Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

| o grande enigma ~


Objecções e contradições

Sendo o problema divino o mais vasto, o mais profundo dos problemas, pois que abrange todos os outros, embalou teorias, sistemas sem-número, que correspondem a outros tantos graus de compreensão humana, a outros tantos estádios do pensamento na sua marcha para o absoluto.

Nesse domínio as contradições pululam. Cada religião explica Deus à sua maneira; cada teoria o descreve a seu modo. E de tudo isso resulta uma confusão, um caos inextricável. Quantas formas variadas da ideia de Deus, desde o fetiche do negro até ao Parabrahm dos hindus, até ao Acto puro de São Tomás! Dessa confusão os ateus têm tirado argumentos para negar a existência de Deus; os positivistas, para declará-lo “incognoscível”. Como remediar tal desordem? Como escapar a essas contradições? Da maneira mais simples. Basta nos elevarmos acima das teorias e dos sistemas, bastante alto, para ligá-las no seu conjunto e pelo que têm de comum. Basta elevarmo-nos até à grande Causa, na qual tudo se resume e tudo se explica.

estreiteza de vistas desnaturou, comprometeu a ideia de Deus. Suprimamos as barreiras, as peias, sistemas fechados, que se contradizem, se excluem e se combatem, substituindo-os pelas vistas largas das concepções superiores. A certa altura, a Ciência, a Filosofia e a Religião, até então divididas, opostas, hostis, sob as suas formas inferiores, se unem e se fundem numa potente síntese, que é a do moderno Espiritualismo. Assim se cumpre a lei da evolução das ideias. Depois da tese, temos a antítese. Tocamos na síntese, que resumirá todas as formas e crenças, e será a glória do vigésimo século tê-las estabelecido e formulado.

Examinemos rapidamente as objecções mais comuns. A mais frequente é a que consiste em dizer: Se Deus existe, se Ele é, como pretendeis, Bondade, Justiça, Amor, por quê o mal e o sofrimento reinam feitos senhores em torno dos seres? Deus é bom, e milhões sofrem na alma e na carne. Tudo é dor e aflição na vida das multidões. A iniquidade é soberana no nosso globo e a ardente luta pela existência faz, todos os dias, vítimas sem-número.

Conforme mostramos noutra parte, (*) o sofrimento é um meio poderoso de educação para as Almas, pois desenvolve a sensibilidade, que já é, por si mesma, um acréscimo de vida. Por vezes é uma forma de justiça, um correctivo aos nossos actos anteriores e longínquos.

O mal é a consequência da imperfeição humana. Se Deus tivesse feito só seres perfeitos, o mal não existiria. Mas então o Universo seria fixo, imobilizado na sua monótona perfeição. A magnífica ascensão das Almas, através do Infinito, seria suprimida de chofre. Nada mais a conquistar; nada mais a desejar! Ora, que seria uma perfeição sem méritos, sem esforços para obtê-la? Teria algum valor aos nossos olhos? Em resumo, o mal é o Menos evoluindo para o Mais, o Inferior para o Superior, a Alma para Deus.

Deus nos fez livres; daí o mal, a fase transitória da nossa ascensão. A liberdade é a condição necessária da variante na unidade universal. Sem isso, a monotonia teria feito um Universo insuportável. Deus nos deu a liberdade com essa impulsão de vida inicial, pela qual o ser evoluirá pelo seu próprio esforço, através dos espaços e dos tempos sem limites, sobre a escala das vidas sucessivas, até à superfície dos mundos que povoam a imensidade.

Emanamos de Deus, tal qual os nossos pensamentos emanam do nosso Espírito, sem fraccioná-lo, sem diminuí-lo. Livres e responsáveis, nos tornamos senhores e artífices dos nossos destinos. Mas, para desenvolver os germens e as forças que estão em nós, a luta é necessária, a luta contra a matéria, contra as paixões, contra tudo a que chamamos de mal.

Essa luta é dolorosa e os choques são numerosos. No entanto, pouco a pouco, a experiência se adquire a vontade se tempera, o bem se desprende do mal. Chega a hora em que a Alma triunfa das influências inferiores, se resgata e se eleva pela expiação e purificação até à vida bem-aventurada. Então, compreende, admira a sabedoria e a providência de Deus, que, fazendo dela o árbitro dos seus próprios destinos, dispôs todas as coisas de maneira a destas tirar a maior soma de felicidade final para cada ser.

A condição actual de todas as Almas é o resultado justo de suas existências passadas. Da mesma forma, numa existência presente, a nossa Alma tece dia-a-dia, os actos livres, a sorte que teremos no futuro.

Outras objecções se apresentam. Há uma que não podemos desprezar, porque constitui uma das questões capitais da Filosofia. Pergunta-se-nos:

Será Deus um ser pessoal ou é o ser universal, infinito?

Não pode ser ambos, porque – dizem – essas concepções são diferentes e se excluem mutuamente. Daí os dois grandes sistemas sobre Deus; o deísmo e o panteísmo. Na realidade, tal contribuição é apenas um erro de óptica do espírito humano, que não sabe compreender, nem a personalidade, nem o infinito.

A personalidade verdadeira é o eu, a inteligência, a vontade, a consciência. Nada impede concebê-la sem limites, isto é, infinita. Sendo Deus a perfeição, não pode ser limitado. Assim se conciliam duas noções, na aparência contraditória.

Outra coisa: Deus é incognoscível, como dizem os positivistas e, entre eles, Berthelot? É o abismo dos gnósticos, a Ísis velada dos templos do Egipto, o terrível e misterioso Santo dos Santos dos Hebreus, ou pode ser conhecido?

A resposta é fácil: Deus é incognoscível na sua essência, nas suas profundezas íntimas; mas revela-se em toda a sua obra, no grande livro aberto aos nossos olhos e no fundo de nós mesmos.

Insiste-se, ainda disseste, que o fim essencial da vida, de todas as nossas vidas, era entrar, cada vez mais, na comunhão universal, para melhor amar e melhor servir a Deus nos seus desígnios. Não podendo Deus ser conhecido na sua plenitude, como se poderia amar e servir o desconhecido?

Sem dúvida, replicaremos nós, não podemos conhecer Deus na sua essência, mas nós conhecemo-lo pelas suas leis admiráveis, pelo plano que traçou todas as existências e no qual brilham a sua sabedoria e a sua justiça. Para amar a Deus não é necessário separá-lo da sua obra; é preciso vê-lo na sua universalidade, na onda de vida e amor que derrama sobre todas as coisas. Deus não é desconhecido: é somente invisível.

A alma, o pensamento, o bem e a beleza moral são igualmente invisíveis. Entretanto, não devemos amá-los? E amá-los não será ainda amar a Deus – a sua origem e, ao mesmo tempo, o pensamento supremo, a beleza perfeita, o bem absoluto?

Não compreendemos, na sua essência, nenhum desses princípios; entretanto, sabemos que existem e que não podemos escapar à sua influência, dispensando-nos de lhes prestar culto. Se amarmos somente o que conhecemos e compreendemos com plenitude, o que amaríamos, afinal, limitados qual somos actualmente, nos marcos estreitos de nossa compreensão terrestre?

Aqueles que reclamam absolutamente uma definição poder-se-ia dizer que Deus é o Espírito puro, o Pensamento puro. Mas a ideia pura, na sua essência, não pode ser formulada sem, por isso mesmo, ser diminuída, alterada. Toda a fórmula é uma prisão. Encerrada no cárcere da palavra, o pensamento perde a sua irradiação, o seu brilho, quando não perde o seu sentido verdadeiro, completo. Empobrecido, deformado, torna-se assim sujeito à crítica e vê desvanecer-se o que nele havia de mais probante. Na vida do Espaço, o pensamento é uma imagem brilhante.

Comparado ao pensamento expresso por palavras humanas, é o que seria uma jovem resplendente de vida e de beleza, comparada à mesma, porém deitada num caixão, sob a forma rígida e gelada da morte.

Entretanto, apesar da nossa impotência em exprimi-la na sua extensão, a ideia de Deus impõe-se, dissemos, por ser indispensável à nossa vida. Acabamos de ver que o Bem, o Verdadeiro, o Belo, nos escapam na sua essência, porque são de natureza divina. A nossa própria inteligência é para nós incompreensível, precisamente porque encerra uma partícula divina que a dota de faculdades augustas.

Só penetrando o sistema da alma humana chegaremos um dia a resolver o enigma do Ser infinito. Deus está na criatura, e a criatura Nele. Deus é o grande foco de vida e de amor do qual cada Alma é uma centelha, ou antes, um foco ainda obscuro e velado que contém, em estado embrionário, todas as potências; a tal ponto que, se soubéssemos tudo quanto em nós existe, e as grandiosas obras que podemos realizar, transformaríamos o mundo: elevar-nos-íamos, de um salto, na senda imensa do progresso.

Para nos conhecermos, é mister, pois, estudar Deus, porque tudo que está em Deus está nos seres, pelo menos em estado de gérmen. Deus é o Espírito Universal que se exprime e se manifesta na Natureza, da qual o homem é a expressão mais alta.

Todos os homens devem chegar a essa compreensão de sua natureza superior; na ignorância dessa natureza e dos recursos que em nós dormitam é que está a causa de todas as provações, dos nossos desfalecimentos e das nossas quedas.

Eis por que a todos diremos: Elevemo-nos acima das querelas de escola, acima das discussões e das polémicas vãs. Elevemo-nos bastante alto para compreender que somos outra coisa mais do que uma roda na máquina cega do mundo: somos os filhos de Deus e, por isso, ligados estreitamente a Ele e à sua criação, destinados a um fim imenso, ao lado do qual tudo mais se torna secundário; esse fim é a entrada na santa harmonia dos seres e das coisas, que não se realizam senão em Deus e por Deus!

Elevemo-nos até lá, e sentiremos a potência que está em nós; compreenderemos o papel que somos solicitados a desempenhar na obra do progresso eterno. Lembremo-nos de que somos Espíritos imortais. As coisas da Terra são um degrau, um meio de educação, de transformação. Podemos perder neste mundo todos os bens terrestres. Que importa? O indeclinável, antes de tudo, é engrandecer, arrancar da sua grosseira ganga esse Espírito divino, esse deus interior que é, em todo o homem, a origem da sua grandeza, da sua felicidade no porvir. Eis o fim supremo da vida!

Concluamos: Deus é a grande Alma do Universo, o foco de onde emana toda a vida, toda a luz moral. Não podeis passar sem Deus, de igual modo que a Terra e todos os seres que vivem na sua superfície não podem dispensar o seu foco solar: Se o Sol se extinguir, de repente, que acontecerá? O nosso planeta rolará no vazio dos espaços, levando nessa correria a Humanidade deitada para sempre no seu sepulcro de gelo. Todas as coisas morrerão, o globo será uma necrópole imensa. Triste silêncio reinará nas grandes cidades adormecidas no seu último sono.

Pois bem! Deus é o Sol das Almas! Extingui a ideia de Deus, e imediatamente a morte moral se estenderá sobre o mundo. Precisamente porque a ideia de Deus está falseada, desnaturada por uns, desconhecida por muitos outros, é que a Humanidade actual erra no meio das tempestades, sem piloto, sem bússola, sem guia, presa da desordem, entregue a todas as aflições.

Levantar, engrandecer a ideia de Deus, desembaraçá-la das escórias em que as religiões e os sistemas a têm envolvido, tal é a missão do Espiritualismo moderno!

Se tantos homens são ainda incapazes de ver e compreender a harmonia suprema das leis, dos seres e das coisas, é que a Alma deles não entrou ainda, pelo senso íntimo, em comunicação com Deus, isto é, com os seus pensamentos divinos, que esclarecem o Universo e que são a luz imperecível do mundo.

Indagamos de nós mesmos, ao terminar, se conseguimos dar um resumo da ideia de Deus. A palavra humana é muito fraca, muito árida e extremamente fria para tratar de semelhante assunto. Só a própria harmonia, a grande sinfonia das esferas e a voz do Infinito poderiam esboçar e exprimir a lei universal.

Há coisas que, de tão profundas, só se sentem, não se descrevem. Deus, somente no seu amor sem limites, pode revelar-nos o seu sentido oculto. E é o que fará, se na nossa fé, na nossa ascensão para a Verdade, soubermos apresentar, Àquele que sonda os recônditos mais misteriosos das consciências, uma alma capaz de compreendê-lo, um coração digno de amá-lo.

/...
(*) Vide Depois da Morte, segunda parte; O Problema do Ser, do Destino e da Dor, caps. XVIII e XIX.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo / IX – Objecções e contradições (fim da primeira parte), 20º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

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