Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~
(III) 

  Buffon (iescreveu que génio é paciência. Lembrámo-nos, então, de Keple (i) procurando durante dezassete anos as três leis imortais que o recomendam à posteridade, leis que regem o sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento da Lua em volta da Terra. Falaremos de Newton (i), comedido, respondendo a quem lhe perguntava como descobrira a gravitação: – foi pensando sempre nela. Citaremos todos esses ilustres sábios que nas suas lutas só tiveram por arma a inteligência. Invocaremos os trabalhos solitários de Harvey (i), Carlos Bonnet, Jenner (i) (*). Recontaremos as tremendas dificuldades que tiveram de vencer, animados do fogo sagrado, esses inventores que se chamaram Watt (i), Jacquard (i), Girard (i), Fulton (i), Stephenson (i)Diremos dos labores intelectuais que exigiram as nossas vias-férreas, a navegação a vapor, a telegrafia, magníficos inventos nos quais celebramos o espírito que não a matéria? Invocaremos os arroubos artísticos de um Miguel Ângelo (i), de um Ticiano (i), de um Cellini (i), de um Poussin (i)? Recordemos esta frase de Bayle (i), escrita de Milão, em 1820, a propósito de um artista chamado Meyerbeer: – “é homem de algum talento, mas não genial, vivendo solitariamente e trabalhando quinze horas por dia”. Contudo, se quiséssemos historiar as provas rudes que flagelaram os génios mais possantes, haveríamos de baixar aos nomes ignorados, de quantos mergulharam nessas águas revoltas, vítimas da sorte, não da descrença, como Chénier (i) decapitado, ou como Gilbert (i) lutando contra o egoísmo universal. 

  Haveríamos, também, de convocar os que sucumbiram gloriosamente. – Giordano Bruno (i) preferindo a morte a uma retratação fictícia, Campanella (i) sete vezes torturado e sucumbindo sem deixar de satirizar os seus algozes; Jeanne D'Arc (i) que salvou a França, Sócrates (i) que salvou a Filosofia e preferiu a cicuta à mentira, o velho Pedro Ramus (i) estrangulado na noite de São Bartolomeu, em que também teria perecido Ambrósio Paré (i), se Carlos IX não levasse em conta os seus préstimos pessoais e, enfim, todos os mártires da Ciência, da Religião, do progresso, inclusive os que tombaram nos circos romanos, devorados pelas feras e suplicando a Deus pelos seus irmãos. Fossem quais fossem as crenças, as ideias que essas criaturas defendiam até à morte, sem lhes apreciarmos o valor real das causas que abraçavam, a sua memória imperecível só nos merece respeitosa veneração. São vultos que nos mostram que o homem não é somente um composto de matéria orgânica e que a energia, a perseverança, a coragem, a virtude, a fé, não são atributos da composição químico-cerebral. Do fundo de seus sepulcros eles proclamam que os pretensos sábios, que ousam identificar o homem com a matéria inerte, não se rodeiam do valor humano e jazem na mais tenebrosa ignorância das verdades que fazem a glória e a felicidade do ser. 

  E supondes seja necessário interrogar a tradição histórica para responder, também com argumentos e exemplos irresistíveis, a essa pretensão cega de negar os factos de ordem puramente intelectual, conceituando tão superficialmente o Espiritualismo e a Moral? 

  Não; não é somente nas altas esferas que o observador admira esses edificantes exemplos. Em todas as camadas sociais, do prócere da Ciência ao rústico analfabeto, do trono ao grabato (i), a vida quotidiana oferece, no santuário da família, esses mesmos padrões de coragem e abnegação, de paciência e grandeza d'alma, de energia e virtude, que, por desconhecidos, não são menos meritórios no seu valor intrínseco, do que os precedentes. 

  Quantas almas padecem em segredo sem revelar os seus martírios, curvadas à injustiça, vítimas do destino, dessa fatalidade impenetrável que persegue tantas criaturas boas e justas? 

  Quantos corações magnânimos palpitam em silêncio e abafam chamas capazes de incendiar o verbo e levantar multidões, se, ao invés de definhar na sombra, se espanejassem ao sol da popularidade? Quantos génios ignorados por aí dormitam num isolamento infecundo? Quantas almas santas e puras a se consagrarem a uma vida inteira de abnegação, de amor, de caridade? E quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta paciência e humildade, não recebem mais que ingratidão e desprezo daqueles mesmos a quem amam? 

  O último reduto dos nossos adversários assenta no sistema dos pendores naturais, como a declararem que estes factos de ordem mental não são mais que o resultado das inclinações dos espíritos credores de nossa admiração. Se Palissy se obstinou dezasseis anos à procura do esmalte, seria a isso arrastado por uma inclinação especial. Se Colombo não esmoreceu diante do cepticismo dos coevos e das revoltas de sua equipagem, é que uma tendência do seu cérebro o encaminhava irrevogavelmente para o Novo Mundo. Se Dante concluiu a Divina Comédia, ainda que posto a ferros e expatriado, é porque a lembrança de Beatriz e as guerras Civis italianas lhe espicaçavam a fibra poética. Se Galileu, septuagenário, se viu constrangido a abjurar de joelhos as suas convicções mais íntimas, assinando a sentença iníqua que proibia a Terra de girar, não pensem que houve em tudo isso humilhação, pois apenas teria experimentado uma ligeira contrariedade das suas inclinações. O facto de Carlota Corday partir de sua aldeia para apunhalar Marat em Paris não significa que tivesse a convicção íntima de salvar a pátria de um seu presumível salvador, mas, apenas, que tivesse uma exaltação cerebral. Se, durante as cenas monstruosas de terror, se viram mulheres que pediam aos carrascos a graça de morrer com os maridos, subindo firmes o patíbulo; se, em todos os tempos históricos, temos visto vítimas voluntárias oferecerem-se para salvar entes amados, ou com eles morrer, é tudo fruto de inclinação natural, ou resultado de certos movimentos cerebrais! 

  Resumindo: os actos mais sublimados de virtude, de piedade filial, devotamento, amor, grandeza d'alma, são oriundos de disposições orgânicas, ou de qualquer súbito desvio das funções normais do cérebro. Se o Cristo subiu ao Calvário, não se considere isso o sacrifício extraordinário de um ser divino, mas simples movimento revolucionário de algumas moléculas imprudentes... É, assim, a míseras escórias, que reduzem as mais ricas gemas da coroa que cinge a fronte da Humanidade. Esta, contudo, não se deixa assim degradar, não consentirá que mãos profanas lhe arrebatem a sua auréola. Para sustentar esses feitos de valor, algo mais se torna necessário do que uma agregação atómica de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combinação molecular. Vade-retro, negadores insensatos, que pretendeis reduzir a fórmulas tão ocas a definição do valor e das forças intelectuais. Predisposições orgânicas, inclinações naturais, faculdades mentais, a própria educação, que representa tudo isso senão palavras, desde que nos limitemos a manifestações da matéria bruta e cega e neguemos a existência do espírito? Que representam a Química, a Física, a Mecânica, diante da vontade que dobra o mundo à sua lei e dirige a seu assentimento a matéria obediente? Ousam sustentar que o valor moral, a potência intelectual, o afecto profundo dos corações, o entusiasmo das almas fervorosas, a imensidade do olhar inteligente, as pesquisas do pensamento que sonda o espaço e faz resplandecer as leis universais, as meditações, as descobertas, as obras-primas da Ciência e da Poesia se explicam por transformações químicas – e quiméricas – da matéria em pensamento? Será que, para suportar essa energia anímica, não haja necessidade de uma força soberana, superior às alterações da substância, capaz de vencer todos os obstáculos, cuja influência se estenda muito além da vista física e seja mesmo a base desta força pensante, o seu substrato, o seu sustentáculo e a condição de sua potência? Será que a virtude resida noutro lugar que não na alma? – na alma independente, que os subterfúgios do mundo material não atingem; na alma espiritual, que ouve a voz da verdade e caminha em linha recta para o seu ideal, sejam quais forem os obstáculos que se interponham no caminho, as dificuldades que pretendam interceptar-lhe a marcha triunfal? 

  Toda a Humanidade protesta contra essas fúteis alegações e o faz já não com aquele critério baseado no testemunho dos sentidos, susceptível de enganar-se, como se dá, por exemplo, com o movimento dos astros, mas, com aquele senso íntimo que lhe vem da própria consciência. 

/… 
(*) A aceitação que teve a descoberta da vacina é um atestado típico dos obstáculos geralmente colocados a qualquer ideia nova, de maneira a desanimar inventores e sábios. Não faltou, diz Smiles, quem lhe caricaturasse a descoberta apresentando-a como susceptível de bestializar o próximo, com o introduzir no organismo matéria putrefacta, retirada das tetas de vacas doentes. Do alto das cátedras, foi a vacina denunciada como coisa “diabólica”. Chegaram a afirmar que as crianças vacinadas cresciam com “cara de boi” e que na testa lhes sobrevinham tumores, que “indicavam o lugar dos chifres e que a voz se alteraria com mugidos de touro”. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (3 de 6), 29º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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