Capítulo IX
Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte
(II)
Uma sombra, porém, se estende sobre o Druidismo. A história ensina-nos
que os sacrifícios humanos se cumpriam debaixo dos grandes carvalhos, o sangue
corria sobre as mesas de pedra. Talvez esteja aí o erro capital, o lado
imperfeito do culto, tão grande noutros pontos de vista. Não esqueçamos,
entretanto, que todas as religiões, na sua origem, todos os cultos primitivos
tinham o sacrifício do sangue.
Ainda hoje, em cada manhã e em todos os ambientes do mundo
católico o sangue do Cristo não jorra sobre o altar, pela voz do padre? Com
efeito, perante os olhos dos crentes isso não é uma simples imagem, é o corpo e o
sangue do grande crucificado que lhes são oferecidos. O dogma da presença real
é, para eles, absoluto. Se alguma dúvida subsiste em certos espíritos, meditemos
nestas palavras de Bossuet:
“Por que os cristãos já não reconhecem o santo pavor de que
eram tomados outrora perante o sacrifício? Será que ele cessou de ser terrível?
Será que o sangue da nossa vítima já não corre a não ser sobre o Calvário? (*)
Além do sacrifício sangrento da missa, é preciso ainda
lembrar os suplícios e as fogueiras da inquisição, todas essas imolações que
não são somente atentados à vida, mas também ultrajes à consciência?
Esses sacrifícios não são mais odiosos do que aqueles dos
druidas, onde somente figuravam criminosos e vítimas voluntárias? É preciso
lembrar que os druidas eram magistrados e justiceiros. Os condenados à morte,
os assassinos, eram oferecidos em holocaustos àquele que era para eles a fonte
da justiça.
Era um acto sagrado e, para torná-lo mais solene, para
permitir ao condenado reflectir em si mesmo e preparar-se para o arrependimento,
eles deixavam sempre um intervalo de cinco anos entre a sentença e a execução.
Essas cerimónias expiatórias não seriam mais dignas do que as execuções dos
nossos dias, onde vemos um povo, que pretende ser civilizado, passar as noites à
volta das guilhotinas, atraído pelo chamariz de um espectáculo horrível e de
impressões nocivas?
Os sacrifícios voluntários entre os gauleses revestiam-se
também de um carácter religioso. Os seus sentimentos profundos de imortalidade
faziam com que se entregassem facilmente aos nossos antepassados. O homem oferecia-se
como uma hóstia viva pela família, pela nação, pela salvação de todos. Mas
todos esses sacrifícios caíram em desuso e tornaram-se muito raros no tempo de
Vercingétorix. Em lugar de matar, contentavam-se em tirar algumas gotas de
sangue dos fiéis estendidos sobre a pedra dos dolmens.
Umas das características da filosofia céltica é a
indiferença pela morte. Sob esse ponto de vista, a Gália era objecto de
admiração para os povos pagãos, os quais não possuíam, no mesmo grau, a noção
de imortalidade. Os nossos antepassados, não receando a morte, certos de viver
no além-túmulo, estavam libertos de todo o medo.
Em nenhuma crença se encontra um sentimento tão intenso do
invisível e da solidariedade que une o mundo dos vivos ao dos espíritos. Todos
aqueles que deixavam a Terra faziam-no carregados de mensagens destinadas aos
mortos. Diodoro da Sicília deixou-nos esta passagem preciosa: “Nos funerais
eles depositavam as cartas escritas aos mortos, pelos seus parentes, para que
elas lhes fossem transmitidas”. A comunicação dos dois mundos era coisa comum.
Pomponius Mela, Valério Máximo e todos os autores latinos que nós citamos dizem
que entre os gauleses “se emprestava um valor para ser reembolsado no outro
mundo”.
Se, como no exemplo dos nossos ancestrais, consideramos a
morte como um véu, uma simples cortina que pende sobre o caminho que
percorremos, véu de grande efeito para o nosso olhar, que ele detém, mas impotente
para impedir a nossa marcha que não pára; se compreendemos que só se trata de
abandonar esse corpo usado para nos encontrarmos no nosso manto fluídico
permanente, essa morte, tão temível para aqueles que nela vêem o aniquilamento,
nada teria de espantoso para nós.
Os druidas, dizíamos, tinham um amplo conhecimento da
pluralidade dos mundos. A sua fé na imortalidade lhes apresentava as almas,
libertas dos liames terrestres, percorrendo os espaços, reunindo os amigos, os
parentes que partiram antes delas, visitando com eles os arquipélagos
estelares, as esferas inumeráveis onde desabrocham a vida, a luz e a
felicidade.
Que espectáculos, que maravilhas representam para os nossos olhos esses mundos longínquos, que variedade de sensações que se podem tirar desses universos! E essas almas prosseguem a sua viagem na imensidade, até que,
submetidas à lei eterna, retomam órgãos novos, se fixam sobre um desses mundos
para cooperar, pelo trabalho, para o seu adiantamento, para o seu progresso.
Perante esses horizontes imensos, como a nossa Terra fica pequena! E, diante de
tais perspectivas, pode temer-se a morte?
Os gauleses não conheciam, então, os infernos sinistros nem
os paraísos de imobilidade. As vidas de além-túmulo eram, para eles, repletas
de actividade, fecundadas por uma faina constante, vidas onde a personalidade e
a liberdade do ser se desenvolviam e se aperfeiçoavam incessantemente.
É isso que diz Lucano para os druidas, no primeiro canto de A Farsália:
“Para vós, as sombras não estão enterradas nos reinos sombrios
de Plutão, mas a alma voa para animar outros membros em mundos novos. A morte
nada mais é do que o meio de uma longa vida. Felizes são os povos que não
conhecem o medo da morte. Daí o seu heroísmo no seio das disputas sangrentas, o
seu desprezo pela morte.”
Horácio definia a Gália nestes termos: A região onde não se sofre o terror da morte.
Não haveria um contraste chocante entre esta crença máscula
e poderosa e a ideia da eternidade dos suplícios ou daquela, não menos
importuna, do aniquilamento absoluto? A fé na sobrevivência era a essência do
Druidismo, e deste ponto de vista decorria uma ordem política e social fundada
nos princípios de igualdade, de liberdade moral.
Essa mesma fé inspirava também as práticas, as cerimónias
fúnebres, tão diferentes das nossas. Nós, modernos, temos pelo nosso corpo uma
complacência infinita; os gauleses consideravam os cadáveres como ferramentas
inaptas, apressavam-se em dar-lhes fim. Frequentemente eles queimavam os
corpos, recolhendo as cinzas em urnas. Nós estendemos a credulidade até crer,
com o Catolicismo, que a nossa alma está ligada a esses resíduos e que um dia
ela ressuscitará com eles!
Mas o tempo zomba da nossa cegueira e sejam os nossos restos
enterrados sob o mármore ou sob a pedra, sempre chega uma hora onde, pó, eles
retornam ao pó, onde a grande lei cíclica dispersa os seus átomos.
Um dia que está próximo, quando estivermos mais esclarecidos
sobre os nossos destinos, nós não suportaremos mais esse aparato e esses cantos
lúgubres, todas essas manifestações de um culto que responde tão pouco à
realidade das coisas.
Penetrados, como os nossos antepassados, pela ideia de que a
nossa vida é infinita, de que ela se renova incessantemente em diversos meios,
nós veremos na morte somente uma transformação necessária, uma das fases da
existência do progresso.
É dos gauleses que nos vem a comemoração dos mortos, essa
festa do dia dois de Novembro que caracteriza o nosso povo entre todos. Só que,
em vez de comemorar, como nós, nos cemitérios, entre túmulos, era no lar que
eles celebravam a lembrança dos amigos afastados, mas não perdidos, que eles
evocavam a memória dos espíritos amados que algumas vezes se manifestavam por
meio das druidisas e dos bardos inspirados.
Henri Martin, na sua Histoire
de France, volume I, página 71, assim se expressa:
“Tudo o que se relaciona com a doutrina da morte e do
renascimento periódico do mundo e de todos os seres parece estar concentrado na
crença e nos ritos do primeiro de Novembro.
A noite cheia de mistérios que o Druidismo legou ao
Cristianismo e que o dobre de finados (i) anuncia, ainda hoje, a todos os povos
católicos esquecidos das origens desta antiga comemoração. Cada uma das grandes
regiões do mundo galo-kímrico tinha um centro ou ambiente sagrado a cuja
jurisdição correspondiam todas as partes do território confederado. Nesse
centro ardia um fogo perpétuo que era chamado de “fogo-pai”.
Na noite de primeiro de Novembro, conforme as tradições
irlandesas, os druidas se reuniam em volta do “fogo-pai”, guardado por um
pontífice forjador, e o extinguiam. A este sinal, pouco a pouco, se apagavam
todos os fogos; por toda a parte reinava um silêncio de morte, a natureza
inteira parecia mergulhada numa noite primitiva. De repente, o fogo brilhava de
novo sobre a montanha santa e gritos de alegria rebentavam de todos os lados. A
chama cedida pelo “fogo-pai” corria de foco em foco, de uma ponta à outra, e
reanimava a vida em toda a parte.”
/…
(*) Citado por
Jean Reynaud (i) em L’Esprit de la Gaule.
LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível,
Segunda Parte – Capítulo IX Religião dos celtas, o culto, os
sacrifícios, a ideia da morte (2 de 3) 30º fragmento desta
obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis
franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura
de Anne-Louis
Girodet-Trioson)
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