismo religioso: a sobrevivência da criatura humana. Esse atrevimento causou mal-estar no próprio clero, que via o seu prestígio cultural abalado perante as elites culturais. O que esses mágicos de palco semearam no mundo, através da televisão, jornais, revistas, livros, conferências e cursos pseudocientíficos, tudo isso muito rendoso financeiramente, constitui o lixo subcultural do Século XX e explica a razão das contradições espantosas da nossa época. A miséria mental desses mágicos de picadeiro encontrava ressonância nas camadas ignorantes do povo e, uma refracção espantosa, projectava a imagem da miséria cultural de figuras emplacadas nos meios universitários e eclesiásticos para o trânsito nas vias obscuras do submundo cultural. Tudo servia, como sempre, no vale-tudo da luta contra o Espiritismo. Surgiu um clarão nas trevas: a descoberta do corpo bioplásmico do homem e a prova científica da sua sobrevivência, obtida pelos cientistas soviéticos em pesquisas biofísicas na Universidade de Kirov. Na fortaleza ideológica do Materialismo Científico no mundo havia sido descoberta a realidade do corpo espiritual da tradição cristã, o perispírito da terminologia espírita, que o Apóstolo Paulo chamara com ênfase de corpo da ressurreição. A única medida possível contra isso foi logo tomada pelo oficialismo soviético, negando validade à descoberta oficialmente realizada e sustando a divulgação de novas informações a respeito. Esse contragolpe só teve, naturalmente, efeito político. Não se podia impedir o avanço irrefreável das Ciências, mas a censura soviética foi bem recebida pelos homens-pó da vacilante cultura ocidental e fez-se o silêncio desejado sobre a mais importante conquista científica do século. Os mágicos de picadeiro, jejunos em ciências, desertores da razão, intoxicados de incoerência, cantaram de galo nas brigas da ignorância.

Apesar dessa nova euforia dos adeptos do nada, esse conceito vazio, segundo Kant, as pesquisas parapsicológicas se intensificaram na URSS e em toda a órbita soviética. Na Roménia, para evitar complicações políticas aos investigadores do paranormal, forjou-se um novo nome para a Ciência de Rhine, que passou a chamar-se Psicotrónica. O nome rebarbativo funciona como cobertura táctica para os pesquisadores. Sentados comodamente no trono do psiquismoos psicotrónicos disfarçam o seu interesse de sobreviver após a morte, imitando a táctica do Prof. Raikov na Universidade de Moscovo, para pesquisar a reencarnação como simples fenómeno psicológico. Bastam essas manobras anticientíficas para provar quanto estava certo Léon Denis, numa conferência em Paris, na década de 1920, sobre o tema A Missão do Século XX. O Druida da Lorena, como Conan Doyle o chamava, previu que o nosso século seria o da vitória do Espiritismo, com a comprovação científica dos seus princípios. Aí estão as provas obtidas através de pesquisas científico-tecnológicas, ao gosto do nosso tempo. Filosófica, científica e religiosamente o Espiritismo encontrou, no nosso século, as comprovações de sua veracidade, não produzidas pelos adeptos, mas pelos seus mais poderosos adversários.

No campo psicológico, o desenvolvimento da Psicanálise, a partir de Freud, atingiu com Jung o momento crítico da revelação dos arquétipos, só possíveis nas dimensões do espírito, e por fim, a teoria das coincidências significativas (contribuição junguiana à Parapsicologia) as confissões mediúnicas do grande psicólogo nas suas memórias e a sua confiança na descoberta científica da alma. Em 1944 Jung encerrou o seu livro a respeito declarando: “Estou convencido do estudo científico da alma como ciência do futuro. A Parapsicologia é a mais jovem das Ciências Humanas e o seu desenvolvimento não foi ainda além dos primeiros passos.”

Gestalt ou Psicologia da Forma, no campo da Psicologia da Percepção, revelou o princípio de unidade formal em que se destaca o fenómeno da pregnância, e mostrou que não vivemos segundo a realidade concreta do mundo, mas segundo a nossa ilusão psicológica, dessa realidade, confirmando o princípio espírita das aparências significativas. Da conjugação dialéctica dessas duas correntes fundamentais da Psicologia contemporânea surgiu a síntese da concepção parapsicológica do homem, com o domínio do inconsciente na interpretação das percepções sensoriais, abrindo-se para as dimensões da percepção extra-sensorial. A descoberta científica do perispírito confirmou essa tese no plano objectivo, revelando de novo (em termos espíritas) a fonte secreta das captações e manifestações paranormais. O plasma físico do perispírito (corpo semimaterial, segundo Kardecé dirigido nas manifestações pelos elementos não-físicos do corpo espiritual.

Os teóricos desavisados do inconsciente, como os da escrita automática e dos fenómenos físicos da mediunidade, esquecem-se (ou nunca tomaram conhecimento) dos estudos e das pesquisas de KardecAksakof e Bozzano sobre o animismo ou manifestações da própria alma ou espírito do médium nas manifestações mediúnicas. Formulam, assim, hipóteses superadas logo no início das pesquisas espíritas, quando o próprio Freud ainda não tinha nascido.

Kardec foi também o primeiro a notar as interferências anímicas nas manifestações, por influência sugestiva e natural das lembranças antigas ou recentes do médium. Essas infiltrações (que acontecem também em plena vigília de todos nós), decorrem da lei de associação de ideias, mas são facilmente identificáveis pelos pesquisadores e as pessoas experimentadas na prática mediúnicaOchorowicz, por exemplo, chegou ao cúmulo, nas suas experiências de materialização com a médium Stanislawa, de considerar a entidade que se materializava como desdobramento material da médium. Chamava o espírito materializado de Stanislawa II. Levou, assim, a manifestação do animismo ao extremo de uma suposta divisão do organismo da médium em dois corpos diferentes. Não obstante, Stanislawa II era bem diferenciada da médium, tanto física como psicologicamente. Muitos absurdos dessa espécie foram cometidos na pesquisa espírita por cientistas rigorosos que se viam aturdidos com o acontecimento dos factos. Os psicólogos actuais, que pretendam opinar sobre questões espíritas, deviam ter a honestidade de primeiro estudar a Doutrina e a sua História, para não incidirem nas tolices do passado, já há muito superadas, e não cometerem o crime de considerar como tolos, ingénuos ou farsantes os maiores cientistas do século passado que trataram do assunto a sério, com a maior gravidade. Por outro lado, os espíritas devem cuidar mais de sua formação doutrinária, para não se perturbarem com a repetição de papagaiadas seculares contra a doutrina. Alfred Russell Wallace, adversário de Darwin, estudando no século passado as relações do Espiritismo com a Psicologia, declarou que todas as escolas psicológicas não eram mais do que formas de uma psicologia elementar. O trecho de Jung que reproduzimos acima confirma essa posição de Wallace nos nossos dias. Qual o inexperiente estudante de Psicologia actual que se atreve a contestar esses dois gigantes?

/…


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, VIII – Espiritismo e Psicologia, 9º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Deus na Natureza ~


A Vida ~ Circulação da Matéria ~

   O poder que rege os astros e desata os esplendores de sua riqueza na imensidão dos céus; a força que regula a construção de minerais e plantas, na Terra; a ordem que espalha a harmonia no mundo, vão apresentar-se-nos agora sob um outro aspecto, dando-nos testemunho não menos irresistível do princípio inteligente que preside aos nossos destinos.

 Enquanto o olhar penetrante do telescópio percorre os espaços infinitos, a visão analítica do microscópio visita os habitáculos minudenciosos da vida na superfície da Terra.

  Aqui, já não é apenas a grandeza e o carácter formidando da energia que nos vão falar, mas, antes, o engenho, a beleza do plano, a delicadeza de sua execução e, sobretudo, a sabedoria sobre-humana que domina a matéria e a molda às leis de uma vontade omnipotente.

 Quando penetramos com os olhos da Ciência o espectáculo do mundo, toda a Natureza nos aparece à feição de imenso dinamismo, em cujo seio se associam ou se transformam as forças extraordinárias da Física e da Química.

  Fenómenos efémeros, que ao vulgo parecem isolados, apresentam-se-nos entramados numa rede única, cujos fios são mantidos por uma força misteriosa.

 O mundo envolve-se em grande unidade, nenhum elemento está isolado, nem na extensão presente, nem na Histórica.

 São irmãos a luz e o calor, quer se nos mostrem juntos, numa união indefectível, quer mutuamente se façam o sacrifício de sua própria existência. A afinidade e o magnetismo casam-se nos mistérios do mundo mineral. A ponta inquieta do íman procura incessantemente o pólo. A planta eleva-se apaixonada para a luz. A Terra volta para o Sol o seu rosto matinal. Estende o crepúsculo o seu manto sobre a noite e os tépidos perfumes dos vales aquecem os pés gelados da noite. Aproximando-se a aurora, o beijo do orvalho deixa o seu traço na corola entreaberta das flores. Átomos e mundos são levados por um só impulso universal. Na atmosfera mil ondulações se entrecruzam, mil variedades de força se combinam. Noite e dia, tarde e manhã, em todas as estações, o mesmo movimento simultaneamente insensível e grandioso, que a nossa vista não apreende e que, aberrante de qualquer avaliação numérica (i), se vai exercendo no laboratório do cosmos. Pois o resultado desse movimento é a Vida.

  Fora deste resultado, o mundo só oferece uma atracção medíocre aos espíritos curiosos. É pelo aspecto ou pelas sensações da vida que o ser pensante se liga à Natureza. Se a contemplação dos céus, de noites silenciosas, nos causa uma tristeza indefinível; se o aspecto de vastos desertos calcinados por um sol ardente nos deixam impassíveis; se o estudo das mais extraordinárias combinações químicas, operadas numa retorta, nos impressiona menos intimamente do que a visão de um pássaro no seu ninho, ou ainda a de uma violeta vicejando humildemente junto de um tronco, é porque essas manifestações não revelam uma vida imediata. A nossa alma é sobretudo acessível às impressões provindas de seres viventes como nós e, de entre estes, os que mais se aproximam da nossa natureza. O timbre de uma voz amada tem maior ressonância no nosso coração do que o ribombar de um trovão. Um raio do olhar eleito penetra-nos mais fundo do que um raio de Sol. Um sorriso adorado tem sempre maior encanto que a mais encantadora das paisagens. No colo, nos braços, nos cabelos da mulher idolatrada, não há diamantes nem safiras, esmeraldas e pérolas, cujo brilho se não degrade ao de simples pedras decorativas. É que neste caso, sobretudo, a vida aparece-nos sob a sua mais bela e mais esquisita manifestação terrestre, pois que ela – a vida – é bem verdadeiramente a grande atracção da Natureza.

  Mas, a característica que mais vivamente impressiona o observador, no conjunto da vida terrestre, é a lei geral que preside à vida do Universo. À primeira vista, afigura-se-nos que todos os seres estão isolados. O abeto que colma os cimos alpestres parece nada ter de comum com a lebre que corre nas planuras. Certo que a rosa dos nossos jardins não conhece o leão dos desertos. A águia e o condor dos planaltos asiáticos jamais provaram o fruto dos nossos pomares. O trigo e a vinha, em nada parece ligarem-se à vida dos peixes. E se nos cingirmos a divisões menos marcantes, ninguém suspeitará qualquer relação imediata entre a vida do homem e a do vegetal que matiza os campos e as florestas.

  E contudo, a verdadeira realidade é que a vida de todos os seres terrícolas homens, animais, plantas - é uma e única, sujeita a um mesmo sistema, tendo por ambiente o ar e por base o solo. E essa vida universal outra coisa não é senão uma permuta constante de matéria. Todos os seres se formam das mesmas moléculas, a passarem sucessiva e indiferentemente de uns aos outros, de sorte que nenhum ser dispõe de um corpo propriamente seu. Pela respiração e pela alimentação, nós absorvemos, cada dia, uma certa porção de alimentos. Pela digestão, pelas secreções e excreções, perdemos outra determinada porção de alimentos. Assim, se renova o corpo e, depois de algum tempo, já não possuímos um só grama do corpo material de antes. A sua renovação foi total, completa. Mediante essa permuta é que se entretém a vida. Enquanto o movimento renovador se opera em nós, a mesma coisa se dá com os animais e as plantas. Os milhões, os biliões de seres viventes na superfície do globo mantêm-se, portanto, em permuta constante dos seus organismos. O átomo de oxigénio, que agora estás respirando, foi ontem, possivelmente, expirado por alguma das árvores que orlam o bosque, além. O átomo de hidrogénio que, neste momento, humedece a pupila vigilante do leão do deserto, será o mesmo que, não há muito, molhava os lábios da mais pudica donzela da austera Albion. O átomo de carbono que neste momento arde no meu pulmão, ardeu talvez na candeia que serviu a Newton para as suas experiências de óptica; e as fibras mais preciosas do cérebro de Newton talvez se encontrem, agora, na concha de uma ostra ou numa dessas miríades de animálculos microscópicos, que povoam os mares fosforescentes. O átomo de carbono que se escapa, no momento, da combustão do nosso charuto, terá talvez saído, há alguns anos, do túmulo de Cristóvão Colombo, que demora, como sabes, na catedral de Havana. Toda a vida não passa de uma constante permuta de elementos materiais. Fisicamente falando, nós nada possuímos de nós mesmos. Só o ser pensante é o nosso eu. Só ele é que nos constitui verdadeira, imutavelmente. Quanto à substância que nos forma o cérebro, os nervos, os músculos, os ossos, os membros, a carne, essa não a retemos; vai, vem, passa de um ser ao outro. Sem metáfora, podemos dizer que as plantas são as nossas raízes, pelas quais extraímos dos campos a albumina do sangue, o cálcio para os ossos. O oxigénio de sua respiração nos dá vigor e beleza, assim como, reciprocamente, o ácido carbónico que restituímos à atmosfera vai cobrir de verdura os vales e as colinas.

 Quando se tem a convicção profunda dessa permuta universal da matéria, que irmana, do ponto de vista da composição orgânica, o feto e o pássaro, o peixe e a plaga, o homem e a fera, considera-se a Natureza sob a impressão da grande unidade que preside à marcha das coisas. Ela, a Natureza, se nos apresenta, então, completamente transfigurada e não deixa de ser com um interesse mais íntimo que encaramos o sistema geral da vida planetária. A. de Humboldt traçou a sua fisionomia num esboço amplo, que tem o mérito de reivindicar considerações especiais a respeito. “Quando o homem interroga com argúcia penetrante a Natureza – diz ele (ii) – ou quando mede, na sua imaginação, os vastos espaços da criação orgânica, de todas as emoções experimentadas e a mais poderosa e profunda é a da plenitude da vida, universalmente difundida. Por toda a parte, até nos pólos congelados, o ar repercute o canto das aves e o zumbido dos insectos.

  “A vida transpira, não somente nas camadas inferiores da atmosfera, onde flutuam pesados vapores, mas, também, nas regiões serenas, eterizadas. Todos quantos remontaram, quer as cumeadas da cordilheira Andina, quer os píncaros do Monte Branco debruçados sobre o lago de Genebra, jamais deixaram de aí encontrar seres animados. No Chimborazo, e numa altitude excedente de 2600 metros ao pináculo do Etna, vimos borboletas e outros insectos alados. Mesmo supondo que houvessem sido levados por correntes aéreas, e que lá errassem como estrangeiros, naquelas paragens a que só o ardente desejo de conhecer conduz os homens, a sua presença atesta, todavia, que, mais flexível, a organização animal resiste além dos limites traçados à vida vegetal. Muitas vezes vimos o rei dos abutres – o condor – planar acima das nossas cabeças, em altitudes excedentes aos picos nevados dos Pireneus, e até mesmo dos indianos. O possante carnívoro alado era, naturalmente, atraído pelos sedosos vigonhos, que às manadas procuravam aquelas pastagens coalhadas de neve.”

  Esta vida que vemos difundida, em todas as camadas atmosféricas, não é mais que pálida imagem da vida mais compacta, que o microscópio nos revela. Os ventos arrebatam, à superfície das águas em evaporação, turbilhões de animálculos invisíveis, imóveis e com todas as aparências de morte; seres que flutuam no ar, até que as orvalhadas os devolvam ao solo nutriz, que lhes dissolve o invólucro e, graças provavelmente ao oxigénio sempre contido na água, comunica-lhes aos órgãos uma nova irritabilidade. Nuvens de microrganismos cruzam as regiões aéreas do Atlântico e carreiam a vida de um ao outro continente.

  Com o autor de Cosmos, podemos acrescentar que, independentemente dessas existências, a atmosfera também contém inumeráveis germes de vida futura, óvulos de insectos e de plantas, que, sustentados por coroas de pêlos ou de plumas, garram para as longas peregrinações do Outono. O pólen fecundante que as flores masculinas semeiam nas espécies de sexo extremado, é também, ele próprio, levado pelos ventos e por insectos alados através de continentes e mares, às plantas femininas que vivem em solidão. Onde quer que o observador da Natureza mergulhe os olhos, aí encontrará vidas, ou um germe pronto a recebê-la.

  As formas orgânicas penetram no seio da Terra a grandes profundidades, por toda a parte as águas se espalham e infiltram, seja em interstícios formados pela Natureza, ou feitos pela mão do homem.

  Ninguém poderia dizer com segurança qual o ambiente em que a vida se difundiu com maior profusão. De facto, ela repleta os oceanos, das zonas tropicais aos gelos polares; o ar se povoa de germes invisíveis e o solo é sulcado por miríades de espécies, quer animais, quer vegetais. Estes incessantemente procuram dispor, mediante combinações harmoniosas, da matéria bruta do solo, como que tendo a função de preparar e misturar, por virtude de sua energia vital, as substâncias que, após inumeráveis modificações, hão de ser elevadas ao estado de fibras nervosas.

 Abrangendo no mesmo olhar a camada vegetal que reveste o solo, depara-se-nos em plenitude a vida animal, nutrida e conservada pelas plantas.

  Por intermédio do ar é que se operam essas transformações incessantes, universais, e não por outro meio que não esse, os elementos podem transitar de um corpo ao outro. Proposição é esta, tão exacta, que os fisiologistas há muito repetem que todo o ser vivo é produto do ar organizado. Como se opera essa organização? A partir de Lavoisier, sabemos que a respiração do homem e dos animais é acto análogo às combustões mediante as quais nos aquecemos e aclaramos. Insistamos um tanto neste ponto. A respiração estabelece uma solidariedade universal entre os homens, animais e plantas. Ela é resultante da união do oxigénio com o carbono e o hidrogénio dos alimentos, tanto quanto a combustão resulta da união desse mesmo oxigénio com o hidrogénio e o carbono da vela, da madeira, ou combustível qualquer. A respiração verifica-se sob a influência da vida, enquanto a combustão, propriamente dita, se opera sob a influência de um calor intenso. Um e o outro actos têm por fim produzir calor. É o calor desprendido da nossa respiração que entretém no corpo a temperatura de 37 graus, necessária à manutenção da vida.

  Lavoisier e Lieb demonstraram, há muito tempo, que todo o animal é um foco e todo o alimento um combustível. Se a respiração não se acompanha, como a combustão, de claridades incandescentes, é por ser uma combustão lenta, menos activa. Mas, por muito lenta que seja equivale, contudo, à de uma dose assaz forte de carbono. Um homem queima 10 a 12 gramas de carbono por hora, ou 250 por dia, mais ou menos, além de uma certa quantidade de hidrogénio.

  A combustão e a respiração viciam o ar destruindo-lhe o elemento salutífero – o oxigénio, substituindo-o por um gás mefítico – o ácido carbónico. Esta e outras causas espalham na atmosfera, de maneira constante, esse elemento insalubre. Experiências feitas com o vapor de água condensada nas janelas dos teatros de Paris, patentearam uma combinação particularmente mortal.

  A raça humana retira do ar, anualmente, 160 biliões de metros cúbicos de oxigénio e os permuta por igual volume de ácido carbónico. A respiração dos animais quadruplica o resultado. Só a hulha que se extrai do solo fornece mais ou menos 100 biliões de metros cúbicos de ácido carbónico, ao mesmo tempo que outros combustíveis aumentam consideravelmente essa cifra. Junte-se-lhe ainda o produto das decomposições e considere-se que, a despeito, esse gás não se encontra no ar atmosférico senão na proporção diminuta de 4 a 5 litros por 100 hectolitros. O ácido carbónico é solúvel na água, a chuva o dissolve e carreia nas suas bátegas, o transporta aos rios, leva-o enfim aos oceanos. Aí, ele une-se à cal e temos o carbonato de cal, as pedras calcáreas, mármore, alabastro, ónix, polipeiros, etc.

  Os vegetais, a seu turno, preenchem, em escala imensa, função inversa à respiração dos animais, essencialíssima à harmonia da Natureza, pois não somente fixa o hidrogénio da água e subtrai da atmosfera o ácido carbónico, como lhe restitui o oxigénio. (Uma folha de nenúfar dá, em 10 horas, 15 unidades de oxigénio, proporcionais ao seu volume.)

  A que transformações submetem os vegetais o carbono, o hidrogénio, o azoto, que eles absorvem do ar? É toda uma produção variada. Conjugando cinco moléculas de carbono e quatro de hidrogénio, a Natureza forma, no citrão e no salgueiro, duas essências que, diversas radicalmente em odorância, provêm da mesma composição. Frequentemente, a Natureza junta a estes dois elementos o oxigénio. Assim é que solda doze moléculas de carbono e dez de hidrogénio e oxigénio, formando, a seu prazer, seja a madeira, seja a batata. Outras vezes, o seu trabalho é mais complexo e reúne os quatro elementos: carbono, hidrogénio, oxigénio e azoto, originando os mais diferentes produtos, tais como o trigo – precioso alimento – e a estricnina – activíssimo tóxico.

  Como explicar, por exemplo, juntando um equivalente de água à substância característica da madeira, a celulose (C12H10O10), a Natureza nos dê o açúcar? Sínteses maravilhosas, a Natureza as produz silenciosamente, ao influxo da vida!

  O reino vegetal é uma usina imensa. Sob a acção do calor solar, todas as roldanas entram a movimentar-se. A exemplo do mecânico que nutre a sua máquina, a Natureza renova o combustível e os princípios do ar, e estes se transformam em madeira ou amido, em açúcar ou veneno, que constituem a polpa saborosa do fruto, o perfume subtil das flores, o rendilhado das folhas, a coriácea tessitura dos troncos.

  Os animais nutrem-se dos vegetais, gaseificam, por assim dizer, o ar solidificado e o devolvem à atmosfera, onde ele recomeça o ciclo das transformações que, graças a ele – o ar – agente primaz da vida, elo universal, jamais se interrompem.

  A comparação que Liebig (iii) foi o primeiro a fazer, da combustão respiratória do animal com a dos combustíveis de uma fornalha, só é exacta se fizermos uma ideia material do fogo nesse aparelho. No animal, todo o corpo arde lentamente, o que não se dá com a fornalha, que não arde. Na retorta humana, continente e conteúdo queimam juntos e, assim, é mais justo tomarmos a vela como elemento comparativo.

 O calor é o regulador da vida. Descartes antecipara-se aos progressos da experimentação escrevendo este significativo conceito: “Importa não conceber nas máquinas humanas outra alma vegetativa nem sensitiva, nem princípio algum de movimento e vida, além do sangue e seus espíritos, agitados pelo calor do fogo que arde continuamente no seu coração e cuja natureza é idêntica à que inflama os corpos inanimados.” (Sabemos que Descartes, como Platão, considerava a alma humana como retirada num santuário, no âmago de nós mesmos, numa espécie de oposição à matéria. A vida e as funções orgânicas dependiam inteiramente do corpo e só ao pensamento era atributo do espírito.)

 Tal, sumariamente, o papel do ar na Natureza. Assim são os vegetais, habilíssimos físico-químicos, a nos prepararem ao mesmo tempo a alimentação, a respiração, a indumentária, o combustível e os elementos materiais da nossa existência terrestre. Importa, por conseguinte, deixarmos de considerar a Natureza sob um prisma vulgar, para fazê-lo, doravante, com olhos atentos e apercebidos. Quando fixarmos a ervilha tenra que reponta nos jardins, não admiraremos apenas o risonho tapete de verdura e a gracilidade das flores que o esmaltam. Elevemos mais alto o pensamento, imaginemos que cada um desses rebentos, que vamos pisando, é um benfeitor silencioso, pois, se de um lado contribuímos para embelezá-lo fornecendo-lhe ácido carbónico, sem o qual se estiolaria, por outro lado ele nos dá benévolamente todo o necessário à nossa vida material: imaginemos que essa harmonia é de uma perfeição sublime, visto que, se umas regiões mergulham, longos meses, nos rigores do Inverno, os ventos não deixam de estabelecer entre esses países deserdados e o nosso uma permuta constante, que reconduz aos nossos bosques e prados o ácido carbónico expirado pelo lapónio e o esquimó, levando-lhes o oxigénio exalado dos milhões de bocas dos nossos vegetais.

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(i) Pudesse o homem apreciar as forças diariamente accionadas na Natureza e ficaria confundido, na sua admiração. Para não citar mais que um exemplo fácil de entender, digamos que o vapor de água ao elevar-se do solo para formar as nuvens, essas nuvens que se resolvem em chuva, parece não acusar, à primeira vista, um deslocamento de energias colossais. No entanto, admitindo que caia anualmente, em toda a superfície terráquea, uma camada de água da espessura de um metro e que a altura média das nuvens seja de 3000 metros, seria preciso para esse trabalho uma força de 1500 biliões de cavalos, a trabalharem 7 horas diárias. E a Terra não teria como alimentá-los!
(ii) Tableaux de la Natura, parte 4ª.
(iii) Liebig – Chemische Brief, 400.



Camille FlammarionDeus na Natureza, Segunda Parte – A Vida 1, Circulação da Matéria (1 de 6), 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)