(III)
Buffon (i) escreveu
que génio é paciência. Lembrámo-nos, então, de Keple (i) procurando durante dezassete anos as três leis imortais que o recomendam à posteridade,
leis que regem o sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as
estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento da Lua em volta da Terra.
Falaremos de Newton (i),
comedido, respondendo a quem lhe perguntava como descobrira a gravitação: – foi
pensando sempre nela. Citaremos todos esses ilustres sábios que nas
suas lutas só tiveram por arma a inteligência. Invocaremos os
trabalhos solitários de Harvey (i), Carlos
Bonnet, Jenner (i) (*).
Recontaremos as tremendas dificuldades que tiveram de vencer, animados do fogo
sagrado, esses inventores que se chamaram Watt (i), Jacquard (i),
Girard (i),
Fulton (i),
Stephenson (i)? Diremos
dos labores intelectuais que exigiram as nossas vias-férreas, a navegação a
vapor, a telegrafia, magníficos inventos nos quais celebramos o espírito que
não a matéria? Invocaremos os arroubos artísticos de um Miguel
Ângelo (i),
de um Ticiano (i),
de um Cellini (i),
de um Poussin (i)?
Recordemos esta frase de Bayle (i), escrita de Milão,
em 1820, a propósito de um artista chamado Meyerbeer: – “é homem de
algum talento, mas não genial, vivendo solitariamente e trabalhando quinze
horas por dia”. Contudo, se quiséssemos historiar as provas
rudes que flagelaram os génios mais possantes, haveríamos de baixar aos nomes
ignorados, de quantos mergulharam nessas águas revoltas, vítimas da sorte, não
da descrença, como Chénier (i) decapitado,
ou como Gilbert (i) lutando contra o egoísmo universal.
Haveríamos, também, de convocar os que sucumbiram
gloriosamente. – Giordano Bruno (i) preferindo a
morte a uma retratação fictícia, Campanella (i) sete
vezes torturado e sucumbindo sem deixar de satirizar os seus algozes; Jeanne
D'Arc (i) que
salvou a França, Sócrates (i) que salvou a
Filosofia e preferiu a cicuta à mentira, o velho Pedro Ramus (i) estrangulado
na noite de São Bartolomeu, em que também teria perecido Ambrósio Paré (i), se Carlos IX
não levasse em conta os seus préstimos pessoais e, enfim, todos os mártires da
Ciência, da Religião, do progresso, inclusive os que tombaram nos circos
romanos, devorados pelas feras e suplicando a Deus pelos seus irmãos.
Fossem quais fossem as crenças, as ideias que essas criaturas defendiam até à
morte, sem lhes apreciarmos o valor real das causas que abraçavam, a sua
memória imperecível só nos merece respeitosa veneração. São vultos
que nos mostram que o homem não é somente um composto de matéria orgânica e que
a energia, a perseverança, a coragem, a virtude, a fé, não são atributos da
composição químico-cerebral. Do fundo de seus sepulcros eles
proclamam que os pretensos sábios, que ousam identificar o homem com a matéria
inerte, não se rodeiam do valor humano e jazem na mais tenebrosa ignorância das
verdades que fazem a glória e a felicidade do ser.
E supondes seja necessário interrogar a tradição
histórica para responder, também com argumentos e exemplos irresistíveis, a
essa pretensão cega de negar os factos de ordem puramente
intelectual, conceituando tão superficialmente o Espiritualismo e a Moral?
Não; não é somente nas altas esferas que o observador
admira esses edificantes exemplos. Em todas as camadas sociais, do prócere da Ciência ao
rústico analfabeto, do trono ao grabato (i), a vida quotidiana
oferece, no santuário da família, esses mesmos padrões de coragem e abnegação,
de paciência e grandeza d'alma, de energia e virtude, que, por desconhecidos,
não são menos meritórios no seu valor intrínseco, do que os precedentes.
Quantas almas padecem em segredo sem revelar os seus
martírios, curvadas à injustiça, vítimas do destino, dessa fatalidade
impenetrável que persegue tantas criaturas boas e justas?
Quantos corações magnânimos palpitam em silêncio e
abafam chamas capazes de incendiar o verbo e levantar multidões, se, ao invés
de definhar na sombra, se espanejassem ao sol da popularidade? Quantos génios
ignorados por aí dormitam num isolamento infecundo? Quantas almas santas e
puras a se consagrarem a uma vida inteira de abnegação, de amor, de caridade? E
quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta paciência e humildade,
não recebem mais que ingratidão e desprezo daqueles mesmos a quem amam?
O último reduto dos nossos adversários assenta no
sistema dos pendores naturais, como a declararem que estes factos de ordem
mental não são mais que o resultado das inclinações dos espíritos credores de
nossa admiração. Se Palissy se
obstinou dezasseis anos à procura do esmalte, seria a isso arrastado por uma
inclinação especial. Se Colombo não
esmoreceu diante do cepticismo dos coevos e das revoltas de sua equipagem, é
que uma tendência do seu cérebro o encaminhava irrevogavelmente para o Novo
Mundo. Se Dante concluiu
a Divina Comédia, ainda que posto a ferros e expatriado, é porque a lembrança
de Beatriz e as guerras Civis italianas lhe espicaçavam a fibra poética.
Se Galileu,
septuagenário, se viu constrangido a abjurar de joelhos as suas convicções mais
íntimas, assinando a sentença iníqua que proibia a Terra de girar, não pensem
que houve em tudo isso humilhação, pois apenas teria experimentado uma ligeira
contrariedade das suas inclinações. O facto de Carlota Corday partir
de sua aldeia para apunhalar Marat em Paris não
significa que tivesse a convicção íntima de salvar a pátria de um seu
presumível salvador, mas, apenas, que tivesse uma exaltação cerebral. Se,
durante as cenas monstruosas de terror, se viram mulheres que pediam aos
carrascos a graça de morrer com os maridos, subindo firmes o patíbulo; se, em todos os
tempos históricos, temos visto vítimas voluntárias oferecerem-se para salvar
entes amados, ou com eles morrer, é tudo fruto de inclinação natural, ou
resultado de certos movimentos cerebrais!
Resumindo: os actos mais sublimados de virtude, de
piedade filial, devotamento, amor, grandeza d'alma, são oriundos de disposições
orgânicas, ou de qualquer súbito desvio das funções normais do cérebro. Se o
Cristo subiu ao Calvário, não se considere isso o sacrifício extraordinário de
um ser divino, mas simples movimento revolucionário de algumas moléculas
imprudentes... É, assim, a míseras escórias, que reduzem as mais ricas
gemas da coroa que cinge a fronte da Humanidade. Esta, contudo, não se deixa
assim degradar, não consentirá que mãos profanas lhe arrebatem a sua auréola.
Para sustentar esses feitos de valor, algo mais se torna necessário do que uma
agregação atómica de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combinação
molecular. Vade-retro, negadores insensatos, que pretendeis reduzir a fórmulas
tão ocas a definição do valor e das forças intelectuais. Predisposições
orgânicas, inclinações naturais, faculdades mentais, a própria educação, que
representa tudo isso senão palavras, desde que nos limitemos a manifestações da
matéria bruta e cega e neguemos a existência do espírito? Que representam a
Química, a Física, a Mecânica, diante da vontade que dobra o mundo à sua lei e
dirige a seu assentimento a matéria obediente? Ousam sustentar que o valor
moral, a potência intelectual, o afecto profundo dos corações, o entusiasmo das
almas fervorosas, a imensidade do olhar inteligente, as pesquisas do pensamento
que sonda o espaço e faz resplandecer as leis universais, as meditações, as
descobertas, as obras-primas da Ciência e da Poesia se explicam por
transformações químicas – e quiméricas – da matéria em pensamento? Será que,
para suportar essa energia anímica, não haja necessidade de uma força soberana,
superior às alterações da substância, capaz de vencer todos os obstáculos, cuja
influência se estenda muito além da vista física e seja mesmo a base desta
força pensante, o seu substrato, o seu sustentáculo e a condição de sua
potência? Será que a virtude resida noutro lugar que não na alma? – na alma
independente, que os subterfúgios do mundo material não atingem; na alma
espiritual, que ouve a voz da verdade e caminha em linha recta para o seu
ideal, sejam quais forem os obstáculos que se interponham no caminho, as
dificuldades que pretendam interceptar-lhe a marcha triunfal?
Toda a Humanidade protesta contra essas fúteis
alegações e o faz já não com aquele critério baseado no testemunho dos
sentidos, susceptível de enganar-se, como se dá, por exemplo, com o movimento
dos astros, mas, com aquele senso íntimo que lhe vem da
própria consciência.
/…
(*) A aceitação que teve a descoberta da vacina
é um atestado típico dos obstáculos geralmente colocados a qualquer ideia nova,
de maneira a desanimar inventores e sábios. Não faltou, diz Smiles, quem lhe
caricaturasse a descoberta apresentando-a como susceptível de bestializar o
próximo, com o introduzir no organismo matéria putrefacta, retirada das tetas
de vacas doentes. Do alto das cátedras, foi a vacina denunciada como coisa
“diabólica”. Chegaram a afirmar que as crianças vacinadas cresciam com “cara de
boi” e que na testa lhes sobrevinham tumores, que “indicavam o lugar dos
chifres e que a voz se alteraria com mugidos de touro”.
Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira
Parte; (3) A Vontade do Homem (3 de 6), 29º fragmento
desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da
Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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