(II de II)
Os adulteradores espíritas de Kardec mostraram-se de uma
grande ignorância. O que fizeram com O Evangelho Segundo o Espiritismo é
de estarrecer. Deformaram, cortaram, tornaram o texto lógico do mestre
incongruente e contraditório. Não pouparam sequer as mais belas e poderosas
frases de Jesus,
como: Amai aos vossos inimigos, que reduziram a esta vergonha
linguística: Amai aos que não vos amam. Das eloquentes mensagens de
Lázaro extraíram as figuras expressivas e viris como: Nós vos faremos
avançar com a dupla acção do freio e da espora, talvez por já estarem
sentindo as esporas nas virilhas. Emacularam os textos, como se fossem eunucos
destinados a servir nos haréns de velhos e trémulos sultões.
Todas essas formas de mistificações, geralmente ao serviço
de interesses humanos subalternos, estão presentes em todas as culturas e em
todas as religiões, porque a mistificação é própria do homem, encarnado ou
desencarnado. Na inferioridade visível e palpável do nosso mundo os
mistificadores pululam no plano espiritual ligado à Terra e na crosta
planetária. Nas escrituras sagradas de todas as correntes espiritualistas e de
todas as religiões podemos encontrar e identificar diversos tipos de
mistificação. Kardec foi o único a estabelecer um método seguro de
prevenção das mistificações. Mas os mistificadores se servem da vaidade humana
para se infiltrar nas instituições doutrinárias, onde sempre encontramos
criaturas ansiosas por novidades que superem a obra do mestre. O
Espiritismo é uma questão de bom senso, como escreveu Kardec, mas
as criaturas insensatas estão por toda a parte. Precisamos manter constante
vigilância nos nossos estudos para não cairmos nas mistificações que nos levam
a deturpar e aviltar a doutrina. Bastaria um pouco de humildade para vermos, como
ensina Kardec, a ponta de orelha do mistificador, que sempre aparece nos textos
mentirosos ou ilusórios. A mistificação se alimenta de vaidade e pretensão,
desse orgulho infantil a que não escapam nem mesmo pessoas ilustradas. Muitas
vezes, pelo contrário, as pessoas ilustradas não passam de analfabetas
ilustres, mais sujeitas, por sua vaidade pueril, à mistificação, do que as pessoas humildes, mas dotadas de
bom senso. Kardec tem razão ao afirmar que o bom senso e a humildade são
preservativos da mistificação. Nenhum espírito nos mistifica se nós mesmos já
não estivermos mistificando-nos por vontade própria.
Os médiuns dispõem de vários recursos para evitar as
mistificações: orar e vigiar, manter a sua fé racional em Deus e nos Espíritos
Superiores; confiar nos seus protectores espirituais; ler todos os dias pelo
menos um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo, manter a
mente arejada e serena, sem temores inúteis; alimentar pensamentos altruístas,
ou seja, em favor dos outros, evitando ideias de grandeza; rejeitar os
Espíritos que lhes prometem revelações e os que pretendem contar-lhes o que
foram em outras encarnações; afastar de sua mente qualquer ideia de maldade
contra os outros; afugentar ódios e ressentimentos; não querer tornar-se anjos
de um momento para o outro; viver como todas as criaturas pacíficas dignas,
cumprindo os seus deveres sociais e morais, sem nunca se julgarem superiores
aos outros; suportar as dificuldades da vida sem reclamações, dando mais
atenção às necessidades dos outros do que às suas próprias; fazer todo o bem possível
ao seu alcance, sem exageros e tendo sempre em vista que não devemos acocar-nos
nem acocar os outros, pois todos temos de passar pelas
experiências; evitar disputas sobre opiniões; não admitir interferências de
dinheiro ou lucros de qualquer espécie nas suas actividades mediúnicas. Tudo
isso se resume, como vemos, em caridade, humildade e honestidade. O médium ou
espírita que seguir esses princípios estará vacinado contra a mistificação,
desde que não se convença que estará livre de ser mistificado. A simples ideia
de ter esse privilégio pode ser a porta que esqueceu aberta e pela qual a
mistificação entrará com facilidade.
O maior
caso de mistificação, capaz de levar qualquer pessoa à fascinação, é a
obra Os Quatro Evangelhos, de Jean-Baptiste
Roustaing, que a Federação Espírita Brasileira tomou como fundamento da sua
orientação doutrinária. A mistificação é tão evidente nessa obra que uma pessoa
simples, mas de bom senso, logo se apercebe. Mas como se apoia nos resíduos
mitológicos e místicos da nossa formação religiosa tradicional, continua a fazer
as suas vítimas entre nós através dos anos. Nessa obra, Jesus é
transformado num mistificador que fingiu nascer, mas não nasceu,
fingiu mamar, mas não mamou, fingiu morrer na cruz mas não morreu; fingiu ressuscitar mas não
ressuscitou, pois era um agénere,
uma criatura não gerada, uma simples aparição tangível que
combinou no espaço encontrar-se na Terra com Maria Madalena. E isso é apenas um
pedaço mínimo do imenso ridículo em que essa obra das trevas procura mergulhar
a Doutrina dos Espíritos Superiores. As obras de Ramatis constituem
o segundo caso de mistificação no nosso movimento espírita, divergindo daquela
em alguns pontos e apresentando outras novidades absurdas. A obra A
Vida de Jesus Ditada por Ele Mesmo, recebida na Alemanha e completada na
Argentina, onde existe uma instituição espírita para mantê-la, divulgá-la e
defendê-la, é outro caso típico de mistificação em grande estilo, que tem
iludido multidões de pessoas. Nessa obra vemos Jesus, nas suas memórias,
prestar-nos um depoimento estranho sem princípio e sem fim e com a deformidade de
um texto do Corto, de Maomé. Fala Jesus: “Meus irmãos, escutai o relato da
minha vida terrestre como Messias.” A seguir o livro nos conta as primeiras
peripécias de Jesus após a morte de José, seu pai, sua ida a Jerusalém e a
entrega dos negócios da família em mãos estranhas. Jesus se diz o mais velho
dos nove filhos de José e Maria. Descreve a vida tranquila que levava em
Nazaré, mas lamenta que as suas ideias messiânicas o tenham levado para o
caminho perigoso. Refere-se aos fundamentos da Ciência Kabalística que
aprendeu, conta que após a morte do pai envolveu-se em Jerusalém com grupos
subversivos e tornou-se agitador político. Nesse ritmo de estória à Jack London, o livro atinge a fase messiânica de Jesus. O auto-memorialista
proclama: “A minha obra era santa, porque era a Obra do Pai; a minha missão não
era de ódio, mas de amor.” Um livro mediúnico sem nenhuma base
histórica, sem nada de novo quanto à interpretação da figura humana de Jesus,
sem nenhuma marca da época, decalcado em situações actuais, desprovido da
mínima verossimilhança e, que no entanto e apesar do seu volume de cerca de 400
páginas, não pesa em nada na balança da História. Mistificação evidente e sem defesa
possível. Como podem espíritas ilustrados, inteligentes,
perspicazes, aceitar esse relato de fraca imaginação como autobiografia do
Cristo, do assombroso personagem histórico que transformou o mundo com as suas
ideias, no vago registo das loggia, das anotações fragmentárias de
seus ensinos morais, frases e expressões que balizaram o desenvolvimento humano
a partir das suas prédicas? Essa é a glória da mistificação – fazer passar como
verídicas as mais infundadas aberrações. Mas não se pense que o triunfo é da
mistificação em si. Pelo contrário, é dos que se deixam mistificar, dos que
desejam iludir-se e para isso alimentam o seu bom senso nas bancas de câmbio da
imaginação. Essas criaturas ansiosas pelo maravilhoso, não encontrando o que
desejam nas pesquisas e nos estudos sérios, aceitam emocionados os maiores
absurdos.
É um curioso mecanismo de compensação interior que leva os
leitores dessas falsidades ingénuas a considerá-las como verídicas. O anseio de
novidades maravilhosas é nelas mais poderoso do que a razão, que sabem aplicar
nas coisas da vida diária, mas fracassam ao aplicá-las ao sonho, pois este
exige a descoberta dos segredos a qualquer preço. É o mesmo caso das obsessões,
em que o apego do obsedado ao obsessor é que dá forças a este para agir sobre
aquele. O mesmo caso dos viciados, que embora conhecendo as
consequências do vício, não podem abandoná-lo, pois sem ele a vida perderia em
gosto e sentido. Uma face pouco ou nada conhecida dos processos esquizofrénicos.
Uma área em que a Psicologia Espírita tem muito a trabalhar.
Mas não é só no Espiritismo que isso acontece. A natureza é
uma só em toda a parte. No Corão, de Maomé, a mistificação é tão transparente
como no caso acima. O mistificador cobre as suas deficiências com o manto
embriagador ou atordoante da fantasia. E serve-se de afirmações enfáticas, de
frases altissonantes para melhor impressionar os que desejam ser enganados.
Todo o génese bíblico se reveste desse mesmo aspecto. O episódio do nascimento
de Jesus, no Corão, é ao mesmo tempo anedótico, pitoresco e impressionante.
Maria recebe a anunciação do Anjo, que a manda fugir para o deserto. José foi
inteiramente excluído dessa estória das Mil e Uma Noites em
que um velho carpinteiro nada tinha a fazer. A jovem virgem foge da casa dos
pais e dirige-se à tamareira solitária no meio do areal. Ali se deita e o Anjo
lhe ensina como proceder. Ao mesmo tempo, faz correr um filete de água ao pé da
tamareira. Quando tiver fome, basta-lhe sacudir a árvore e os frutos maduros
caem. O menino nasce e o anjo a manda voltar para a casa. Lá, a família a
repreende, mas ela tem o menino Jesus nos braços. Maria conta o que se passou e
o menino recém-nascido o confirma. O espanto é geral e tudo se acomoda. A
estória ingénua é simples ideação mistificadora, mas a palavra do Profeta é suficiente
para transformá-la em realidade histórica. O Islã (Islão) nasceu do tronco
bíblico, é uma espécie de sombra judaica projectada sobre a Arábia. As figuras
bíblicas de Abraão, Isaac e Jacob aparecem deformadas nessa projecção. Era
natural que Maria e Jesus também aparecessem assim. Mas temos nessa projecção
conceptual uma espécie de intuição profética animitológica. O nascimento de
Jesus sob uma tamareira no deserto devolve o acontecimento real à sua singeleza
verdadeira. Resta o mito do Anjo Gabriel, mas este corresponde à realidade subjectiva
da inspiração de Maomé. O facto de o menino Jesus falar precocemente não é
mitológico, pois pode ser considerado na pauta da precocidade natural. É
importante lembrar que o Islamismo revela maior tendência para a realidade
figurada do que para o mito. A exclusão de José e os cuidados do Anjo com Maria
parecem indicar o Anjo como o pai do menino, em lugar do Espírito Santo. Uma
análise profunda desse episódio do Corão, que estabelece uma ligação genésica
entre o Islamismo e o Cristianismo, pode revelar maiores significações na
perspectiva histórica. A mistificação religiosa decorre muitas vezes de
exigências lógicas num processo histórico de ocorrências complexas e cujas
linhas se tornaram indefinidas no tempo. Esse é um problema de Para-história,
nova área de interpretação histórica nascida das conquistas actuais da
Parapsicologia e, que por isso mesmo interessa de perto aos espíritas.
Maomé foi geralmente considerado como um mistificador, mas
na verdade era um médium, um paranormal que, segundo Emmanuel,
tinha a missão, em que fracassou, de forçar o retorno da Igreja de Roma à
realidade histórica. O fracasso do Profeta Árabe decorreu do seu excessivo
apego à matéria, em virtude de sua forte vitalidade. Por isso Dante o
colocou no Inferno com o ventre rasgado e os intestinos saindo do ventre,
condenação típica dos excessos de sensualidade. Todos estes elementos são
importantes para uma reinterpretação do conjunto religioso-histórico formado
pelo triângulo bíblico Judaísmo-Cristianismo-Islamismo. Cabe às instituições
culturais espíritas, no futuro, analisar estes problemas referentes ao processo
da evolução da humanidade terrena. O alfange (*) islâmico
guarda ainda os segredos do Crescente Lunar, que podem ainda fazer mais luz do
que o Sol sobre a condição humana.
/…
(*) Sabre de lâmina curta e larga, com o fio no
lado convexo da curva.
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
XVIII – O Problema das Mistificações, (II de II), 20º fragmento (II
de II) desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)
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