Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo IX

Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte
(II)

  Uma sombra, porém, se estende sobre o Druidismo. A história ensina-nos que os sacrifícios humanos se cumpriam debaixo dos grandes carvalhos, o sangue corria sobre as mesas de pedra. Talvez esteja aí o erro capital, o lado imperfeito do culto, tão grande noutros pontos de vista. Não esqueçamos, entretanto, que todas as religiões, na sua origem, todos os cultos primitivos tinham o sacrifício do sangue.

  Ainda hoje, em cada manhã e em todos os ambientes do mundo católico o sangue do Cristo não jorra sobre o altar, pela voz do padre? Com efeito, perante os olhos dos crentes isso não é uma simples imagem, é o corpo e o sangue do grande crucificado que lhes são oferecidos. O dogma da presença real é, para eles, absoluto. Se alguma dúvida subsiste em certos espíritos, meditemos nestas palavras de Bossuet:

  “Por que os cristãos já não reconhecem o santo pavor de que eram tomados outrora perante o sacrifício? Será que ele cessou de ser terrível? Será que o sangue da nossa vítima já não corre a não ser sobre o Calvário? (*)

  Além do sacrifício sangrento da missa, é preciso ainda lembrar os suplícios e as fogueiras da inquisição, todas essas imolações que não são somente atentados à vida, mas também ultrajes à consciência?

  Esses sacrifícios não são mais odiosos do que aqueles dos druidas, onde somente figuravam criminosos e vítimas voluntárias? É preciso lembrar que os druidas eram magistrados e justiceiros. Os condenados à morte, os assassinos, eram oferecidos em holocaustos àquele que era para eles a fonte da justiça.

  Era um acto sagrado e, para torná-lo mais solene, para permitir ao condenado reflectir em si mesmo e preparar-se para o arrependimento, eles deixavam sempre um intervalo de cinco anos entre a sentença e a execução. Essas cerimónias expiatórias não seriam mais dignas do que as execuções dos nossos dias, onde vemos um povo, que pretende ser civilizado, passar as noites à volta das guilhotinas, atraído pelo chamariz de um espectáculo horrível e de impressões nocivas?

  Os sacrifícios voluntários entre os gauleses revestiam-se também de um carácter religioso. Os seus sentimentos profundos de imortalidade faziam com que se entregassem facilmente aos nossos antepassados. O homem oferecia-se como uma hóstia viva pela família, pela nação, pela salvação de todos. Mas todos esses sacrifícios caíram em desuso e tornaram-se muito raros no tempo de Vercingétorix. Em lugar de matar, contentavam-se em tirar algumas gotas de sangue dos fiéis estendidos sobre a pedra dos dolmens.

  Umas das características da filosofia céltica é a indiferença pela morte. Sob esse ponto de vista, a Gália era objecto de admiração para os povos pagãos, os quais não possuíam, no mesmo grau, a noção de imortalidade. Os nossos antepassados, não receando a morte, certos de viver no além-túmulo, estavam libertos de todo o medo.

  Em nenhuma crença se encontra um sentimento tão intenso do invisível e da solidariedade que une o mundo dos vivos ao dos espíritos. Todos aqueles que deixavam a Terra faziam-no carregados de mensagens destinadas aos mortos. Diodoro da Sicília deixou-nos esta passagem preciosa: “Nos funerais eles depositavam as cartas escritas aos mortos, pelos seus parentes, para que elas lhes fossem transmitidas”. A comunicação dos dois mundos era coisa comum. Pomponius Mela, Valério Máximo e todos os autores latinos que nós citamos dizem que entre os gauleses “se emprestava um valor para ser reembolsado no outro mundo”.

  Se, como no exemplo dos nossos ancestrais, consideramos a morte como um véu, uma simples cortina que pende sobre o caminho que percorremos, véu de grande efeito para o nosso olhar, que ele detém, mas impotente para impedir a nossa marcha que não pára; se compreendemos que só se trata de abandonar esse corpo usado para nos encontrarmos no nosso manto fluídico permanente, essa morte, tão temível para aqueles que nela vêem o aniquilamento, nada teria de espantoso para nós.

  Os druidas, dizíamos, tinham um amplo conhecimento da pluralidade dos mundos. A sua fé na imortalidade lhes apresentava as almas, libertas dos liames terrestres, percorrendo os espaços, reunindo os amigos, os parentes que partiram antes delas, visitando com eles os arquipélagos estelares, as esferas inumeráveis onde desabrocham a vida, a luz e a felicidade.

  Que espectáculos, que maravilhas representam para os nossos olhos esses mundos longínquos, que variedade de sensações que se podem tirar desses universos! E essas almas prosseguem a sua viagem na imensidade, até que, submetidas à lei eterna, retomam órgãos novos, se fixam sobre um desses mundos para cooperar, pelo trabalho, para o seu adiantamento, para o seu progresso. Perante esses horizontes imensos, como a nossa Terra fica pequena! E, diante de tais perspectivas, pode temer-se a morte?

Os gauleses não conheciam, então, os infernos sinistros nem os paraísos de imobilidade. As vidas de além-túmulo eram, para eles, repletas de actividade, fecundadas por uma faina constante, vidas onde a personalidade e a liberdade do ser se desenvolviam e se aperfeiçoavam incessantemente.

É isso que diz Lucano para os druidas, no primeiro canto de A Farsália:

“Para vós, as sombras não estão enterradas nos reinos sombrios de Plutão, mas a alma voa para animar outros membros em mundos novos. A morte nada mais é do que o meio de uma longa vida. Felizes são os povos que não conhecem o medo da morte. Daí o seu heroísmo no seio das disputas sangrentas, o seu desprezo pela morte.”

  Horácio definia a Gália nestes termos: A região onde não se sofre o terror da morte.

  Não haveria um contraste chocante entre esta crença máscula e poderosa e a ideia da eternidade dos suplícios ou daquela, não menos importuna, do aniquilamento absoluto? A fé na sobrevivência era a essência do Druidismo, e deste ponto de vista decorria uma ordem política e social fundada nos princípios de igualdade, de liberdade moral.

  Essa mesma fé inspirava também as práticas, as cerimónias fúnebres, tão diferentes das nossas. Nós, modernos, temos pelo nosso corpo uma complacência infinita; os gauleses consideravam os cadáveres como ferramentas inaptas, apressavam-se em dar-lhes fim. Frequentemente eles queimavam os corpos, recolhendo as cinzas em urnas. Nós estendemos a credulidade até crer, com o Catolicismo, que a nossa alma está ligada a esses resíduos e que um dia ela ressuscitará com eles!

  Mas o tempo zomba da nossa cegueira e sejam os nossos restos enterrados sob o mármore ou sob a pedra, sempre chega uma hora onde, pó, eles retornam ao pó, onde a grande lei cíclica dispersa os seus átomos.

  Um dia que está próximo, quando estivermos mais esclarecidos sobre os nossos destinos, nós não suportaremos mais esse aparato e esses cantos lúgubres, todas essas manifestações de um culto que responde tão pouco à realidade das coisas.

  Penetrados, como os nossos antepassados, pela ideia de que a nossa vida é infinita, de que ela se renova incessantemente em diversos meios, nós veremos na morte somente uma transformação necessária, uma das fases da existência do progresso.

  É dos gauleses que nos vem a comemoração dos mortos, essa festa do dia dois de Novembro que caracteriza o nosso povo entre todos. Só que, em vez de comemorar, como nós, nos cemitérios, entre túmulos, era no lar que eles celebravam a lembrança dos amigos afastados, mas não perdidos, que eles evocavam a memória dos espíritos amados que algumas vezes se manifestavam por meio das druidisas e dos bardos inspirados.

  Henri Martin, na sua Histoire de France, volume I, página 71, assim se expressa:

  “Tudo o que se relaciona com a doutrina da morte e do renascimento periódico do mundo e de todos os seres parece estar concentrado na crença e nos ritos do primeiro de Novembro.

  A noite cheia de mistérios que o Druidismo legou ao Cristianismo e que o dobre de finados (i) anuncia, ainda hoje, a todos os povos católicos esquecidos das origens desta antiga comemoração. Cada uma das grandes regiões do mundo galo-kímrico tinha um centro ou ambiente sagrado a cuja jurisdição correspondiam todas as partes do território confederado. Nesse centro ardia um fogo perpétuo que era chamado de “fogo-pai”.

  Na noite de primeiro de Novembro, conforme as tradições irlandesas, os druidas se reuniam em volta do “fogo-pai”, guardado por um pontífice forjador, e o extinguiam. A este sinal, pouco a pouco, se apagavam todos os fogos; por toda a parte reinava um silêncio de morte, a natureza inteira parecia mergulhada numa noite primitiva. De repente, o fogo brilhava de novo sobre a montanha santa e gritos de alegria rebentavam de todos os lados. A chama cedida pelo “fogo-pai” corria de foco em foco, de uma ponta à outra, e reanimava a vida em toda a parte.”

/…
(*) Citado por Jean Reynaud (i) em L’Esprit de la Gaule.


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo IX Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte (2 de 3) 30º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

Sem comentários: