Objecções e contradições
Sendo o problema divino o mais vasto, o mais profundo dos
problemas, pois que abrange todos os outros, embalou teorias, sistemas
sem-número, que correspondem a outros tantos graus de compreensão humana, a
outros tantos estádios do pensamento na sua marcha para o absoluto.
Nesse domínio as contradições pululam. Cada religião explica
Deus à sua maneira; cada teoria o descreve a seu modo. E de tudo isso resulta
uma confusão, um caos inextricável. Quantas formas variadas da ideia de Deus,
desde o fetiche do negro até ao Parabrahm dos hindus, até ao Acto puro de São Tomás! Dessa
confusão os ateus têm tirado argumentos para negar a existência de Deus; os
positivistas, para declará-lo “incognoscível”. Como remediar tal desordem? Como
escapar a essas contradições? Da maneira mais simples. Basta nos elevarmos
acima das teorias e dos sistemas, bastante alto, para ligá-las no seu conjunto
e pelo que têm de comum. Basta elevarmo-nos até à grande Causa, na qual tudo se
resume e tudo se explica.
A estreiteza de vistas desnaturou,
comprometeu a ideia de Deus. Suprimamos as barreiras, as peias, sistemas
fechados, que se contradizem, se excluem e se combatem, substituindo-os pelas
vistas largas das concepções superiores. A certa altura, a Ciência, a Filosofia
e a Religião, até então divididas, opostas, hostis, sob as suas formas
inferiores, se unem e se fundem numa
potente síntese, que é a do moderno Espiritualismo. Assim se cumpre
a lei da evolução das ideias. Depois da tese, temos a antítese. Tocamos na
síntese, que resumirá todas as formas e crenças, e será a glória do vigésimo
século tê-las estabelecido e formulado.
Examinemos rapidamente as objecções mais
comuns. A mais frequente é a que consiste em dizer: Se Deus existe, se Ele é,
como pretendeis, Bondade, Justiça, Amor, por quê o mal e o sofrimento reinam
feitos senhores em torno dos seres? Deus é bom, e milhões sofrem na alma e na
carne. Tudo é dor e aflição na vida das multidões. A iniquidade é soberana no
nosso globo e a ardente luta pela existência faz, todos os dias, vítimas
sem-número.
Conforme mostramos noutra parte, (*) o
sofrimento é um meio poderoso de educação para as Almas, pois desenvolve a sensibilidade, que já é,
por si mesma, um acréscimo de vida. Por vezes é uma forma de justiça, um
correctivo aos nossos actos anteriores e longínquos.
O mal é a consequência da imperfeição humana. Se Deus
tivesse feito só seres perfeitos, o mal não existiria. Mas então o Universo
seria fixo, imobilizado na sua monótona perfeição. A magnífica ascensão
das Almas, através do Infinito, seria suprimida de chofre. Nada mais a
conquistar; nada mais a desejar! Ora, que seria uma perfeição sem méritos,
sem esforços para obtê-la? Teria algum valor aos nossos olhos? Em resumo, o mal
é o Menos evoluindo para o Mais, o Inferior para o
Superior, a Alma para Deus.
Deus nos fez livres; daí o mal, a fase transitória da
nossa ascensão. A liberdade é a condição necessária da variante na unidade
universal. Sem isso, a monotonia teria feito um Universo insuportável. Deus nos
deu a liberdade com
essa impulsão de vida inicial, pela qual o ser evoluirá pelo
seu próprio esforço, através dos espaços e dos tempos sem limites, sobre a
escala das vidas sucessivas, até à superfície dos mundos que povoam a
imensidade.
Emanamos de Deus, tal qual os nossos pensamentos emanam do
nosso Espírito, sem fraccioná-lo, sem diminuí-lo. Livres e responsáveis, nos
tornamos senhores e artífices dos
nossos destinos. Mas, para desenvolver os germens e as forças que estão em
nós, a luta é necessária, a luta contra a matéria, contra as paixões, contra
tudo a que chamamos de mal.
Essa luta é dolorosa e os choques são numerosos. No
entanto, pouco a pouco, a experiência se adquire a vontade se tempera, o bem
se desprende do mal. Chega a hora em que a Alma triunfa das influências
inferiores, se resgata e se eleva pela expiação e purificação até à vida
bem-aventurada. Então, compreende, admira a sabedoria e a providência de Deus,
que, fazendo dela o árbitro dos
seus próprios destinos, dispôs todas as coisas de maneira a destas tirar a
maior soma de felicidade final para cada ser.
A condição actual de todas as Almas é o resultado justo de suas existências
passadas. Da mesma forma, numa existência presente, a nossa Alma tece
dia-a-dia, os actos livres, a sorte que teremos no futuro.
Outras objecções se apresentam. Há uma que não podemos
desprezar, porque constitui uma das questões capitais da Filosofia.
Pergunta-se-nos:
Será Deus um ser pessoal ou é o ser universal, infinito?
Não pode ser ambos, porque – dizem – essas
concepções são diferentes e se excluem mutuamente. Daí os dois grandes sistemas
sobre Deus; o deísmo e
o panteísmo. Na
realidade, tal contribuição é apenas um erro de óptica do espírito
humano, que não sabe compreender, nem a personalidade, nem o infinito.
A personalidade verdadeira é o eu, a
inteligência, a vontade, a consciência. Nada impede concebê-la sem limites,
isto é, infinita. Sendo Deus a perfeição, não pode ser limitado. Assim se
conciliam duas noções, na aparência contraditória.
Outra coisa: Deus é incognoscível, como dizem os
positivistas e, entre eles, Berthelot? É o abismo dos gnósticos, a Ísis velada
dos templos do Egipto, o terrível e misterioso Santo dos Santos dos Hebreus, ou
pode ser conhecido?
A resposta é fácil: Deus é incognoscível na
sua essência, nas suas profundezas íntimas; mas revela-se em toda a sua obra, no grande livro aberto aos
nossos olhos e no fundo de nós mesmos.
Insiste-se, ainda disseste, que o fim essencial da vida, de
todas as nossas vidas, era entrar, cada vez mais, na comunhão universal, para
melhor amar e melhor servir a Deus nos seus desígnios. Não podendo Deus ser
conhecido na sua plenitude, como se poderia amar e servir o desconhecido?
Sem dúvida, replicaremos nós, não podemos conhecer Deus na
sua essência, mas nós conhecemo-lo pelas suas leis admiráveis, pelo plano que traçou todas as
existências e no qual brilham a sua sabedoria e a sua justiça. Para amar a Deus
não é necessário separá-lo da sua obra; é preciso vê-lo na sua universalidade,
na onda de vida e amor que derrama sobre todas as coisas. Deus não é desconhecido:
é somente invisível.
A alma, o pensamento, o bem e a beleza moral são igualmente
invisíveis. Entretanto, não devemos
amá-los? E amá-los não será ainda amar a Deus – a sua
origem e, ao mesmo tempo, o pensamento supremo, a beleza perfeita, o bem
absoluto?
Não compreendemos, na sua essência, nenhum desses
princípios; entretanto, sabemos que existem e que não podemos escapar à sua
influência, dispensando-nos de lhes prestar culto. Se amarmos somente o que
conhecemos e compreendemos com plenitude, o que amaríamos, afinal, limitados
qual somos actualmente, nos marcos estreitos de nossa compreensão terrestre?
Aqueles que reclamam absolutamente uma definição poder-se-ia
dizer que Deus é o Espírito puro, o Pensamento puro. Mas a ideia pura, na sua
essência, não pode ser formulada sem, por isso mesmo, ser diminuída, alterada.
Toda a fórmula é uma prisão. Encerrada no cárcere da palavra, o pensamento
perde a sua irradiação, o seu brilho, quando não perde o seu sentido
verdadeiro, completo. Empobrecido, deformado, torna-se assim sujeito à crítica
e vê desvanecer-se o que nele havia de mais probante. Na vida do Espaço, o pensamento é uma imagem
brilhante.
Comparado ao pensamento expresso por palavras humanas, é o
que seria uma jovem resplendente de
vida e de beleza, comparada à mesma, porém deitada num caixão, sob a forma
rígida e gelada da morte.
Entretanto, apesar da nossa impotência em exprimi-la na sua
extensão, a ideia de Deus impõe-se, dissemos, por ser indispensável à
nossa vida. Acabamos de ver que o Bem, o Verdadeiro, o Belo, nos escapam na sua essência,
porque são de natureza divina.
A nossa própria inteligência é para nós incompreensível, precisamente porque
encerra uma partícula divina que a dota de faculdades augustas.
Só penetrando o sistema da alma humana chegaremos um dia a
resolver o enigma do Ser infinito. Deus está na criatura, e a criatura Nele.
Deus é o grande foco de vida e de amor do qual cada Alma é uma centelha, ou
antes, um foco ainda obscuro e velado que contém, em estado embrionário, todas as
potências; a tal ponto que, se soubéssemos tudo quanto em nós existe, e as
grandiosas obras que podemos realizar, transformaríamos o mundo:
elevar-nos-íamos, de um salto, na senda imensa do progresso.
Para nos conhecermos, é mister, pois, estudar Deus, porque
tudo que está em Deus está nos seres, pelo menos em estado de gérmen. Deus é o
Espírito Universal que se exprime e se manifesta na Natureza, da qual o homem é
a expressão mais alta.
Todos os homens devem chegar a essa compreensão de sua
natureza superior; na ignorância dessa
natureza e dos recursos que em nós dormitam é que está a causa de todas as provações,
dos nossos desfalecimentos e das nossas quedas.
Eis por que a todos diremos: Elevemo-nos acima das querelas
de escola, acima das discussões e das polémicas vãs. Elevemo-nos bastante alto para compreender que
somos outra coisa mais do que uma roda na máquina cega do mundo:
somos os filhos de Deus e, por isso, ligados estreitamente a Ele
e à sua criação, destinados a um fim imenso, ao lado do qual tudo mais se torna
secundário; esse fim é a entrada na santa harmonia dos seres e das coisas, que
não se realizam senão em Deus e por Deus!
Elevemo-nos até lá, e sentiremos a potência
que está em nós; compreenderemos o papel que somos solicitados a
desempenhar na obra do progresso eterno. Lembremo-nos de que somos Espíritos
imortais. As coisas da Terra são um degrau,
um meio de educação, de transformação. Podemos perder neste mundo todos os bens
terrestres. Que importa? O indeclinável, antes de tudo, é engrandecer, arrancar da sua grosseira
ganga esse Espírito divino, esse deus interior que é, em todo o
homem, a origem da sua grandeza, da sua felicidade no porvir. Eis o fim supremo
da vida!
Concluamos: Deus é a grande Alma do Universo, o foco de onde emana toda a
vida, toda a luz moral.
Não podeis passar sem Deus, de igual modo que a Terra e todos os seres que
vivem na sua superfície não podem dispensar o seu foco solar: Se o Sol se
extinguir, de repente, que acontecerá? O nosso planeta rolará no vazio dos
espaços, levando nessa correria a Humanidade deitada para sempre no seu
sepulcro de gelo. Todas as coisas morrerão, o globo será uma necrópole imensa.
Triste silêncio reinará nas grandes cidades adormecidas no seu último sono.
Pois bem! Deus é o Sol das Almas! Extingui a ideia de Deus,
e imediatamente a morte moral se estenderá sobre o mundo. Precisamente porque a
ideia de Deus está falseada, desnaturada por uns, desconhecida por
muitos outros, é que a Humanidade actual erra no meio das tempestades, sem
piloto, sem bússola, sem guia,
presa da desordem, entregue a todas as aflições.
Levantar, engrandecer a ideia de Deus, desembaraçá-la
das escórias em que as religiões e os sistemas a
têm envolvido, tal é a missão do Espiritualismo moderno!
Se tantos homens são ainda incapazes de ver e compreender a
harmonia suprema das leis, dos seres e das coisas, é que a Alma deles não
entrou ainda, pelo senso íntimo, em comunicação com
Deus, isto é, com os seus pensamentos divinos, que esclarecem o Universo e que
são a luz imperecível do mundo.
Indagamos de nós mesmos, ao terminar, se conseguimos dar um
resumo da ideia de Deus. A palavra humana
é muito fraca, muito árida e extremamente fria para tratar de semelhante
assunto. Só a própria harmonia, a grande sinfonia das esferas e a voz do
Infinito poderiam esboçar e exprimir a lei universal.
Há coisas que, de tão profundas, só se sentem, não se descrevem. Deus,
somente no seu amor sem limites, pode revelar-nos o seu sentido oculto. E é o
que fará, se na nossa fé, na nossa ascensão para a Verdade, soubermos
apresentar, Àquele que sonda os recônditos mais misteriosos das consciências,
uma alma capaz de compreendê-lo, um coração digno de amá-lo.
/...
(*) Vide Depois da Morte, segunda parte; O Problema do Ser, do Destino e da Dor, caps. XVIII e XIX.
(*) Vide Depois da Morte, segunda parte; O Problema do Ser, do Destino e da Dor, caps. XVIII e XIX.
Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte /
Deus e o Universo / IX – Objecções e contradições (fim da
primeira parte), 20º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e
violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)
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