Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 3 de dezembro de 2017

~~~Párias em Redenção~~~


SUICÍDIO ABOMINÁVEL
(II)

  Carlo afastou-se lépido, rindo, cínico, e desceu à cavalariça, partindo em seguida.

  O dia húmido e sombrio estava carregado. Caíam bátegas e a trovoada ameaçadora fechava o tempo sobre a região, com relâmpagos e trovões.

  Carlo, resguardado em pesado capuz, esporeou o animal e enfrentou a tormenta. O vento e a chuva fustigavam-lhe o rosto. Desejava, porém, atingir a estrada real, a Via Cassia, para alcançar a próxima hospedaria, evadindo-se da herdade, quanto antes.

  Coriscos rasgavam a noite que se fez no dia e o cavaleiro, a galope, surge e desaparece na alameda que desemboca na estrada de acesso à via para Florença. Raios singram em muitas direcções, acompanhados de trovões quais gargalhadas de Fúrias. O intrépido viajante sonha com as ambições. Repentinamente, um raio atinge um imponente carvalho, que arde em célere clarão e se rasga ao meio. O animal relincha e, assustando-se, atira longe o cavalgador, que tomba, recebendo em cheio o tronco decepado pela faísca eléctrica. Um grito de horror escapa-lhe dos lábios e o imenso silêncio continua, somente interrompido pelo troar da tempestade violenta.

  No solar, estremecendo e gritando, aparvalhado pela visão fantástica da tormenta que lhe produz recordações desesperantes, Girólamo se enfurece. Os servos se apressam em socorrê-lo e Beatriz ordena que seja atado com cordas.

  De coração despedaçado e sentindo o horror da situação delicada, sufoca as lágrimas e as angústias, pensando no filho, e, acompanhada pela velha aia, entrega-se à desatrelada litania da oração.

  O vento ulula fora do solar estremece aos choques das forças desgovernadas da Natureza. As sombras invadem tudo, clareadas apenas nos espaços rápidos dos relâmpagos. Olhos fora das órbitas, o obsidiado, em subjugação total, luta nas amarras contra as entidades que agora se consubstanciam diante dele, em visões incessantes, alucinadoras. Tomando o aspecto tradicional das concepções satânicas, para dominá-lo mais adiante pelo pavor, o duque desencarnado aparece-lhe armado de tridente e investe, cruel. O demente grita, esbraveja, estorce-se nas grimpas afiadas, que parecem dilacerá-lo. A demência o aniquila e a voz soturna do vingador esbraveja no pandemónio mental em que se contorce o atormentado:

  – Confessa os crimes, antes que a morte te arrebate, usurpador de vidas e de bens. Pede perdão a Deus, antes que seja tarde demais!

  – Beatriz, Beatriz, por que me abandonaste? Beatriz, socorre-me! O meu tio aqui está, matando-me. Beatriz, Beatriz, salva-me…

  A senhora, ajoelhada com a ama, crava os olhos na imagem do Crucificado, presa à parede, e suplica a protecção divina:

  – Oh! Deus meu! Por que sofro tanto, Senhor? Piedade para ele, para todos nós! – desespera-se a Condessa…

  – Os demónios me despedaçam, Beatriz, – baldoa o enfermo, entre as cordas, atado ao leito. – Oh! desgraça, mil vezes desgraçado…

  – Coragem, Girólamo! – replica a esposa. – A tormenta logo passará. Mandarei alguém a Siena buscar socorro. Coragem!

  – Será tarde, muito tarde, muito tarde… (Exaure-se numa voz que se apaga, enrouquecida pela dor e pelo cansaço.)

  A noite avança e, conquanto a chuva amaine, o tempo continua carrancudo, pesado.

  O silêncio no solar traduz o torpor que de todos se apossa.

  O paciente, desfalecido, mergulha nas sombras desalentadoras do mundo espiritual inferior. Defronta-se com o tio, que o arrasta em espírito, aturdido, e fá-lo experimentar nefanda perseguição, implacável, que parece não terminar nunca… A sugestão perniciosa da sua voz, da sua mente corroída pelo monoideísmo do desforço, esmaga as últimas resistências e apaga os derradeiros lampejos de lucidez no jovem senense…

  O novo dia começa em brumas escuras, que cobrem a região.

  Pela manhã, os servos encontram o animal que conduzia Carlo, no pátio de entrada da herdade… Dado o alarme, saem-lhe em busca e a menos de um quilómetro do portão central deparam-no morto, debaixo da árvore tombada. Conduzem o cadáver ao solar e um mensageiro ruma a Siena, para informar da tragédia o Conde Castaldi, rogando-lhe a presença.

  O sepultamento é feito entre choros das pessoas da plebe, que ali se agasalham, amedrontadas. Tem-se a impressão de que as tragédias do passado recomeçam no burgo malsinado.

  Libertado das cordas que o maltratam, o Conde Girólamo tem o olhar distante, vazio e não participa de nada que acontece à sua volta.

  Logo após o enterro, quando os lacaios vêm assistir o amo, na noite que chega e a borrasca que anuncia repetir-se, ele se levanta e, apontando a ampla janela rasgada na direcção do céu pardo-cinzento, estremece, faz-se marmóreo e grita:

  – Tirem Carlo daqui… O desgraçado está em sangue, arrastado pelo meu tio. Socorro!...

  Os servos seguram-no e o conduzem ao leito. Ele debate-se e se acalma no sono ofegante da demência.

  Quando os Condes chegam, atendendo ao aviso da filha e ao seu pedido de socorro, a casa tem aspecto fúnebre.

  – Vimos dispostos a levar-te para Siena, custe-nos o custar. Levaremos também o nosso doente, que perdeu o uso da razão. Lá, talvez…

  Depois de inteirados por Beatriz dos acontecimentos da véspera, e cansados da viagem, vencidos todos pelas emoções sucessivas, recolhem-se cedo, para o necessário refazimento.

  A noite avança e a borrasca desaba.

  Girólamo desperta e, desvairado, e ouve Assunta, que o chama:

  – Vem, perdoei-te. Poderás fugir. Vem comigo. Vamos à recâmara…

  Teleguiado pela mente da comparsa desditosa, ergue-se do leito e quando se dispõe a segui-la escuta-a dizer:

  – A corda… Traze a corda. É necessário.

  O subjugado, olhos além das órbitas, cambaleante, no silêncio da noite clareada pelos relâmpagos e de quando em quando sacudida pelo ribombar dos trovões, adentra-se pela peça da ala esquerda. Ali estão: Lúcia e as crianças (*) a debaterem-se inermes sob o travesseiro de plumas, vigorosamente aplicado sobre cada uma. Ele ri, blasfema em surdina e Assunta impõe:

  – Faze um laço corrediço. Fugiremos daqui. Ninguém nos alcançará. Unir-nos-emos. Vem, apressa-te!

  Com as mãos nervosas, ele ata a ponta da corda em nó corrediço e lança-a por cima da trave de carvalho, na peça em sombra.

  – Outro nó, Girólamio. Traze a arca, a de cânfora, para mais perto… Sim, essa traze…

  Automaticamente, o jugulado obedece. Frio cortante o vence. As mãos estão geladas e o suor escorre-lhe abundante.

  – Sobe na arca; coloca a corda. Vem! Vem, eu te ordeno; vem!

  – Sim, obedeço, sim…

  – Salta! Arroja o corpo para fora! Agora!

  – Ai… iii… uughug…

  O grito surdo não foi ouvido.

  Girólamo suicidara-se.

  Num clarão mais forte do relâmpago, quando os lacaios acordaram assustados e não encontraram o amo, deram o alarme. Acenderam-se tocheiros e velas e saíram em busca. O alvoroço tomou conta da casa.

  – Na recâmara da ala esquerda – suplicou Beatriz – , pelo amor de Deus…

  Os servos e os Condes Castaldi trouxeram o corpo do inditoso cavaliere para a alcova e logo após desceram-no para a câmara ardente, onde fora erguido um catafalco. A bandeira que ele ostentava no palio cobria o ataúde. Mensageiros foram despachados em todas as direcções. O Bispo de Siena foi chamado às pressas.

  Após o desfalecimento demorado, Beatriz continuou inspirando cuidados.

  Apesar da hora avançada, os agregados e os aldeães das cercarias foram chamados a prantear o morto.

  Nas exéquias fúnebres, quando o cortejo se dirigia à capela mortuária para o sepultamento, o Bispo, realmente comovido, depois das palavras habituais, proferiu:

  – “Requiescat in pace.”

  Um calafrio percorreu os circunstantes e alguns tiveram a impressão de escutar estridente gargalhada.

  Possivelmente, pois eram o duque Dom Giovanni di Bicci di M. e Assunta, que zombavam quanto às possibilidades de o Conde Girólamo Cherubini di Bicci “ repousar em paz”…

  O dia nevoento e sombrio morreu numa débil fímbria bruxuleante no ocaso…

  O calendário assinalava 22 de Dezembro de 1753…

  Por exigência da viúva, a Condessa Beatriz di Castaldi Cherubini di Bicci, no Duomo de Siena, um ano depois, Sua Eminência Reverendíssima proferiu, entre júbilos generalizados:

  – “Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, eu te baptizo Conde Dom Carlo di Castaldi Cherubini di Bicci…”

  As invioláveis e inabordáveis Leis Divinas davam curso à Justiça, à Misericórdia e ao Amor de Nosso Pai.

/…
(*) Fenómeno de ideoplastia proporcionado pela consciência culpada.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 10 SUICÍDIO ABOMINÁVEL (2 de 2) 33º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

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