Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~
(III) 

  Buffon (iescreveu que génio é paciência. Lembrámo-nos, então, de Keple (i) procurando durante dezassete anos as três leis imortais que o recomendam à posteridade, leis que regem o sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento da Lua em volta da Terra. Falaremos de Newton (i), comedido, respondendo a quem lhe perguntava como descobrira a gravitação: – foi pensando sempre nela. Citaremos todos esses ilustres sábios que nas suas lutas só tiveram por arma a inteligência. Invocaremos os trabalhos solitários de Harvey (i), Carlos Bonnet, Jenner (i) (*). Recontaremos as tremendas dificuldades que tiveram de vencer, animados do fogo sagrado, esses inventores que se chamaram Watt (i), Jacquard (i), Girard (i), Fulton (i), Stephenson (i)Diremos dos labores intelectuais que exigiram as nossas vias-férreas, a navegação a vapor, a telegrafia, magníficos inventos nos quais celebramos o espírito que não a matéria? Invocaremos os arroubos artísticos de um Miguel Ângelo (i), de um Ticiano (i), de um Cellini (i), de um Poussin (i)? Recordemos esta frase de Bayle (i), escrita de Milão, em 1820, a propósito de um artista chamado Meyerbeer: – “é homem de algum talento, mas não genial, vivendo solitariamente e trabalhando quinze horas por dia”. Contudo, se quiséssemos historiar as provas rudes que flagelaram os génios mais possantes, haveríamos de baixar aos nomes ignorados, de quantos mergulharam nessas águas revoltas, vítimas da sorte, não da descrença, como Chénier (i) decapitado, ou como Gilbert (i) lutando contra o egoísmo universal. 

  Haveríamos, também, de convocar os que sucumbiram gloriosamente. – Giordano Bruno (i) preferindo a morte a uma retratação fictícia, Campanella (i) sete vezes torturado e sucumbindo sem deixar de satirizar os seus algozes; Jeanne D'Arc (i) que salvou a França, Sócrates (i) que salvou a Filosofia e preferiu a cicuta à mentira, o velho Pedro Ramus (i) estrangulado na noite de São Bartolomeu, em que também teria perecido Ambrósio Paré (i), se Carlos IX não levasse em conta os seus préstimos pessoais e, enfim, todos os mártires da Ciência, da Religião, do progresso, inclusive os que tombaram nos circos romanos, devorados pelas feras e suplicando a Deus pelos seus irmãos. Fossem quais fossem as crenças, as ideias que essas criaturas defendiam até à morte, sem lhes apreciarmos o valor real das causas que abraçavam, a sua memória imperecível só nos merece respeitosa veneração. São vultos que nos mostram que o homem não é somente um composto de matéria orgânica e que a energia, a perseverança, a coragem, a virtude, a fé, não são atributos da composição químico-cerebral. Do fundo de seus sepulcros eles proclamam que os pretensos sábios, que ousam identificar o homem com a matéria inerte, não se rodeiam do valor humano e jazem na mais tenebrosa ignorância das verdades que fazem a glória e a felicidade do ser. 

  E supondes seja necessário interrogar a tradição histórica para responder, também com argumentos e exemplos irresistíveis, a essa pretensão cega de negar os factos de ordem puramente intelectual, conceituando tão superficialmente o Espiritualismo e a Moral? 

  Não; não é somente nas altas esferas que o observador admira esses edificantes exemplos. Em todas as camadas sociais, do prócere da Ciência ao rústico analfabeto, do trono ao grabato (i), a vida quotidiana oferece, no santuário da família, esses mesmos padrões de coragem e abnegação, de paciência e grandeza d'alma, de energia e virtude, que, por desconhecidos, não são menos meritórios no seu valor intrínseco, do que os precedentes. 

  Quantas almas padecem em segredo sem revelar os seus martírios, curvadas à injustiça, vítimas do destino, dessa fatalidade impenetrável que persegue tantas criaturas boas e justas? 

  Quantos corações magnânimos palpitam em silêncio e abafam chamas capazes de incendiar o verbo e levantar multidões, se, ao invés de definhar na sombra, se espanejassem ao sol da popularidade? Quantos génios ignorados por aí dormitam num isolamento infecundo? Quantas almas santas e puras a se consagrarem a uma vida inteira de abnegação, de amor, de caridade? E quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta paciência e humildade, não recebem mais que ingratidão e desprezo daqueles mesmos a quem amam? 

  O último reduto dos nossos adversários assenta no sistema dos pendores naturais, como a declararem que estes factos de ordem mental não são mais que o resultado das inclinações dos espíritos credores de nossa admiração. Se Palissy se obstinou dezasseis anos à procura do esmalte, seria a isso arrastado por uma inclinação especial. Se Colombo não esmoreceu diante do cepticismo dos coevos e das revoltas de sua equipagem, é que uma tendência do seu cérebro o encaminhava irrevogavelmente para o Novo Mundo. Se Dante concluiu a Divina Comédia, ainda que posto a ferros e expatriado, é porque a lembrança de Beatriz e as guerras Civis italianas lhe espicaçavam a fibra poética. Se Galileu, septuagenário, se viu constrangido a abjurar de joelhos as suas convicções mais íntimas, assinando a sentença iníqua que proibia a Terra de girar, não pensem que houve em tudo isso humilhação, pois apenas teria experimentado uma ligeira contrariedade das suas inclinações. O facto de Carlota Corday partir de sua aldeia para apunhalar Marat em Paris não significa que tivesse a convicção íntima de salvar a pátria de um seu presumível salvador, mas, apenas, que tivesse uma exaltação cerebral. Se, durante as cenas monstruosas de terror, se viram mulheres que pediam aos carrascos a graça de morrer com os maridos, subindo firmes o patíbulo; se, em todos os tempos históricos, temos visto vítimas voluntárias oferecerem-se para salvar entes amados, ou com eles morrer, é tudo fruto de inclinação natural, ou resultado de certos movimentos cerebrais! 

  Resumindo: os actos mais sublimados de virtude, de piedade filial, devotamento, amor, grandeza d'alma, são oriundos de disposições orgânicas, ou de qualquer súbito desvio das funções normais do cérebro. Se o Cristo subiu ao Calvário, não se considere isso o sacrifício extraordinário de um ser divino, mas simples movimento revolucionário de algumas moléculas imprudentes... É, assim, a míseras escórias, que reduzem as mais ricas gemas da coroa que cinge a fronte da Humanidade. Esta, contudo, não se deixa assim degradar, não consentirá que mãos profanas lhe arrebatem a sua auréola. Para sustentar esses feitos de valor, algo mais se torna necessário do que uma agregação atómica de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combinação molecular. Vade-retro, negadores insensatos, que pretendeis reduzir a fórmulas tão ocas a definição do valor e das forças intelectuais. Predisposições orgânicas, inclinações naturais, faculdades mentais, a própria educação, que representa tudo isso senão palavras, desde que nos limitemos a manifestações da matéria bruta e cega e neguemos a existência do espírito? Que representam a Química, a Física, a Mecânica, diante da vontade que dobra o mundo à sua lei e dirige a seu assentimento a matéria obediente? Ousam sustentar que o valor moral, a potência intelectual, o afecto profundo dos corações, o entusiasmo das almas fervorosas, a imensidade do olhar inteligente, as pesquisas do pensamento que sonda o espaço e faz resplandecer as leis universais, as meditações, as descobertas, as obras-primas da Ciência e da Poesia se explicam por transformações químicas – e quiméricas – da matéria em pensamento? Será que, para suportar essa energia anímica, não haja necessidade de uma força soberana, superior às alterações da substância, capaz de vencer todos os obstáculos, cuja influência se estenda muito além da vista física e seja mesmo a base desta força pensante, o seu substrato, o seu sustentáculo e a condição de sua potência? Será que a virtude resida noutro lugar que não na alma? – na alma independente, que os subterfúgios do mundo material não atingem; na alma espiritual, que ouve a voz da verdade e caminha em linha recta para o seu ideal, sejam quais forem os obstáculos que se interponham no caminho, as dificuldades que pretendam interceptar-lhe a marcha triunfal? 

  Toda a Humanidade protesta contra essas fúteis alegações e o faz já não com aquele critério baseado no testemunho dos sentidos, susceptível de enganar-se, como se dá, por exemplo, com o movimento dos astros, mas, com aquele senso íntimo que lhe vem da própria consciência. 

/… 
(*) A aceitação que teve a descoberta da vacina é um atestado típico dos obstáculos geralmente colocados a qualquer ideia nova, de maneira a desanimar inventores e sábios. Não faltou, diz Smiles, quem lhe caricaturasse a descoberta apresentando-a como susceptível de bestializar o próximo, com o introduzir no organismo matéria putrefacta, retirada das tetas de vacas doentes. Do alto das cátedras, foi a vacina denunciada como coisa “diabólica”. Chegaram a afirmar que as crianças vacinadas cresciam com “cara de boi” e que na testa lhes sobrevinham tumores, que “indicavam o lugar dos chifres e que a voz se alteraria com mugidos de touro”. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (3 de 6), 29º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

domingo, 3 de abril de 2022

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~ 
(II) 

  Os factos a seguir, de ordem geral ou particular e, as considerações que eles sugerem, oferecemo-los aos que repetem com Moleschott (i), Büchner (i) e o seu rancho, que o homem segue os seus pendores e a reflexão nada vale à face das inclinações e tendências, sejam elas naturais ou adquiridas. 

  Sábios, literatos, artistas, todos quantos se votam ao apostolado das mais transcendentes verdades e todos quantos se enobreceram pelas virtudes do coração, jamais saíram privativamente de uma classe ou de uma carreira da hierarquia social. Ao contrário, saíram indiferentemente das oficinas, como da lavoura, da cabana, como do palácio. E os mais humildes atingiram, por vezes, os postos mais culminantes, vencendo dificuldades aparentemente insuperáveis, que lhes atravancavam o caminho. Em muitos casos, parece que essas dificuldades foram os seus melhores auxiliares, obrigando-os a empregar todo o esforço possível no trabalho perseverante e, assim vivificando faculdades que, de outra forma, poderiam permanecer adormecidas. 

  O exemplo de obstáculos assim transpostos, os triunfos assim alcançados, são tão numerosos que justificam, quase inteiramente, este provérbio: com boa vontade tudo se consegue. 

  Grande número dos que mais se distinguiram na Ciência nasceram em condições sociais tidas como incapazes de proporcionar talentos, particularmente científicos. Em lugar das combinações químicas do hidrogénio e do fósforo, em lugar dos efeitos da electricidade e dos nervos, temos para apresentar estes grandes caracteres, que, do fundo das camadas sociais mais problemáticas, se elevaram aos pináculos da Ciência, a saber: Copérnico, filho de um padeiro polaco; Galileu, perseguido por amor à verdade; Képler, filho de um taberneiro e caixeiro de taberna, por sua vez, sempre atormentado com a sua miséria pecuniária; d’Alembert, enjeitado e encontrado certa noite invernosa pela mulher de um vidraceiro nas escadas de uma igreja; Newton, filho de um pequeno proprietário de Granthan; Laplace, filho de um pobre camponês de Beaumont, perto de Honfleur; W. Herschell, organista de Halifax; Arago, devendo toda a sua glória à perseverança no estudo desde jovem; Ampère, pesquisador solitário; Humphry Davy, criado de um farmacêutico; Faraday, encadernador; Franklin, aprendiz de tipógrafo; Diderot, filho de um cutileiro; Cuvier, Geoffroy Saint-Hilaire e cem outros; o físico Hautefeuille, filho de um padeiro de Orleães; Gassendi, pobre camponês dos Baixos-Alpes; o mineralogista Hüy, filho de um tecelão; Buffon, que exigia, para se levantar e combater a preguiça, que o acordassem a jactos de água fria (a sua saúde, mau grado ao que dizem os nossos adversários, para nada lhe serviu e os seus maiores trabalhos foram realizados no decurso de longa e cruel enfermidade); o químico Vauquelin, aldeão de Saint-André d’Hébertot (Calvados), que, depois de auxiliar de farmácia, chega a Paris de saco às costas, com um franco na algibeira. 

  Em que o azoto e o fósforo entravam na secreção da vontade destes sábios ilustres e, de que maneira o carbono se comportou para os levar ao fastígio da projecção intelectual? Mau grado às circunstâncias desfavoráveis com que tiveram de lutar no início da vida, estes homens eminentes alcançaram, apenas pelo exercício de suas faculdades, uma reputação sólida e duradoura, qual lhes não granjeariam todos os tesouros da Terra. 

  De nossa parte, citaremos agora os cirurgiões John Hunter, Ambroise Paré e Dupuytren, nascidos de condições humildes. 

  Conta-se que Dupuytren, quando no colégio da Mancha, ocupava com outro colega um quarto que tinha por todo o seu mobiliário três cadeiras, uma mesa e uma espécie de cama, na qual os dois se alternavam para descansar. Tão exíguos eram os seus recursos, que, muitas vezes, passavam a pão e água. Dupuytren começava o trabalho às 4 horas da manhã e nós sabemos, hoje, que ele foi o maior cirurgião do seu tempo. Citaremos, ainda, Joseph Fourrier, filho de um alfaiate de Auxerre e o naturalista Conrad Gessner, filho de um pobre curtidor de Zürich. Citaremos ainda: Pedro Ramas, Shakespeare, Voltaire, Rousseau, Moliére, Beaumarchais, grandes obreiros do pensamento, que derrubaram, exclusivamente com a sua força mental, as barreiras que as castas sociais opunham ao vulgo. 

  Fácil nos seria exarar infinitos exemplos deste quilate. Em todos os ramos da actividade humana – Ciências, Belas-Artes, Literatura, Comércio, Indústria – eles são tão numerosos que chegam a dificultar a escolha entre tantos homens notáveis cujo êxito lhes adveio somente do trabalho e do esforço paciente (ii). Basta, por exemplo, lançar um olhar nos domínios da Geografia e assinalar entre os grandes descobridores Cristóvão Colombo, filho de um cardador de Génova; Cock, caixeiro de uma loja no Yorkshire e, Livingstone, operário de uma fiação de tecidos perto de Glaacow. Entre os papas, Gregório VII nasceu de um carpinteiro, Sixto V de um pastor e, Adriano VI de um pobre canoeiro. Na sua juventude, paupérrimo, Adriano, que na impossibilidade de comprar uma vela, preparava as lições ao relento, aproveitando a iluminação pública. Ninguém vislumbra em tudo isto a influência do oxigénio. 

  Não é senão pelo exercício autónomo de suas faculdades que uma criatura pode adquirir o saber e a experiência que, reunidos, produzem a sabedoria. E, qual dizia Franklin, é tão pueril esperar a posse desses bens sem esforço e sem trabalho quanto o seria contar com uma colheita em terreno sem lavra nem semeadura. 

  Dois irmãos, provindos do mesmo Casal, podem receber a mesma educação, ter a mesma liberdade de acção, viverem juntos, nutrirem-se do mesmo ar e dos mesmos alimentos e nada impedirá que um se torne ilustre e o outro fique na mediocridade. A quanta gente se poderiam endereçar estas palavras do velho bispo de Lincoln ao irmão, homem indolente, que lhe pedia fizesse dele um grande homem: – “certo, se a tua charrua se partir posso mandar consertá-la e, se te morrer um boi posso comprar-te outro; mas não posso fazer de ti um grande homem, uma vez que lavrador te encontrei e sou obrigado a deixar-te como tal”. 

  Riquezas e bem-estar não são indispensáveis ao desenvolvimento das altas faculdades humanas, pois, se assim fora, não haveria no mundo e, de todos os tempos, notabilidades desabrochadas das mais ínfimas camadas sociais. A química alimentar nada tem que ver com a produção intelectual. 

  Longe de ser um mal, a pobreza, quando provida de energia e iniciativa pessoal, pode transformar-se em benefício, uma vez que faz sentir ao homem a necessidade de lutar com o mundo, onde, a despeito dos que compram o bem-estar a preços degradantes, também há confiança, justiça e triunfo para os valorosos e honestos. A fortuna há mesmo, muitas vezes, prejudicado os seus privilegiados. Em compensação, encontramos exemplos favoráveis à nossa tese, entre aqueles que, inspirados pela fé ou ciosos da felicidade do seu próximo, renunciaram, voluntariamente, aos gozos mundanos, aos poderes e honras da Terra, descendo de sua posição culminante para dedicar-se à beneficência e instrução das massas. 

  “O mundo é escravo da energia, dizia Alexis de Tocqueville, nem houve fase de vida na qual pudéssemos conceber o repouso; a luta interior e, mais ainda a exterior, é necessária e tanto maioritariamente necessária quanto mais envelhecemos. Comparo o homem a um viajante que caminha, sem parar, para uma região cada vez mais fria e que, quanto mais avança, mais precisa de se agitar. A grande enfermidade da alma é o frio e para combater esse mal temível é preciso, não só manter activo o espírito pelo trabalho, mas também pelo contacto com os seus semelhantes e com os negócios temporais.” 

  Estas palavras, justificou-as o seu autor com o exemplo pessoal. 

  Em plena actividade, ei-lo que perde a vista e, depois, a saúde, mas não perde nunca o amor à verdade. Ainda quando combalido ao ponto de ser carregado ao colo como uma criança, a sua indómita coragem não o abandona. Completamente cego e inválido, nem por isso termina a sua carreira literária, justificando-a com estas nobres palavras bem dignas de serem contrapostas à hipótese materialista. “Se, como me apraz acreditar, o interesse da Ciência se inclui no número dos grandes interesses nacionais, eu dei ao meu país o que lhe dá o soldado mutilado no campo de batalha. 

  “Seja qual for o destino dos meus trabalhos, também espero que este exemplo não fique perdido. Quereria eu que ele servisse para combater essa debilidade moral, que é a doença da nova geração; que pudesse reconduzir ao caminho recto da vida alguma dessas almas enervadas que se lamentam de lhes faltar a fé, sem saberem onde procurá-la e, que, procurando por toda a parte, em parte nenhuma encontram objecto de culto e devotamento. 

  “Por que dizer, com tanto amargor, que não há ar para todos os pulmões, emprego para todas as inteligências? Não temos aí o estudo sério e calmo? Não haverá nele um refúgio, uma esperança, uma carreira ao alcance de todos nós? Com ele, atravessamos os dias aziagos sem lhes sentir o peso. Com ele construímos o destino, usamos nobremente a vida. Eis o que faço e voltaria a fazê-lo ainda, se houvesse de recomeçar a marcha, a fim de reencontrar-me justo onde me encontro. Cego e sofredor. Posso dar um testemunho que, penso, não será suspeito: o de haver no mundo algo melhor e mais valioso que os gozos materiais que a fortuna e até a saúde: – o devotamento à Ciência.” 

  Preferimos sentimentos que tais à química da inteligência. Estendemo-nos confiadamente nestes exemplos porque, acima de tudo, dão testemunho do verdadeiro carácter do homem superior e da absurdidade dos materialistas que ousam reduzir esse carácter a simples função da matéria, a uma disposição natural do cérebro. Não queremos concluir o protesto sem falar em Bernard Palissy, homem cuja vida vale por um protesto formal à hipótese dos nossos adversários. 

  Lembremos, em primeiro lugar, que Palissy nasceu em 1510, sendo seu pai um pobre vidraceiro da Capela Biron. Não pôde, assim, receber a menor instrução; não teve, qual confessava ele próprio, “outro livro além do céu e da terra, que a toda a gente é dado ler e entender”. Aos vinte e oito anos, paupérrimo, instalou-se numa choupana, em Saintes, como agrimensor e pintor de vidros. Casado e pai de filhos cuja subsistência se lhe tornava impossível, concebeu a ideia fixa de fabricar loiça vidrada e imitar Luca della Robbia. Na impossibilidade de viajar pela Itália para aprender a técnica, houve de resignar-se a investigar, tateante, no ambiente acanhado em que se encontrava. 

  Depois de muito conjecturar sobre as matérias que entravam na composição do esmalte, fez demoradas experiências e acabou reunindo as substâncias que lhe pareceram adequadas. Comprou potes de barro comum, partiu-os e recobriu os fragmentos com as massas que preparava, submetendo-as ao forno para tal fim construído. As tentativas falhavam e o que só conseguia era potes partidos, com grande prejuízo de carvão, de substâncias químicas, além de tempo e trabalho. 

   Afrontando as lamentações da esposa, o choro dos filhos e a ironia dos vizinhos, nem assim desanimava. A sua companheira não se conformava em ver assim dissipar-se em fumo os já minguados recursos domésticos. Contudo, haveria de submeter-se, uma vez que o marido estava empolgado por uma ideia que ninguém e nada no mundo lhe desvaneceria. 

  As experiências prosseguiam por meses e anos. Descontente com o primeiro forno, construiu outro fora de casa. Neste, queimou outra lenha, desperdiçou outras drogas e potes, perdeu tanto tempo e dinheiro que acabou caindo em extrema miséria. No entanto, persistiu. Em obstinação cruel! 

  Não podendo já acender o seu forno, levava o material a uma fábrica distante mais de meia dúzia de quilómetros e o fracasso continuava. Desapontado, mas não desenganado, resolve, então, construir um forno para vidro, perto de casa. E o fez ele mesmo, com as próprias mãos. Conduzia da cerâmica, às costas, o tijolo; ajustava-o, esboçava-o; era pedreiro, carregador, ceramista, tudo! Ao fim de um ano, ei-lo com o seu novo forno e os vasos preparados para uma nova experiência. Apesar do esgotamento quase absoluto dos seus recursos, conseguira acumular grandes reservas de lenha. Acendeu o forno, recomeçou o trabalho, não perdia de vista a tarefa, um minuto que fosse. Dia e noite a postos, vigilante, ei-lo a meter lenha, a graduar o fogo e, contudo, o esmalte não derretia. Pela segunda vez vinha o Sol surpreendê-lo na faina e a esposa lhe trazia o parco almoço. Nada no mundo o tiraria da boca do seu forno, no qual, desesperado, lançava a lenha acumulada. O Sol recolhia-se e o nosso homem não. Pálido, desfigurado, barba crescida, sobreexcitado sim, mas heróico, indefesso junto ao forno, para ver quando o esmalte se fundiria. Um, dois, seis dias, enfim, transcorreram sem alteração. O invicto Palissy continuava a trabalhar, a vigiar, mau grado o desmoronamento de suas esperanças. 

  O esmalte não se fundiu.... Pôs-se, então, a contrair dívidas, a comprar novos vasos, mais lenha... 

  Os potes devidamente revestidos e cuidadosamente colocados no forno, ainda mais uma vez se acendeu o fogo. Era a última tentativa do desespero. Ele fez um braseiro enorme e, não obstante a alta temperatura, nada conseguiu. A lenha já escasseava. Como alimentar, até ao fim, aquele fogaréu infernal? Olhou em volta, os seus olhos incidiram na cerca do jardim, madeira enxuta, facilmente combustível. Que poderia valer aquela cerca comparada com a experiência cujo êxito dependeria, talvez, de algumas toras mais? As cercas foram arrancadas, lançadas na fornalha. Sacrifício inútil! 

  Ainda não seria desta vez... Mas dez minutos de calor – quem sabe – e tudo estaria conseguido... Lenha, portanto, mais lenha e só lenha, a qualquer preço, eis o que precisava! Que ardessem os móveis, contanto que não perdesse aquela experiência. Estrondo horrível se ouviu em toda a sua casa, logo seguido dos gritos da mulher e dos filhos, já agora temerosos de que o homem houvesse enlouquecido. Ei-lo que chega, sobraçando destroços de mesas e cadeiras! A fornalha tudo recebe, tudo devora. Não se funde o esmalte, ainda assim? Chega a vez dos soalhos... A família, diante disso, foge espavorida e vai pelas ruas a gritar que o seu chefe enlouquecera. A essa altura, o inventor encontrava-se absolutamente exausto, gasto de tantas lutas, jejuns, vigílias, sobressaltos. 

  Endividado e a coberto do ridículo, dir-se-ia presa de um desastre irreparável. E, contudo, acabara por descobrir o segredo, a última provisão de calor derretera o esmalte. Os vasos de barro escuro lá estavam transformados em loiça branca, que ele deveria realmente achar belíssima. Doravante, podia afrontar com paciência todos os remoques, ultrajes e recriminações. O homem de génio, graças à tenacidade na sua inspiração, acabava de colher a palma da vitória. Arrancara um segredo à Natureza e podia com mais calma aguardar os proventos da sua descoberta. 

  E não foi senão ao fim de dezasseis anos de labor assíduo e penosas experiências, que, isolado, aprendendo consigo, sem a ajuda de todos, pôde colher o fruto do seu esforço. Não tardou, porém, dada a sua independência de ideias em matéria religiosa, fosse denunciado e visse invadida e depredada a sua oficina por uma turba ignara e fanática, de conivência com as autoridades. E enquanto assim lhe destroçavam toda uma cerâmica preciosa, era ele preso e conduzido a Bordéus, onde aguardaria o cadafalso ou a fogueira. Salvou-lhe a vida o Condestável de Montmorency, não – diga-se – em atenção às suas crenças religiosas, mas às suas faianças. 

  Dali, foi a Paris, onde o chamaram os trabalhos encomendados pelo Condestável e pela Rainha-mãe, hospedando-se nas Tulherias, enquanto duraram esses trabalhos. Mas, a guerra incessante que movia os adeptos da Astrologia, da Alquimia e da bruxaria, acarretou-lhe uma nova denúncia como herético. Novamente preso, ficou cinco anos na Bastilha e ali morreu, em 1589, com a idade de oitenta anos. Assim acabou e assim foi recompensado o inventor da loiça esmaltada e das figulinas (iii)

  Diante deste magnífico exemplo de coragem e perseverança – não da coragem proveniente de uma exaltação nervosa, qual a produzem a cólera, o medo, o cheiro da pólvora, a música marcial, visto que nestes casos espontâneos os adversários poderiam alegar a sensação – mas, de uma energia que se desdobra por dezasseis anos afrontando todos os reveses; de uma vontade que ultrapassa todos os obstáculos como que avassalando o corpo e as afeições do sangue. Diante destes exemplos, dizemos, diante de todas as glórias da nossa espécie pensante; diante de todas estas chamas que se consumiram para brilharem na posteridade das gerações; diante dos anseios cordiais da Humanidade e diante dos testemunhos da sua própria consciência, com que direito se vem averbar de ilusão a vontade e de subsequente a força moral? 

  Com que direito ousam negar a energia independente e o carácter predominante destas almas de rija têmpera? A que pretexto reduzem a potência destes corações a estados fisiológicos, quando não a circunstâncias fortuitas? E como se leva a fantasia a estabelecer como princípio que “as nossas resoluções variam com o barómetro”? 

  Objectar-se-á que o benemérito ceramista, cujo perfil acabamos de traçar, representa uma excepção no seio da Humanidade? Mas, uma tal evasiva só poderá provir da ignorância e carência de observação. Nomes mais ilustres que o de Palissy fulguram por aí a outros títulos e nos quais admiramos a mesma obstinação e firmeza. 

/… 
(ii) Ver Flammarion – Les Heros du Travail, discurso Inaugural da Associação Politécnica do Alto Marne, (1866) e conferência pronunciada no Asilo Imperial de Vincenes. Compreende-se que não possamos aqui chamar a atenção para esses factos importantes e antepô-los simplesmente às fantasias materialistas. 
(iii) Este relato é parcialmente extraído de Self-help, edição de A. Talandier. Muitos outros tipos poderíamos apresentar como expoentes da independência e poder da vontade. Alongamo-nos sobre a vida de Palissy, por ser um exemplo dos mais eloquentes que contradizem a teoria adversa. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (2 de 6), 28º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895, pintura de James Jebusa Shannon)  

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~ 

  “Dizia Zelter a Goethe que um dos maiores obstáculos que impediam os alemães de falar o seu idioma tão espontânea e correntemente como os outros povos, provinha de certa pressão da língua, pelo facto de se alimentarem muito de vegetais e gorduras. É verdade que não temos outra coisa, mas a sobriedade e a prudência muito o podem remediar e corrigir” (ii)

  É com esta advertência que Moleschott (i) abre o grande capítulo epigrafado: “a Matéria governa o Homem”, sem perceber que a segunda frase do parágrafo traz consigo a condenação na qual ele se vai esbarrar, das correlações alimentares com o estado físico e intelectual do homem. Quando o velho companheiro de Goethe lhe observa que a sobriedade e a prudência podem fazer e corrigir muitas coisas, prova, por isso mesmo, que ele não se julga tão somente uma composição material, mas, também, uma força mental, capaz de tirar de si mesmo resoluções contrárias às tendências da matéria. Vamos, com efeito, acompanhar a argumentação materialista que, aqui como alhures, peca sempre pela base e não se mantém senão por uma espécie de equilíbrio instável, que um piparote de criança pode desmantelar. O adversário de Liebig pretende demonstrar que a matéria governa o homem, estabelecendo que a alimentação actua sobre o organismo. Como tema de Fisiologia, estes factos são interessantes e instrutivos e, a nós nos apraz o ensejo de os resumir aqui; mas, como tema de Filosofia, afiguram-se-nos como o que possa haver de mais incompleto. Consideremo-lo previamente: O quadro deste capítulo vai oferecer-nos, por sua própria natureza, um duplo aspecto. No verso, desenhado pela Fisiologia contemporânea, notaremos a acção física dos alimentos no organismo e, no reverso veremos que a mesma está longe de constituir o homem integral e que o ser humano reside numa potência superior às transformações da bílis e do quilo, potência que governa a matéria e está longe de a ela se escravizar.

  Invoca-se, em primeiro lugar, a diferença do regime alimentar, vegetariano ou carnívoro. Legumes e hortaliças contêm pouca água, poucas gorduras e quarenta vezes menos albumina que a carne. Analisando os sais contidos nestas substâncias opostas, concluíram que o regime carnívoro aumenta os fosfatos no sangue e, o vegetariano, pelo contrário, desenvolve os carbonatos. De resto, as substâncias albuminosas das partes verdes da planta não são a albumina, nem a fibrina. É preciso, pois, que elas sofram essa primeira transformação, antes de se incorporarem no sangue. As gorduras vegetais, por sua vez, não são verdadeiras gorduras, mas tão-só adipogenias, ou seja, elementos que originam gordura e, portanto, a precisarem sofrer uma primeira transformação. Há razão para dizer que a diferença de acção da carne começa a fazer-se sentir no sangue antes dele formado, isto é, na sanguificação (i), na digestão.

  Esses alimentos serão tanto mais facilmente digeridos quanto mais os seus elementos constitutivos se identificarem com os do sangue. Daí resulta que a carne, mais que o pão e os legumes, aproveita à sanguificação. O comprimento dos intestinos relaciona-se com esse processo de digestão, de acordo com as substâncias, permitindo-nos fazer dele uma ideia. Nos morcegos, que só se nutrem de sangue, o tubo intestinal não passa do triplo do comprimento do corpo. No homem, cujo regime é misto (o que igualmente se indicia pelo sistema dentário, composto de caninos e incisivos), o comprimento do intestino é o sêxtuplo da altura. No carneiro, herbívoro, o intestino é vinte e oito vezes mais longo que o corpo. Todos os animais carnívoros têm estômago pequeno. O estômago humano tem a forma de um reservatório, atravessando a cavidade abdominal, provido de um beco sem saída, maior que nos pré-citados animais. Os ruminantes, por guardarem a forragem, têm um estômago de quatro compartimentos.

  O homem tem a construção do onívoro (i). Diga-se, de passagem, as velhas prescrições pitagóricas (i), tanto quanto as modernas proposições de Rousseau e de Helvétius a favor do regime animal, devem ser rejeitadas como anti-naturais.

  Sendo os vegetais menos nutrientes que os animais, o pão ocupa um lugar intermediário. No glúten que o compõe, dois corpos albuminóides distinguem-se: albumina vegetal, insolúvel e, cola vegetal. Estas substâncias diferem da fibrina da carne e devem dissolver-se nos sucos, durante a digestão. No pão há menos gordura que na carne, mas há o amido e o açúcar, que devem transformar-se em gordura ao perderem uma parte de oxigénio. Destas comparações acontece que o sangue e, com ele os músculos, os nervos, a carne e todos os tecidos, se renovam mais rapidamente no regime carnívoro.

  Infere-se daí, que, sendo o sangue o factor dos tecidos, das secreções e excreções orgânicas e, ainda porque se modela pela alimentação do homem, a diferença primordial, assinalada entre os regimes vegetal e animal, deve estender a sua influência a todos os fenómenos da vida.

  Detivessem-se eles nesta conclusão e nada teríamos a objectar. Dizemos, com os antagonistas, que o apetite de um homem sadio se apazigua antes com um bife do que com uma salada. Consentimos em admitir que, se as raças de índios caçadores revelam força muscular notável, ao passo que os insulares do Pacífico se apresentam fracos (relativamente), é porque estes se alimentam de ervas e frutos e aqueles de muita carne. Concedemos, igualmente, que a indolência e falta de carácter dos Hindus se prenda um tanto ao seu regime herbívoro; – que o filósofo Haller tivesse razão para acusar uma tal ou qual inércia com o vegetarismo de alguns dias; – que, por um efeito inverso, uma divisão do Exército a que pertencia Villermé, na guerra de Espanha, fosse atingida de diarreia (relevem a citação que é literal), de magreza e debilidade, por ter sido forçado a alimentar-se só de carne durante oito dias. Concordamos, também, que os índios do Óregon só comem raízes, durante um longo período do ano, das quais vinte espécies são nativas – com o que muito nos prazemos – e que as tribos se movem de uns a outros lugares para apanhá-las, visto não amadurecerem senão sucessivamente. De boamente aceitamos que, vigente ainda, no Malabar, a crença na metempsicose, por lá existam hospitais para animais e se alimentem, nos templos, ratos cuja vida é sagrada. Sabemos, mais, que os Islandeses, Kanitschadales, Lapónios, Samoledos, só podem alimentar-se de peixe durante um certo período do ano, enquanto que os caçadores das planícies americanas só comem carne de bisonte. Concordamos, enfim, sem relutância e sem provas, que “basta comer marmelada ou maçã para alcalinizar a urina” e que os franceses produzem menos ureia que os alemães, aliás muito distanciados dos ingleses – o que prova consumir-se em Londres 1,6% da carne consumida em Paris – e, por fim, não estranhamos que as graciosas passeantes, mais que o transeunte vulgar, encareçam a vantagem de aumentar os mictórios públicos de Paris ou dar-lhes, no mínimo, outros dispositivos. Efectivamente vos damos, ou melhor – consentimos tomeis, à vontade, tudo quanto pedirdes em Fisiologia... Mas, na verdade, que relação tem tudo isso com a prova da personalidade humana? Com franqueza: que contributo trazem essas experiências para o assunto? Onde e como essa química demonstra a inexistência da alma? E que fazeis do método científico, que recomenda não proceder senão por induções ou deduções? Que ligação é essa com a escolástica dos nossos avós?

  De certo, não sabemos do que mais nos admirar: se da audácia, se do erro destes fisiologistas, levando-nos à beira do abismo e dizendo-nos: saltai! Será que acreditam ter lançado uma ponte com algumas teias de aranha? Na verdade, é preciso encarar o espírito humano como um cego de nascença, para pretender adormentá-lo com semelhantes processos. De facto, quem se não admirará de saber que, como conclusão de factos mais ou menos incompletos, quais os precedentes, nos apresentem a seguinte e enfática declaração:

  – Observações numerosas e experiências feitas em grande escala, provam que o homem deve, em parte, a sua privilegiada situação, em relação aos animais, à faculdade de se alimentar ora de vegetais, ora de carne (iii).

  * A matéria é a base de toda a força espiritual, de toda a grandeza humana e terrestre (iv).

  * O vocábulo alma, considerado anatomicamente, exprime o conjunto das funções cerebrais e espinal medula, e, fisiologicamente, o conjunto das funções da sensibilidade encefálica (v).

  * A análise não encontra na consciência, neste augusto instinto, nesta Voz imortal, mais que um simples mecanismo, que se desmonta como qualquer aparelho (vi).

  A estas afirmações não falta ousadia. Mas, depois das declarações negativas por nós registadas no capítulo anterior, de mais nada nos podemos admirar.

  Se é verdade que os temperos auxiliam a digestão - diz Moleschott – e o pão de rala, as frutas (especialmente figos) ingeridos em jejum e regados com um copo de água fria desenvolvem o ventre; se os rabanetes, o alho, a baunilha, estimulam o sensualismo e, se o vinho o chá e o café actuam sobre o cérebro claro está que a matéria governa o homem...

  Sobre isso, não tínhamos dúvidas. Sabeis o que é preciso para adquirir eloquência? É não comer nozes nem amêndoas. E como a voz e a palavra dependem, ao que parece, dos movimentos musculares da laringe, é preferível o regime vegetal ao gorduroso.

  Quereis uma prova da correlatividade essencial de pensamento e matéria? Olhai o fundo da vossa xícara de café. Este, tal como o barco a vapor e o telégrafo, põe em actividade uma série de pensamentos, origina uma corrente de ideias, de empreendimentos com ele. É evidente que a necessidade oriunda de uma afinidade electiva da Humanidade pelo café e pelo chá, se tornou mais imperiosa e generalizada, na proporção em que aumentaram as exigências intelectuais da civilização.

  Eis ainda um outro facto de importância capital. Os Kamstchadales e os Tongouses (i) embebedam-se com o seu aguoric vermelho e parece que os seus servos, desejosos de conhecer a sensação dessa bebida, não hesitam beber a urina dos seus amos.

  Logo, portanto, é a matéria que governa o homem – conclui espirituosamente o Sr. Moleschott...

 Num tal sistema, qual já o temos entrevisto, é claro que o livre-arbítrio fica completamente aniquilado. O próprio Moleschott declara-o. Não somente o ar que a cada momento respiramos transforma o sangue venoso em arterial; não só transmuda os músculos em creatina e creatinina; o músculo do coração em hipoxantina; o tecido do baço em hipoxantina e ácido úrico; o humor vítreo dos olhos em ureia, como refunde a todo o momento a composição do cérebro e dos nervos. O mesmo ar que respiramos muda diariamente, não é nas matas o que é nas cidades, não é sobre os mares o que é no cimo das montanhas, nem ao nível das ruas o que é no alto de uma torre. Alimentação, nascimento, educação, convivência, tudo, em torno de nós, rola num movimento que se comunica constantemente. 

  – Proposições verdadeiras, estas, provam que o homem está envolvido no âmago de um mundo a cujas influências não pode eximir-se e, provam também, quem sabe, que o livre-arbítrio não é tão absoluto quanto afirmam alguns psicólogos entusiastas. Mas, o que essas verdades não provam é a inexistência da vontade humana.

  Não são todos os materialistas que levam a sua excentricidade ao ponto de afirmar que a criatura humana não tenha consciência de que existe, para que deixe de ter a liberdade dos seus próprios actos e resoluções.

  Büchner é menos exagerado. Dizemos com ele, que o homem é obra da Natureza; que a sua pessoa, acções, pensamento e mesmo vontade estão submetidos a leis que regem o Universo. As acções e a conduta do indivíduo dependem, incontestavelmente, da sua educação do carácter, dos costumes, da índole do povo e da nação a que pertence e esta nação é, por sua vez e, de certo modo, o produto do ambiente em que vive e das relações exteriores que lhe entretiveram o desenvolvimento.

  Pode por exemplo notar-se com Deser que o tipo americano se desenvolveu com os primeiros colonos ingleses há dois séculos e meio. É um resultado que se pode atribuir a influências climáticas.

  O tipo americano distingue-se pela sua compleição, pelo pescoço alto, pelo temperamento dinâmico e ardoroso. O pouco desenvolvimento do sistema glandular, que dá às americanas essa expressão terna e vaporosa; a espessura, o comprimento e a secura do cabelo, podem provir da secura do ar. Há quem suponha ter notado que a agitação dos americanos aumenta com os ventos do Nordeste. Desses factos se infere que o grandioso e rápido progresso dos Estados Unidos seria, em parte, devido ao meio físico.

  Tal como na América, os ingleses originaram um novo tipo na Austrália, notadamente em Nova-Gales do Sul. Aí, os homens são altos, magros, musculosos e, as mulheres belíssimas, mas, de uma beleza efémera. Os “novos colonos” dão-lhes o apelido de Cornstalks (palha de trigo). O carácter inglês ressente-se do firmamento nebuloso, do ar pesado, dos estreitos limites da terra natal. O italiano, pelo contrário, reflecte em tudo o céu sempre belo e o Sol sempre ardente da sua pátria. (E, contudo, os romanos muito têm mudado de há 2000 anos a esta parte.) As ideias e contos fantásticos do oriente estão intimamente ligados à luxuriante vegetação que lhes moldurou o berço. A zona glacial não produz mais que raquíticos arbustos e, assim também, uma raça mofina, nada ou pouco acessível ao progresso. Os habitantes da zona tórrida também pouco se adaptam a uma cultura superior. Só nos países onde o clima, o solo e as relações ambientes oferecem um certo meio-termo, pode o homem equilibrar-se e adquirir um grau de cultura preponderante sobre os seres e as coisas que a rodeiam. 

  Todas estas observações não provam, porém, que a matéria governe o homem e que a vontade e a individualidade sejam uma ilusão. Cumpre, mesmo, advertir o autor de Força e Matéria que, antes, são os indivíduos que fazem as nações e não estas os indivíduos. Qual o dizia Stuart Mili, o mérito de um Estado está, em tese, no dos indivíduos que o compõem. Não são as instituições, nem as leis, nem os governos que fazem a grandeza das nações, mas o valor e a conduta dos cidadãos. É, pois, da individualidade dos homens que depende o progresso dos povos e, não de suas condições gerais. Em vão se dirá que esta individualidade mais não é que o resultado preciso das disposições do corpo: – educação, instrução, exemplo, fortuna, posição social, sexo, nacionalidade, clima, solo, época, etc. No ser humano existe uma força transcendente a tudo isso, uma força que os negativistas não querem ver e procuram ocultar no nevoeiro de sua paralogia. Assim como a planta – dizem eles – depende do terreno em que radica, não somente em relação à sua existência, mas ainda ao seu tamanho, forma e beleza; assim também o animal é grande ou pequeno, manso ou bravo, bonito ou feio, conforme as influências extrínsecas, assim também o homem físico e intelectual é o fruto dos mesmos factores, dos mesmos acidentes e disposições e, nunca o ser espiritual, independente e livre, que os moralistas nos pintam... Esses senhores protestam quando lhes chamamos espirituais e, nós persistimos na amabilidade. Mas, sem constituir uma excepção a seu favor, temos o direito de sustentar a espiritualidade humana e apagar, com o exemplo de grandes vontades, essa teoria crepuscular, que conceitua as resoluções do homem uma função barométrica. 

  É preciso fechar voluntariamente os olhos aos eventos mais belos e respeitáveis da História, preferir tristes abstracções a verdades gloriosas, sacrificar venerandos monumentos do pensamento à quimera de uma ideia fixa, para ousar assim negar o poder da vontade, o valor de sua energia, a independência de sua resolução, os milagres próprios de sua persistência e, substituí-lo por uma sombra difusa e vaga, dependente dum sol teatral. Na verdade, não vemos a vantagem desta substituição. É desconhecer a grandeza do homem o afirmar que os seus actos não passam do resultado necessário e fatalístico dos seus pendores físicos, tendências orgânicas e propensões materiais. É degradar-lhe a dignidade abaixo do nível da mediania intelectual e é colocar-se em contradição com os exemplos mais brilhantes que constelam a fronte da Humanidade para coroá-la de glória imperecível. Abordemos, em todas as suas fases, os anais da Humanidade; consultemos, sobretudo, as páginas do nosso século, já tão engrandecido de invenções fecundas e entrevistas possibilidades; logo nos convenceremos de que o génio não é simplesmente resultante de condições materiais e muito menos de uma enfermidade nervosa, senão que se afirma por uma força superior a todas as contingências e que muitas vezes o tem dominado guiado e vencido. Longe de encarar o homem como um ser inerte, cujas obras não passassem de efeitos instintivos, de hábitos, necessidades apetites e predisposições orgânicas, nós proclamamos, com a autoridade dos factos, que a inteligência governa a matéria e que o valor do homem consiste, precisamente, nessa elevação, nessa soberania da inteligência.

  Para ilustrar o asserto e invalidar, exemplificando, a audaciosa afirmativa desses campeões da matéria, lancemos um olhar pelo panorama intelectual da Humanidade e, a todos quantos sentem pulsar-lhe no peito um coração patriótico apresentemos-lhes – bem como aos jovens indecisos, que, mal transpondo os pórticos da vida prática, pudessem deixar-se embalar pela mentira materialista, acarretando para si a própria ruína – apresentemos-lhes, sim, o quadro tão grato aos nossos sentimentos, tão útil às nossas vistas e tão imponente às nossas aspirações, desses homens enérgicos saídos das mais ínfimas camadas sociais, para elevarem-se, pelo próprio esforço, à conquista do mundo e às culminâncias do pensamento soberano.

  Num belo livro, cujo título exótico não é bastante claro nem cativante, mas, que deveria andar nas mãos de toda a mocidade francesa (Self-Help, ou Carácter), um homem honrado, que é Samuel Smiles, reuniu exemplos desses vultos valorosos que venceram todos os percalços na vida e foram, por assim dizer, a refutação viva desta singular teoria, que tende a rebaixar o homem, em vez de o elevar. É por exemplos tais que a alma se eleva para a verdade do seu ideal. Julgamos ser nosso dever homenagear aqui esse panteão de beneméritos exemplares, cujo panegírico deveria ser espalhado aos quatro ventos.

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(ii) Briefwchsel Ziwischen Goethe und Zelter (i), 1º, 113.
(iii) Cireulation de la Vie, 2º, 69.
(iv) Force et Matière, capítulo 5º.
(v) Dictionnaire des Sciences Médicales.
(vi) Taine (i) – Philosophes Français.


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (1 de 6), 27º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
(Radio Filharmonisch Orkest interpreta Schumann / Sofia Soloviy, soprano / Caitlin Hulcup, alto / Dominik Wortig, tenor / Andrew Foster-Williams, baixo / sob a direcção orquestral de Dmitri Slobodeniouk e coral de Klaas Stok)