Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O Homem e a Sociedade

A INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA NA PARAPSICOLOGIA

(3) O Existencialismo Perante a Parapsicologia

  O existencialismo, ou filosofia da existência, encarna, neste período da evolução, o estado espiritual com que vive o homem, frente ao seu próprio ser e existir. Para o existencialismo, o indivíduo existente só representa um momento do Ser, cuja meta final é a morte e o nada eternos. (*) Este estado de consciência, com efeito, não poderá ser refutado pelos antigos processos teológicos e metafísicos. Somente uma nova realidade espiritual do Ser, originada de uma autêntica experiência parapsicológica, poderá introduzir na filosofia existencial a ideia do Espírito. Não devemos esquecer o que H. H. Price escreveu: “Devemos ter a coragem de estabelecer novamente a questão da estrutura da personalidade humana e das suas relações com o Universo, criando um novo quadro conceitual, que possa ajustar-se aos factos novos. Na minha opinião, compete aos filósofos esta tarefa.” (**)

  Não nos esqueçamos de que o Espírito é ainda uma irrealidade para as correntes mais avançadas do pensamento. Entre elas, como sabemos, encontra-se o materialismo histórico e dialéctico, base ideológica da concepção marxista da sociedade. Lembremo-nos de que o Espírito foi factor de superstições e de promessas de além túmulo, com as quais se justificaram cruéis injustiças sociais. Além disso, a sua concepção nunca correspondeu, na formulação teológica, de forma satisfatória, à desnorteante angústia do homem. Por sua vez, a filosofia referiu-se sempre ao Espírito, mas sem dar provas de sua realidade objectiva. Obrigou-se a aceitá-lo dogmaticamente, por imposição de mentores religiosos, que nunca levaram em conta o sentir colectivo do mundo, base fundamental da civilização e de todo o progresso social.

  Esta concepção do Espírito foi a razão ideológica do existencialismo, cuja pujança filosófica nenhuma filosofia e nenhuma teologia conseguirão deter, enquanto não se demonstrar a existência real do Ser espiritual. Acreditamos que o existencialismo só deixará a sua posição niilista quando se provar que a mente sobrepuja as circunvoluções cerebrais, e quando essa mente se mostrar como uma consequência da real existência do Espírito, cuja objectivação só poderá obter-se pela investigação fenoménica da parapsicologia.

  O laboratório parapsicológico deverá representar, portanto, uma forma de concretização científica da filosofia espírita. Se é certo que dele não poderá sair uma definição dogmática sobre a realidade espiritual do homem, isso não impede que a escola espírita vá confirmando a sua ideologia doutrinária, por meio da parapsicologia. Seria faltar à verdade deixarmos de reconhecer que devemos o advento da investigação psíquica, da metapsíquica e da parapsicologia ao resultado dos esforços realizados pela escola espírita no campo experimental, quando ela, sozinha, enfrentava as insustentáveis hipóteses sobre demónios, larvas, cascões astrais e fraudes. Daí apresentar-se a filosofia espírita, com sobejas razões, perante a exaurida humanidade, como campeã da vida e do Espírito. Ela fará o homem sentir a realidade do seu Ser espiritual, por meio da ciência e da religião. Ela descerrará os véus do além e iluminará com os seus fachos a marcha solene da história.

  Com o seu génio mediúnico, a filosofia espírita fez realidade e presença no que todas as religiões têm intuído subjectivamente: a alma imortal. Conseguiu estabelecer um diálogo dramático entre o mundo visível e o invisível, que os teólogos consideram sempre como irrealizável. O método científico, aplicado à pesquisa espiritual, vai dando à filosofia espírita a razão que lhe pertence. Daí que a parapsicologia, ao demonstrar a realidade psíquica do homem, não poderá desfazer a concepção espírita do Ser, se é que realmente quer refrear o existencialismo ateu e o conceito materialista da vida.

  O existencialismo não poderá ser ultrapassado só por meio de factos, mas também mediante sólidas reflexões ontológicas acerca do homem. Não nos esqueçamos do que disse Jean-Paul Sartre: “As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade vaga, ou senhor feudal, ou proletário. que não varia é a necessidade, para ele, de estar ali, no meio dos outros, e de ali, como eles, ser mortal.” Cabe à parapsicologia ensaiar, mediante o seu rico fenomenismo extrassensorial, um Humanismo do Espírito, com o fim de indicar ao Ser de onde provém, o que faz no mundo e para onde se dirige.

  Segundo a filosofia existencialista, a razão metafísica não é suficiente para negar o sentido niilista do homem e do mundo. O ser humano, não obstante a exigência teológica, destina-se à morte eterna. Demonstrar o contrário seria negar a primazia que o existencialismo confere à existência sobre a essência. Como, porém, se poderia realizar isso? Só mediante uma materialização da essência, que se poderá obter pela objectivação do Ser espiritual do indivíduo. E esta materialização da essência é tarefa da parapsicologia, que, uma vez cumprida, demonstrará cabalmente que o Espírito é uma realidade e pode objectivar-se.

  Será realmente assombroso constatar os efeitos espirituais que a parapsicologia produzirá no existencialismo. A existência material será superada pela espiritualidade da essência; ela transformará a sua imagem finita, para se mostrar resultante do Ser infinito. Porque, como o reconhecerá a filosofia do futuro, só o método parapsicológico poderá conceder à metafísica os reais elementos com que construir uma verdadeira teoria do homem.

  Estas reflexões nos levam a pensar que devemos juntar à Fenomenologia de Husserl uma “segunda fenomenologia”, já que esta abrange somente uma face do ser fenomenológico, o qual necessita de transcender para um existir extratemporal. Ao contrário, uma fenomenologia parapsicológica do Ser não se limita às estruturas físicas, mas as supera, por meio de um ser intencional. A fenomenologia existencial detém-se na parte morta do Ser. Não obstante a intuição essencial que experimenta, não consegue perceber a realidade do fenómeno, para dele se libertar. Daí se conclui que a parapsicologia, à luz da filosofia espírita, é uma espécie de maiêutica socrática, que dá origem a uma nova realidade psicológica.

  A objectividade de um verdadeiro facto parapsicológico terá a propriedade de convencer os matemáticos, cientistas, artistas, filósofos e religiosos. Consequentemente a parapsicologia será a objectivação daquilo que se julgava morto para sempre: o ideal e o espírito, os quais ressurgem graças à influência que os fenómenos psíquicos e metapsíquicos exercem sobre o pensamento humano e a marcha do conhecimento. Ela é capaz de produzir factos que podem interessar a toda a humanidade, já que esses factos representam uma superação geral do conhecimento e do habitual. Além disso, ela está a organizar métodos novos, para a investigação daquilo que sempre foi considerado como não experimental: a busca do Espírito.

  Se a realidade espiritual clássica se mostra impotente para se opor à negação de Deus e do Espírito, existe uma teologia experimental, da qual falou o grande biólogo espanhol Jaume Ferran, no seu prólogo ao Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, verdadeiro libelo contra o existencialismo ateu. Trata-se nada menos do que da metapsíquica objectiva, cujos fenómenos e materialização estão revolucionando o pensamento filosófico. Ela será de grande proveito para a existência humana e animal, agora que o existencialismo indica ao homem, como o seu único futuro, a morte e o nada. Embora seja certo que várias escolas espiritualistas se levantaram contra o existencialismo, e com elas – que paradoxo – a própria doutrina marxista, não obstante a sua concepção materialista, a verdade é que o niilismo espiritual se difunde de maneira alarmante, ao lado da filosofia do existencialismo.

  Miguel de Unamuno não via, no fenómeno metapsíquico, nenhuma prova a favor da imortalidade. Não obstante, ao referir-se à realidade da vida de além-túmulo, chegou a escrever: E a esta mesma necessidade, verdadeira necessidade de formarmos uma ideia concreta do que pode ser essa outra vida, responde em grande parte a indestrutível vitalidade de doutrinas como as do espiritismo, da metempsicose, da transmigração das almas através dos astros, e outras análogas, doutrinas que, quantas vezes declaradas vencidas e mortas, renascem noutras formas mais ou menos novas. É grande loucura querer eliminá-las, em vez de buscar-lhes a substância permanente.” (***)

  Se a ciência psicológica se está beneficiando com as contribuições da investigação psíquica, da metapsíquica e da parapsicologia, isto se deve ao persistente trabalho do espiritismo científico, que, desde os seus primórdios, conseguiu atrair a atenção dos homens de ciência, interessando por sua vez a filosofia e a religião.

  O conhecimento psicológico do homem encontra-se numa fase a que poderíamos chamar de revolucionária. As teorias do paralelismo psicofisiológico vão sendo abandonadas, ao se considerar o Ser como um Eu ou uma Mente, conceito este negado pelo materialismo e pelo existencialismo ateu.

  A escola espírita, no campo do conhecimento, está a preparar um novo sentido espiritual, mas agora apoiado num neorrealismo decorrente da demonstração positiva da existência da alma. Assim, o próprio cristianismo, menosprezado pelos niilistas e por certos espiritualistas orientais, se reafirmará sobre bases verdadeiramente espirituais. A filosofia espírita promoveu uma nova interpretação da antropologia, que permitirá à própria teosofia apresentar-se perante o espírito dos tempos actuais com as suas grandes intuições místicas e cósmicas.

  O carácter positivo da ciência mediúnica e metapsíquica confirmará finalmente as hipóteses de muitas correntes idealistas. A intuição palingenésica da teosofia, por exemplo, encontrará no realismo do fenómeno parapsicológico e metapsíquico a mais completa confirmação, ao lado de muitas teorias da metafísica oriental e ocidental.

  Unamuno considerava as manifestações místicas e vivenciais da agonia terrena, antes de mais nada, como uma consequência da angústia religiosa. Era ele um tipo de existencialista cristão, semelhante a Soren Kierkegaard. Este achava que toda a sabedoria espiritual provinha da própria angústia do Ser. Não obstante, a metapsíquica objectiva é a única força positiva que poderá contraditar e paralisar os planos filosóficos do existencialismo. Estejamos certos de que só um fenómeno objectivo, como o ectoplásmico, se fosse tomado na devida conta, poderia mudar a mentalidade dos tempos modernos e de todas as épocas. Porque, se a objectividade do facto metafísico chegasse a comover a inteligência contemporânea, o existencialismo perderia todo o seu valor, do ponto de vista lógico e filosófico.

  Para o pensamento materialista, a filosofia idealista nada representa no mundo do conhecimento. Ela está incluída entre os sistemas que serviram de base aos dogmas, mediante os quais foi possível submeter os povos económica e socialmente. Entretanto, para a filosofia espírita, o idealismo é uma realidade inegável, dependente do mundo espiritual. Pelo processo chamado ESP, isto é, pela percepção extrassensorial, poderíamos captar essa realidade, através do inconsciente. Esse processo chamado ESP (****) nos permitiria apreender outro plano do Espírito, ainda distante, no qual o homem não penetrou, mas que ele pressente, parapsicologicamente, como uma realidade.

/...
(*) O autor refere-se, como adiante se verá, ao existencialismo de Sartre, dominante na actualidade. (Nota de J. H. Pires).
(**) Revista de Parapsicologia, n° 1 – Buenos Aires, 1955.
(***) Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida.
(****) ESP – termo empregado na parapsicologia no sentido de percepção extrassensorial. A sigla corresponde à expressão inglesa extra sensory perception.


Humberto Mariotti (i)O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, PRIMEIRA PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo I A INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA NA PARAPSICOLOGIA, (3) – O Existencialismo Perante a Parapsicologia. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (detalhe) | 1936, Salvador Dali)

domingo, 19 de janeiro de 2020

Deus na Natureza ~

~ a origem dos seres ~
(I de III)

  Será rebaixar a ideia de Deus, considerar o Universo como um gigantesco paralelo de uma obra única, cujas modalidades se manifestam sobre a forma de vários aspectos e cujos poderes se traduzem em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência hajam de irradiar esplendores; A luz, o calor, a electricidade, o magnetismo, a atracção, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao tempo de Pan, tocava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e prenuncia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.

  No amanhecer da Natureza terrestre, já os sóis resplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a gravitarem harmónicos nas suas órbitas, sob a regência da mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o primeiro dia da Terra. Solidões oceânicas, tempestades ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens viram chegar-lhes, ao fim, uma paz desconhecida. Raios de ouro atravessaram as nuvens; um céu azul tonalizou a atmosfera; um belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não eram dias e anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o berço. Os astros são jovens, ainda quando as miríades de gestação tenham sucumbido. As ilhas surgiram, então, do seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas praias o seu manto virginal. Muito tempo depois, dos galhos das vides rebentaram flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo profundo das florestas repercutiu o canto das aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos se cruzaram no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se dava aos espasmos da vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento, que a força orgânica, que hoje se transmite de geração a geração, tenha aparecido como uma resultante natural e inevitável das condições fecundas em que se encontrava a Terra quando soou a era da vida; suponhamos as primeiras células orgânicas diversamente constituídas, formando tipos primordiais distintos, ainda que simples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de sucessivas variedades; suponhamos, enfim, que todas as espécies vegetais e animais, inclusive a humana, sejam o resultado de transformações lentas, operadas sob condições progressivas do planeta, e perguntemos em que, e como, pode essa teoria nulificar a necessidade de um criador e organizador imanente? Quem deu essas leis ao Universo? Quem organizou essa fecundidade? Quem imprimiu à Natureza essa tendência perpetuamente progressiva? Quem deu aos elementos materiais a faculdade de produzir ou de receber a vida? Quem concebeu a arquitectura desses corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos quais todos os órgãos tendem para um mesmo fim? Quem presidiu à conservação dos indivíduos e das espécies na trama inimitável dos tecidos, dos arcaboiços, dos mecanismos – pelo dom previdente do instinto, por todas as faculdades, enfim, que possuem respectivamente todos os seres vivos e cada qual de acordo com o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força vital é uma força da mesma natureza das forças moleculares, insistamos em perguntar: – quem é o seu autor? Seria por não haver este autor concebido tudo com as próprias mãos, que haveríeis de o negar?

  De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever letra a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Académica, que a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, a entregou ao paginador, que, por sua vez, a confiou aos contramestres e aprendizes, etc.; e depois, ainda me obrigou a corrigir as provas – sem falarmos da escolha do papel, do formato, do número de páginas, da encadernação, tudo enfim que representa a factura de um livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor, bastando apenas querê-lo para que o plano instantaneamente se completasse? Acreditais que, por haver simplesmente coordenado certas regras, em virtude das quais a ideia expressa em tinta, papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, actuados sob a minha vigilância constante – se materializou em parte, tão invisivelmente quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído da legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão das provas, que, já o dizia Balzac, é o suplício infernal dos escritores. E se algum brincalhão de mau gosto apregoasse pelas ruas de Paris que o meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à gargalháda e não deixaria de me interessar por tão precioso privilégio.

  Fosse-me permitido o paralelo entre o livro da Natureza e o meu e, creio que faria coisa assim como comparar uma boneca mecânica à Venus de Milo, viva, ou, então, as rodas do relógio apresentado a Carlos Magno pelo califa Harun al-Rashid, ao mecanismo do sistema universal.

  Todavia, não sereis vós quem há de elevar o meu trabalho às alturas da Criação natural. Se a boneca mais insignificante e o mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam identificar um arquitecto na sublimada harmonia do edifício cósmico?

  Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário, imaginado em torno da acção sensível do Criador e mediante o qual pretendamos limitar a sua presença, a ideia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com singular subtileza. Essa propriedade particular da ideia do ser incriado manifesta-se em cada conclusão do nosso arrazoado!

  Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo acordo a consciência do naturalista eminente com as pretendidas consequências da sua teoria da selecção natural. De resto, o tradutor feminino da obra teve o cuidado de nos advertir que, “em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em nada contrário à ideia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima satisfação que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do autor da Origem das Espécies: “Não vejo em que possam as teorias expostas nesta obra melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por demonstrar quanto são inconscientes essas impressões, basta lembrar que a maior das descobertas humanas – a da lei de gravitação – foi hostilizada pelo próprio Leibnitz como subversiva da religião natural. Um notável autor sacro escreveu-me, em tempos, ter chegado gradativamente a convencer-se de que a criação divina das formas simples, originais, capazes de por si evoluírem e se transformarem em formas úteis, era a concepção mais justa e compatível com a majestade do Supremo Ser, do que presumir a necessidade de um novo acto criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcionamento das suas próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente satisfeitos com a hipótese da criação independente de cada espécie. A meu ver, o que conhecemos das leis impostas à matéria, pelo Criador, está mais de acordo com a formação e extinção dos seres presentes e passados por causas secundárias, semelhantes às que determinam o nascimento e a morte dos indivíduos. Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas como descendentes em linha directa de seres que viveram anteriormente aos depósitos do período Siluriano, eles me parecem enobrecidos.”

  Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:

  “Que interesse nos desperta o espectáculo de uma praia coberta de vegetação, pássaros a cantar, insectos a esvoaçar, anelídeos ou larvas rastejando no solo húmido, ao pensarmos que todas essas formas elaboradas com tanto cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de outras por uma série de relações complicadas, foram todas produzidas por leis de uma contínua actividade em torno de nós! Essas leis, tomadas no seu mais lato sentido, enumeramo-las aqui: – de crescimento e reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas precedentes; de variabilidade sob a acção directa ou indirecta das condições exteriores da vida, e do uso ou da falta de exercício dos órgãos; da multiplicação das espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência vital e a eleição natural e, daí, a divergência de caracteres e extinção das formas específicas.

  “É assim que, da guerra natural, da fome e da morte, resulta o mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a formação lenta dos seres superiores. No encarar a vida e as suas potências animando originariamente algumas ou uma única forma simples, ao influxo do Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com as leis fixas da gravitação, formas inumeráveis, cada vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolverão, mediante uma evolução sem fim”. (*)

  Declarações interessantes que importa registar, para opô-las aos nossos materialistas.

 Pretendem estes que a doutrina da geração espontânea, sustentada pelo Sr. Pouchet e a da origem das espécies, amparada pelo Sr. Darwin, destroem, ambas, a ideia de Deus, e eis que, nem um nem o outro admite essa acusação e protestam contra a ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais, são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim, como novos dados, este duplo e valioso facto. Em primeiro lugar, os materialistas não têm o direito de se apoiarem na geração espontânea para concluir pela não existência de Deus:

  1º – porque essa geração não está provada, e

  2º – porque, se o estivera, não acarretaria uma tal consequência.

  Em segundo lugar, não têm o direito de afectar ao seu ponto de vista o sistema do transformismo das espécies, já porque tal sistema não está provado, e já porque ele não afecta a questão dominante das origens da vida.

  Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores são formados por geração espontânea, no âmago da matéria inorgânica, haveria grandes probabilidades para crer que assim sucedesse e, com maioria de razão, com a origem das espécies. Os partidários das transformações específicas chegaram mesmo a apoiar-se na doutrina das gerações espontâneas para explicar a existência, ainda hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar da tendência das espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ainda hoje se encontra nesse intervalo. Era a opinião de Lamarck. Cumpre observar que o chefe do movimento actual não compartilha tais ideias e nem mesmo acredita na geração espontânea. “A selecção natural – diz Darwin – não afecta nenhuma lei necessária e universal de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer variação que se apresenta, quando vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho apenas necessidade de aqui dizer – declara ele mais à frente – que a Ciência no seu estado actual não admite, em geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio da matéria inorgânica.”

  Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores, que proclamam as doutrinas por nós combatidas e sim pretensos filósofos, que, apoderando-se dos estudos científicos daqueles, querem, a toda a força, tirar conclusões repudiadas pelos próprios cientistas. Temos o dever de lhes desmascarar o jogo e demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores ilustres, que, se o sistema materialista se obstina ingenuamente a exibi-los em público, assentes no seu palco teatral, não passa isso de mero efeito fantasmagórico, pura ilusão óptica.

  Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Frémy, que pensou ter notado corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como porta-bandeira do materialismo para a hipótese da geração espontânea. Pois vejamos o que disse este químico no Instituto:

  “Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a ideia de geração espontânea, tomada no sentido da produção de um ser organizado, por mais simples que seja, com elementos que não possuem a força vital. A síntese química permite, sem dúvida, reproduzir grande número de princípios imediatos de origem vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma barreira intransponível às reproduções sintéticas. Ao lado dos princípios imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há outras substâncias menos estáveis que as precedentes, mas também muito mais complexas quanto à sua constituição e que podem ser designadas sob o título genérico de corpos semi-organizados.

  “Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização, com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a putrefacção, quase no mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às influências do ar, do calor e da humidade.

  “Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas também podem sair desse estado à custa da própria substância, sob os elementos de organização, desde que as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”

  Na actualidade não se pode, portanto, cientificamente, depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada está longe de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o facto. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, nas asas de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, uma vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objectam os gracejadores, lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Um súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.

  “E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse Deus, então: Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que voem acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a terra.

  “E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus disse, então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito”. (**)

  Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De resto, os Santos Padres professaram essa doutrina. Alexander von Humboldt achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o povoamento das ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea (Generatio aequivoca apontanea atst primaria). “Se os anjos ou os caçadores do continente – diz esse Pai da Igreja – não transportaram animais a essas ilhas afastadas, é forçoso admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por que encerrar na Arca animais de toda a espécie?” Dois séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compêndio de Trogue Pompée, já estabelecida a propósito da dissecação primitiva do mundo antigo, do planalto asiático, analogia com a geração espontânea ou, seja, uma ligação semelhante à que se depara na teoria de Linnaeus, acerca do paraíso da Terra, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa.

  Quanto ao mais, sem que pese à energia dos seus discursos, estes Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente, em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão lançam sobre o mistério o véu dos talvez; em vão se entretêm a imaginar mil metamorfoses

  Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui glosar para edificação do auditório. “Enigma insolúvel – diz B. Cotta – que não podemos deixar de atribuir à potência imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgânicos.” Eis uma confissão digna de um espiritualista. Büchner, por outro lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um papel mais importante nos tempos primitivos com relação aos actuais, visto não se poder negar que ela tenha engendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo: “Verdade é que nos faltam provas e mesmo conjecturas plausíveis dos pormenores desses espécimes, o que estamos longe de negar.” E, voltando à ideia dominante, declara imediatamente que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem intervenção de qualquer força exterior”.

  Karl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças físico-químicas conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem dos organismos. Todo o ser vivo, vegetal ou animal, tem a sua origem essencial na célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem essencial foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é que começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse sucedido uma única vez – diz o autor das Lições sobre o Homem – mediante acção simultânea de factores diversos, que não conhecemos, é lícito concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos químicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificação devesse determinar imediata modificação no objecto produzido, isto é, na célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre toda a superfície terrestre, as mesmas causas tenham actuado e ainda actuem nas mesmas condições e com a mesma energia, na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessariamente, que as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de desenvolvimento diferentes.”

  Virchow não explica melhor a questão de origem. “Em certa fase de desenvolvimento da Terra – diz – sobrevieram condições anormais, sob as quais, entrando nas novas combinações, os elementos recebiam o movimento vital, donde as condições ordinárias se tornaram vitais.”

  Quanto a Charles Darwin, em vão temos rebuscado a sua opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se ele com o explicar a variabilidade possível dum certo número de tipos primitivos e, é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate absolutamente dessa origem!

  O problema é obscuro: a distância do nada a alguma coisa é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem as nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas, todos perseguimos o inexplicável mistério da vida. Porque não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos voltar à questão e fácil nos seria pôr todas as vantagens do nosso lado; poderíamos impor Deus aos adversários, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a Ciência que as afinidades da matéria possam criar a vida, o papel do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que o demonstrasse, a origem e o entretenimento da vida deixam ver claramente a existência de uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto.

  Tal, porém, é a força da nossa estratégica, que jamais queremos abusar de uma posição privilegiada e preferimos combater sempre em paridade de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos adversários, para sua edificação momentânea e baixando, logo a seguir, das alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da organização da vida, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo problema dessa mesma vida. Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da organização, a existência do Ser inteligente não esteja soberanamente demonstrada. Ainda mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar espontaneamente em dadas circunstâncias materiais e, ainda que os seres primários se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma prova irrefutável da soberania da força coordenada. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o que faz. Assim, também, chegasse o homem a descobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou dos vermes intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, apenas, constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes superiores aos seus e mediante processos que, a despeito de sua inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (supondo que lá chegasse).

  Mas, finalmente, nem por isso a causa da razão divina restaria mais esclarecida.

/…
(*) Da Origem das Espécies. Últimas notas.
(**) Génese


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (1 de 3), 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

o grande desconhecido ~


Os três corpos do homem ~

O problema dos corpos humanos tem longa e confusa tradição, baseada em revelações antigas e entremeada de superstições populares. Na tradição cristã firmou-se a teoria dos dois corpos referidos pelo Apóstolo Paulo na 1ª Epistola aos Coríntios: o corpo animal ou material e o corpo espiritual. Kardec pesquisou o assunto com a insistência e o rigor que o caracterizavam e chegou a conclusões objectivas de que o homem é dotado de três corpos, que são:

a) o corpo animal ou material mencionado por Paulo, que é o corpo orgânico sujeito à destruição pela morte;

b) o corpo espiritual referido por Paulo, que Kardec verificou ter uma constituição semi-material, com energias espirituais e materiais em mistura, destinado a ligar a alma ao corpo e a servir à ressurreição logo após a morte; esse corpo não está sujeito à morte material, mas à transformação após a morte para servir na ressurreição, e sujeito à destruição por abusos do espírito no plano espiritual inferior e às modificações exigidas por futura reencarnação, para se adaptar a novas formas e a novas determinações genésicas e hereditárias;

c) o corpo espiritual superior, desprovido de matéria, em que o espírito, livre daquele envoltório, vive a vida eterna de que falam as religiões; esse corpo é inacessível à nossa percepção, a não ser como uma centelha etérea, segundo a expressão Kardeciana; é o corpo natural do espírito no seu estado de pureza espiritual e só pode ser usado pelas entidades que atingiram a finalidade das reencarnações, deixando o plano da erraticidade.

A trindade humana, constituída de EspíritoPerispírito e Corpo, realiza assim a transformação de que trata o Apóstolo Paulo, atingindo a síntese suprema da evolução nos corpos inferiores. Dessa maneira, o corpo espiritual superior reflecte na sua estrutura angélica real e indestrutível:

a) A Trindade Universal de Deus, Espírito e Matéria;

b) A Trindade doutrinária de Ciência, Filosofia e Religião.

São essas as duas Trindades Superiores, referentes à concepção do Cosmos e à concepção da Doutrina Espírita.

Temos assim a comprovação, no mais alto plano da realidade espiritual, do princípio doutrinário enunciado em O Livro dos Espíritos: Tudo se encadeia no Universo.

Por outro lado, essa comprovação da eterna sequência das coisas e dos seres revela-nos a integração do Espiritismo na realidade cósmica, na correspondência perfeita da Realidade Total com a fragmentária realidade parcial das coisas finitas e dos seres perecíveis, que na verdade não perecem nunca, passando apenas pela lei universal da metamorfose, que a tudo impulsiona sem cessar nas linhas ascensionais da transcendência. Ela nos revela, também, a perenidade da Doutrina Espírita cujas marcas, segundo Kardec, são encontradas em todas as fases a-históricas e históricas da evolução terrena.

Esta concepção cósmica do Espiritismo, que ressalta dos textos de Kardec, como vimos, confirma a Doutrina das Ideias, de Platão, que nos apresenta o mundo fragmentário da matéria como reflexo estilhaçado da Realidade Superior, una e perfeita na Mente de Deus. Platão é o reflexo do pensamento de Sócrates, e Kardec considerou a ambos como precursores da Ideia Cristã. Na actualidade temos a mesma confirmação no rápido e espantoso desenvolvimento da Ciência terrena, que comprovou no nosso tempo a realidade do Espiritismo com a descoberta dos fenómenos paranormais, da plenitude do Universo (onde o nada não existe e o nada não é nada, segundo a expressão de Kardec), a existência das múltiplas dimensões da Realidade, na natureza subjectiva e portanto espiritual do homem na existência, a descoberta tecnológica do perispírito (corpo bioplásmico), a interpenetração dos mundos num mesmo espaço, o poder assombroso do pensamento, a possibilidade de invasão do Cosmos por naves e astronautas e assim por diante.

A luta contra a realidade, na defesa de ilusões teológicas e ideológicas, não cessou e até mesmo se acirrou. Recursos escusos do meio científico, do campo religioso e de certos Estados, cujas estruturas política e social repousam em pressupostos do século passado, são mobilizados contra essas conquistas, num desesperado anseio de diminuir-lhes o alcance e a significação. Na URSS e sua órbita a questão é de sufocar a qualquer custo todas as possibilidades científicas que se oponham ao materialismo de Estado. Nos Estados Unidos e outras potências ocidentais são os interesses políticos e eleitorais que se mobilizam na defesa dos interesses religiosos de igrejas e seitas retrógradas, apegadas a princípios arcaicos, envelhecidos de quatro a seis mil anos, para asfixiar ou minimizar as novas descobertas. Chega-se ao ponto, em instituições científicas ou para-científicas, de tentar encobrir a realidade do plasma físico, de que se compõe o corpo bioplásmico, com o frágil disfarce do efeito corona. Os valores falhados dos dogmas religiosos e os interesses materiais imediatos dos clérigos e dos seus rebanhos fanáticos são super-postos à verdade crua e ardente das pesquisas científicas, para salvaguarda das estruturas simoníacas das instituições religiosas, em que dormem à tripafórra os devoradores de dízimos estabelecidos pelos rabinos judeus no Templo de Jerusalém, numa civilização agrária e pastoril. A estrutura do Estado é também ameaçada pelo fantasma de matéria radiante do corpo bioplásmico, que afecta poderosos interesses criados, tradições invioláveis, a glória de messias e profetas que descobriram tábuas de ouro nas montanhas provando que o Cristo pregou em terras da América, semeando verdades mirabolantes para os apaches de cara pálida e os fogosos peles-vermelhas de penachos coloridos.

Este quadro grotesco da realidade mundial no nosso tempo não precisa de pinceladas à Van Gogh para torná-lo mais forte e impressionante. Basta a sua realidade nua para mostrar a rede de mentiras em que caímos no passado, com as falsas culturas religiosas que, nascida das entranhas do paganismo ingénuo, da idolatria supersticiosa e do fabulário mitológico, se revigorou nas estruturas sócio-económicas do profissionalismo religioso.

As mesmas forças que se opuseram, de maneira agressiva e violenta, ao desenvolvimento das pesquisas científicas no Renascimento, continuam a agir, agora de maneira mais subtil e por isso mais profunda, mais penetrante e ameaçadora, contra o avanço e desenvolvimento da Ciência no nosso tempo. Claro que essa batalha inglória será vencida pela simples evidência da realidade, que nunca pediu nem pede licença aos homens para aparecer e impor-se. Mas essas forças retrógradas conseguem retardar a libertação do homem, num mundo em que a maioria absoluta da população não tem possibilidade de penetrar nos segredos da Ciência, nem tempo disponível para tentar essa façanha, permanecendo à margem da cultura do século e por isso mesmo obrigada a contentar-se com as crenças e superstições de um passado remoto.

A constituição semi-material do perispírito, segundo Kardec, foi confirmada pela descoberta russa de que o corpo bioplásmico é formado de plasma físico. Para os russos, isso seria uma prova favorável à ideologia do Estado, mas a prova seguinte, de que esse corpo sobrevive à morte do corpo, escapando às possibilidades tecnológicas de sua captação visual ou fotográfica, incidiu na condenação materialista, por atentar contra o dogma do homem-pó. É essa a mais espantosa contradição do nosso século. A própria potência que enviou à órbita da Terra o primeiro Sputnik e tanto exalta o poder do homem, negando a existência de Deus, nega ao homem e à sua personalidade, a sua inteligência criadora, o direito que a Ciência concede a todas as coisas e seres: o da continuidade de após o acidente natural da morte. Tudo morre e renasce, menos o homem, a mais complexa e perfeita organização psico-biológica, com o mais poderoso cérebro e a mais penetrante das mentes.

A ojeriza (*) materialista é contra a teoria da sobrevivência individual. Tudo morre e renasce, segundo eles, revertendo-se ao pó para novas elaborações ocasionais. Os valores espirituais ficam na dependência exclusiva dos caprichos de algum alquimista medieval que nunca morreu. Não obstante, sustentam a teoria da evolução contínua, incessante e criadora, que o homem pode controlar. Há tantas contradições nas doutrinas religiosas do mundo, quanto nas doutrinas materialistas. Por isso, onde uma delas domina, os cientistas e pensadores sinceros e objectivos, que buscam a realidade, experimentam no nosso século as mesmas discriminações, condenações e expurgos. A realidade da sobrevivência individual do homem, provada na Universidade de Kirov, deslumbrou os seus descobridores e revelou as possibilidades inesperadas que pode abrir para a evolução terrena, mas os comissários do povo, agindo contra a vontade generalizada de um povo de intensa e profunda tradição espiritual, rejeitaram a descoberta em nome do povo. Mas a verdade é que a explosão mediúnica no mundo não pede licença a comissários, nem a padres, pastores ou cientistas para continuar a existir.

A luta do homem para vencer a sua esquizofrenia, restabelecendo a unidade do espírito perante a realidade material do mundo, vem das selvas aos nossos dias. A razão humana, servida pela experiência, venceu os conflitos do caos aparente da Natureza e estabeleceu as conexões necessárias entre não física e a realidade física para dominar o caos. Todas as filosofias e todas as ciências se desenvolvem nesse sentido, mas o chamado Materialismo Científico ergueu a sua barreira, juntamente com a barreira teológica – ambas formadas de dogmáticas exclusivistas – para impedir a ferro e fogo que o homem alcance o real. Hoje, para que a verdade se estabeleça na cultura humana, é necessário que o Espiritualismo formalista e o Materialismo Científico se neguem a si mesmos, revertendo-se na síntese hegeliana de uma cultura objectiva e aberta.

Ernst Cassirer, no seu ensaio sobre A Tragédia, da Cultura, cujo desenvolvimento superou a capacidade humana de dominá-la, esqueceu-se deste problema fundamental que Kardec já havia colocado há mais de um século. A grande tragédia cultural do nosso tempo não é o acúmulo cada vez maior de conhecimentos e a atomização das especialidades, mas a impossibilidade material de vencer as barreiras dogmáticas, cada vez mais reforçadas pelos interesses criados nos dois campos dogmáticos.

Os três corpos do homem têm funções gerais e específicas, desdobrando-se em planos sucessivos de manifestação, a partir do contexto humano. Vejamo-los nesse encadeamento em que eles parecem um foguete espacial, indo da Terra ao Infinito, no abandono sucessivo dos estágios inferiores:

a) o corpo material é o que define, na concepção terrena, o que geralmente se considera como a condição humana. Provindo da evolução animal, Paulo teve razão em chamá-lo corpo animal. Todo o seu sistema psico-biológico é a resultante do processo evolutivo terreno. Todos os seus instrumentos de captação da realidade funcionam em ritmo de estímulo e resposta. A sua razão constitui-se de categorias formadas na experiência. Não obstante, o seu espírito supera esse condicionamento através de percepções extra-sensoriais, de intuições imediatas e globais de um conjunto gestáltico que vai arrancando-o do imediatismo vivencial para lançá-lo no plano existencial consciente. A organização animal do corpo é mantida e dominada pelo espírito, onde razão e consciência se desenvolvem paralelamente. A evolução de um homem verifica-se pelo desenvolvimento da razão e da consciência num plano superior de critério cada vez mais espiritualizado. O homem se liberta de suas raízes animais e prepara-se para a transcendência. Frederic Myers, psicólogo inglês dos fins do século passado, considera que o inconsciente humano é uma segunda consciência, a que chama de subliminar. Enquanto a consciência subliminar detém as faculdades necessárias à vida terrena, a consciência supra-liminar auxilia aquela, através de emersão de ideias, sensações profundas e intuições, a desenvolver-se no plano extra-sensorial. É da consciência supra-liminar que provêm as captações extra-sensoriais. É nela que encontramos a fonte da genialidade e dos fenómenos paranormais. Essa consciência pertence ao perispírito.

b) O perispírito, corpo espiritual ou corpo bioplásmico, possui, na sua estrutura extremamente dinâmica, os centros de força que organizam o corpo material. É o modelo energético previsto com grande antecedência por Claude Bernard. Os pesquisadores russos compararam esse corpo, visto através das câmaras Kirlian de fotografia paranormal, em conjugação com o telescópio electrónico de alta potência, a um pedaço de céu intensamente estrelado. Esse é o corpo da ressurreição espiritual do homem, dotado de todos os recursos necessários para a vida depois da morte. Esse corpo de plasma físico e plasma espiritual vai perdendo os seus elementos materiais na vida espiritual, na proporção exacta da evolução do espírito. Nas pesquisas russas verificou-se que, na produção de fenómenos mediúnicos de movimentação de objectos sem contacto, levitação e transporte, o elemento empregado é o plasma, o que confirma as pesquisas de Richet e de Notzing sobre o ectoplasma. Essa é uma das razões por que esses fenómenos só são produzidos por Espíritos inferiores, que Kardec comparou a carregadores do espaço ao serviço de entidades superiores. Os exames de porções de ectoplasma em laboratório revelam apenas a constituição física do mesmo. O elemento mais importante e vital do ectoplasma é a energia espiritual, que não permanece nas porções colhidas pelos pesquisadores. Nesse corpo, segundo os pesquisadores russos, as condições de doença e saúde e a previsão de doenças nas plantas, nos animais e no homem são feitas com grande precisão através das variações de cores do plasma e um sistema de sinais coloridos ainda em estudo.

c) O corpo espiritual superior destina-se à vida nos planos mais elevados do Mundo Espiritual. Não se pode considerá-lo como um instrumento de comunicação, pois constitui-se do próprio espírito na sua exterioridade natural. Kardec assinala que esses Espíritos Puros não têm mais nada com a matéria, nem a matéria os afecta. Mas como têm forma e são criaturas humanas elevadas ao máximo grau da perfeição espiritual que os homens podem atingir, o seu corpo é de luz. Na verdade, não dispomos de palavras nem de ideias para imaginá-los ou descrevê-los. No seu plano superior não veríamos nem sentiríamos nada. No tocante a eles, a pesquisa de Kardec reduziu-se a diálogos com os seus instrutores. Por outro lado, socorreu-se da lógica, como sempre fez, para dar as informações que encontramos na Escala Espírita.

Kardec considera esses Espíritos Puros como os Ministros de Deus, através dos quais a administração de toda a Realidade Cósmica se processa em todos os sentidos. Quando nos conhecermos a nós mesmos, segundo a recomendação do Oráculo de Delfos a Sócrates, poderemos imaginar o que são essas criaturas e como vivem e agem no Inefável, segundo a concepção pitagórica. Antes disso, é inútil nos esforçarmos para defini-las. Só com o desenvolvimento de toda a nossa perfectibilidade possível, como queria Kant, conseguiremos obter os parâmetros capazes de nos dar uma pálida visão dessa vida superior. Kant referia-se à perfectibilidade possível na vida terrena. Acima desta existem os planos espirituais progressivos e, depois deles, o plano da Angelitude, que é precisamente o dos Espíritos Puros.

Não podemos atrever-nos a solucionar esse problema, cujos dados nos escapam. Há questões que não podem ser tratadas no nosso estágio evolutivo. Mas já é importante possuirmos algumas informações provindas de entidades que passaram pelos testes rigorosos de Kardec. O Espírito Puro é para nós uma abstracção, como abstracção também é a Matemática, de que nos servimos para medir e pesar o mundo. O que precisamos evitar, no estudo dos corpos do homem, é o fascínio da imaginação, que costuma levar-nos além de toda a realidade possível.

Várias instituições espiritualistas do mundo criaram complicadas teorias sobre os corpos do homem, chegando a dar-lhes o número atordoante e cabalístico dos véus de Isis. No próprio movimento espírita, que devia aprofundar o conhecimento da sua própria doutrina, ainda tão mal conhecida e pior compreendida, pretensos mestres introduziram conceitos estranhos sobre esse problema. Kardec negou-se a estas fascinações do maravilhoso, lutou para afastar da mente humana os resíduos mágicos do passado, dando à Doutrina Espírita a clareza positiva da Ciência, sempre apoiado na razão e na pesquisa. O seu esquema tríplice dos corpos do homem é uma síntese luminosa de todos os esforços da Humanidade para compreender essa questão de importância fundamental. Não podemos deixar-nos levar pela vaidade ingénua e fátua de aparecer como sábios perante as multidões incultas, vangloriando-nos como pavões do colorido fictício da nossa plumagem. O Espiritismo busca a verdade pura, que é sempre simples, pois não necessita de visagens para impor-se às mentes perquiridoras e sensatas. Deixemos de caudas brilhantes fascinando os imaturos e tratemos de amadurecer no exame objectivo da realidade acessível ao nosso conhecimento imediato. Aprendamos a distinguir a pureza lógica do Espiritismo das fábulas religiosas e espiritualistas que se cevam, através dos milénios, no gosto do homem pelo maravilhoso. Não há maravilha maior do que a da Obra de Deus na sua realidade pura. Qual o fabulário mitológico que pode sobrepor-se ao mistério e à beleza de um só microscópico sistema solar atómico ou de uma folha verdejante de relva brotando entre as pedras da calçada? O tempo das figurações simbólicas já passou, para a Humanidade Terrena, como a dos Contos da Carochinha já passou para as crianças de hoje. Elas mesmas, as crianças, exigem a verdade das coisas naturais em substituição às fantasias imaginosas do passado. Os espíritas não têm o direito de menosprezar as lições do Espírito de Verdade, ministradas por Kardec, em favor de mentiras ridículas que vão buscar poeira de civilizações mortas, cujo próprio desaparecimento atesta que se esgotaram no tempo. Tenhamos a humildade de nos contentar com os nossos três corpos, ao invés de buscarmos em ruínas milenares os corpos das múmias faraónicas soterradas na areia. Estudemos o nosso passado de ilusões e atrocidades para nos corrigirmos no presente, mas não tentemos colocá-lo acima da realidade límpida e positiva que o Espiritismo nos proporciona.

/…
(*) Sentimento de má vontade, aversão, antipatia gerado pela intuição, por uma percepção, um ressentimento.


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XIV – Os três corpos do homem, 14º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)