SUICÍDIO ABOMINÁVEL
(II)
Carlo afastou-se lépido, rindo, cínico, e desceu à
cavalariça, partindo em seguida.
O dia húmido e sombrio estava carregado. Caíam bátegas e a
trovoada ameaçadora fechava o tempo sobre a região, com relâmpagos e trovões.
Carlo, resguardado em pesado capuz, esporeou o animal e
enfrentou a tormenta. O vento e a chuva fustigavam-lhe o rosto. Desejava, porém,
atingir a estrada real, a Via Cassia,
para alcançar a próxima hospedaria, evadindo-se da herdade, quanto antes.
Coriscos rasgavam a noite que se fez no dia e o cavaleiro, a
galope, surge e desaparece na alameda que desemboca na estrada de acesso à via
para Florença. Raios singram em muitas direcções, acompanhados de trovões quais
gargalhadas de Fúrias. O intrépido
viajante sonha com as ambições. Repentinamente, um raio atinge um imponente
carvalho, que arde em célere clarão e se rasga ao meio. O animal relincha e,
assustando-se, atira longe o cavalgador, que tomba, recebendo em cheio o tronco
decepado pela faísca eléctrica. Um grito de horror escapa-lhe dos lábios e o
imenso silêncio continua, somente interrompido pelo troar da tempestade
violenta.
No solar, estremecendo e gritando, aparvalhado pela visão
fantástica da tormenta que lhe produz recordações desesperantes, Girólamo se
enfurece. Os servos se apressam em socorrê-lo e Beatriz ordena que seja atado com cordas.
De coração despedaçado e sentindo o horror da situação
delicada, sufoca as lágrimas e as angústias, pensando no filho, e, acompanhada
pela velha aia, entrega-se à desatrelada litania da oração.
O vento ulula fora do solar estremece aos choques das forças
desgovernadas da Natureza. As sombras invadem tudo, clareadas apenas nos
espaços rápidos dos relâmpagos. Olhos fora das órbitas, o obsidiado, em subjugação
total, luta nas amarras contra as entidades que agora se consubstanciam diante
dele, em visões incessantes, alucinadoras. Tomando o aspecto tradicional das
concepções satânicas, para dominá-lo mais adiante pelo pavor, o duque desencarnado aparece-lhe armado
de tridente e investe, cruel. O demente grita, esbraveja, estorce-se nas grimpas
afiadas, que parecem dilacerá-lo. A demência o aniquila e a voz soturna do
vingador esbraveja no pandemónio mental em que se contorce o atormentado:
– Confessa os crimes, antes que a morte te arrebate,
usurpador de vidas e de bens. Pede perdão a Deus, antes que seja tarde demais!
– Beatriz, Beatriz, por que me abandonaste? Beatriz,
socorre-me! O meu tio aqui está, matando-me.
Beatriz, Beatriz, salva-me…
A senhora, ajoelhada com a ama, crava os olhos na imagem do
Crucificado, presa à parede, e suplica a protecção divina:
– Oh! Deus meu! Por que sofro tanto, Senhor? Piedade para
ele, para todos nós! – desespera-se a Condessa…
– Os demónios me despedaçam, Beatriz, – baldoa o enfermo,
entre as cordas, atado ao leito. – Oh! desgraça, mil vezes desgraçado…
– Coragem, Girólamo! – replica a esposa. – A tormenta logo
passará. Mandarei alguém a Siena buscar socorro. Coragem!
– Será tarde, muito tarde, muito tarde… (Exaure-se numa voz
que se apaga, enrouquecida pela dor e pelo cansaço.)
A noite avança e, conquanto a chuva amaine, o tempo continua
carrancudo, pesado.
O silêncio no solar traduz o torpor que de todos se apossa.
O paciente, desfalecido, mergulha nas sombras desalentadoras
do mundo espiritual inferior. Defronta-se com o tio, que o arrasta em espírito, aturdido, e fá-lo experimentar
nefanda perseguição, implacável, que parece não terminar nunca… A sugestão
perniciosa da sua voz, da sua mente corroída pelo monoideísmo do desforço,
esmaga as últimas resistências e apaga os derradeiros lampejos de lucidez no
jovem senense…
O novo dia começa em brumas escuras, que cobrem a região.
Pela manhã, os servos encontram o animal que conduzia Carlo,
no pátio de entrada da herdade… Dado o alarme, saem-lhe em busca e a menos de
um quilómetro do portão central deparam-no morto, debaixo da árvore tombada. Conduzem
o cadáver ao solar e um mensageiro ruma a Siena, para informar da tragédia o
Conde Castaldi, rogando-lhe a presença.
O sepultamento é feito entre choros das pessoas da plebe,
que ali se agasalham, amedrontadas. Tem-se a impressão de que as tragédias do
passado recomeçam no burgo malsinado.
Libertado das cordas que o maltratam, o Conde Girólamo tem o
olhar distante, vazio e não participa de nada que acontece à sua volta.
Logo após o enterro, quando os lacaios vêm assistir o amo,
na noite que chega e a borrasca que anuncia repetir-se, ele se levanta e,
apontando a ampla janela rasgada na direcção do céu pardo-cinzento, estremece,
faz-se marmóreo e grita:
– Tirem Carlo daqui… O desgraçado está em sangue, arrastado
pelo meu tio. Socorro!...
Os servos seguram-no e o conduzem ao leito. Ele debate-se e
se acalma no sono ofegante da demência.
Quando os Condes chegam, atendendo ao aviso da filha e ao
seu pedido de socorro, a casa tem aspecto fúnebre.
– Vimos dispostos a levar-te para Siena, custe-nos o custar.
Levaremos também o nosso doente, que perdeu o uso da razão. Lá, talvez…
Depois de inteirados por Beatriz dos acontecimentos da véspera,
e cansados da viagem, vencidos todos pelas emoções sucessivas, recolhem-se
cedo, para o necessário refazimento.
A noite avança e a borrasca desaba.
Girólamo desperta e, desvairado, vê e ouve Assunta, que o
chama:
– Vem, perdoei-te. Poderás fugir. Vem comigo. Vamos à recâmara…
Teleguiado pela mente da comparsa desditosa, ergue-se do
leito e quando se dispõe a segui-la escuta-a
dizer:
– A corda… Traze a corda. É necessário.
O subjugado, olhos além das órbitas, cambaleante, no silêncio
da noite clareada pelos relâmpagos e de quando em quando sacudida pelo
ribombar dos trovões, adentra-se pela peça da ala esquerda. Ali estão: Lúcia e
as crianças (*) a debaterem-se inermes sob o travesseiro de plumas,
vigorosamente aplicado sobre cada uma. Ele ri, blasfema em surdina e Assunta
impõe:
– Faze um laço corrediço. Fugiremos daqui. Ninguém nos
alcançará. Unir-nos-emos. Vem, apressa-te!
Com as mãos nervosas, ele ata a ponta da corda em nó
corrediço e lança-a por cima da trave de carvalho, na peça em sombra.
– Outro nó, Girólamio. Traze a arca, a de cânfora, para mais
perto… Sim, essa traze…
Automaticamente, o jugulado obedece. Frio cortante o vence. As
mãos estão geladas e o suor escorre-lhe abundante.
– Sobe na arca; coloca a corda. Vem! Vem, eu te ordeno; vem!
– Sim, obedeço, sim…
– Salta! Arroja o corpo para fora! Agora!
– Ai… iii… uughug…
O grito surdo não foi ouvido.
Girólamo suicidara-se.
Num clarão mais forte do relâmpago, quando os lacaios
acordaram assustados e não encontraram o amo, deram o alarme. Acenderam-se
tocheiros e velas e saíram em busca. O alvoroço tomou conta da casa.
– Na recâmara da ala esquerda – suplicou Beatriz – , pelo
amor de Deus…
Os servos e os Condes Castaldi trouxeram o corpo do inditoso
cavaliere para a alcova e logo após
desceram-no para a câmara ardente, onde fora erguido um catafalco. A bandeira
que ele ostentava no palio cobria o
ataúde. Mensageiros foram despachados em todas as direcções. O Bispo de Siena
foi chamado às pressas.
Após o desfalecimento demorado, Beatriz continuou inspirando
cuidados.
Apesar da hora avançada, os agregados e os aldeães das
cercarias foram chamados a prantear o morto.
Nas exéquias fúnebres, quando o cortejo se dirigia à capela
mortuária para o sepultamento, o Bispo, realmente comovido, depois das palavras
habituais, proferiu:
– “Requiescat in pace.”
Um calafrio percorreu os circunstantes e alguns tiveram a impressão
de escutar estridente gargalhada.
Possivelmente, pois eram o duque Dom Giovanni di Bicci di M. e Assunta, que zombavam quanto às
possibilidades de o Conde Girólamo Cherubini di Bicci “ repousar em paz”…
O dia nevoento e sombrio morreu numa débil fímbria bruxuleante
no ocaso…
O calendário assinalava 22 de Dezembro de 1753…
Por exigência da viúva, a Condessa Beatriz di Castaldi
Cherubini di Bicci, no Duomo de
Siena, um ano depois, Sua Eminência Reverendíssima proferiu, entre júbilos
generalizados:
– “Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, eu te baptizo
Conde Dom Carlo di Castaldi Cherubini di Bicci…”
As invioláveis e inabordáveis Leis Divinas davam curso à
Justiça, à Misericórdia e ao Amor de Nosso Pai.
/…
(*) Fenómeno de ideoplastia proporcionado pela consciência
culpada.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO
PRIMEIRO, 10 SUICÍDIO ABOMINÁVEL (2 de 2) 33º fragmento desta obra. Texto
mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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