Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 28 de janeiro de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


   Durante séculos os celtas ocuparam, no ocidente da Europa, a mesma situação.

Repelidos do continente por grupos germânicos, e das Ilhas Britânicas pelas invasões anglo-saxónicas, eles tinham
perdido a sua unidade, mas não a sua fé no futuro.

   A Gália tornou-se a França, e não se falava mais a sua língua original, a não ser na Península Armoricana. Quanto às ilhas, os celtas se repartiram em quatro povos ou grupos diferentes, separados pelo braço de mar ou pelos grandes estuários, que são: a Irlanda, a Alta Escócia, o País de Gales e a Cornualha.

   Que força moral, que vontade perseverante não foi preciso a essa raça céltica para manter sua língua, suas tradições, seu próprio carácter! A história das perseguições sofridas pela Irlanda, durante dez séculos, é impressionante. O uso do idioma gaélico foi proibido e cada criança que pronunciasse uma única palavra, na escola, era castigada com cintadas.

   E, no entanto, a Irlanda, por sua tenacidade, triunfou diante da opressão inglesa. Hoje, a Irlanda reconstituiu a sua língua primitiva. Ela é o único país onde seus sotaques ressoam como língua oficial. Os celtas insulares e nós (os franceses) não temos o mesmo verbo, mas temos o mesmo pensamento; sem falarmos, nós nos compreendemos sempre.

   Na Bretagne Francesa a perseguição foi mais moral e religiosa. Todos os emblemas do Druidismo, todos os nomes sagrados dos antigos celtas foram substituídos por símbolos católicos e por nomes de santos.

   As menores lembranças do culto ancestral foram minuciosamente expurgadas. Nos tempos modernos, deve-se aos galeses o mérito de ter provocado o despertar da alma céltica, isto é, de ter dado impulso a uma corrente de opinião que, reaproximando as partes esparsas da raça, restabeleceu o contacto entre elas.

   O movimento pancéltico, que tende a convergir para um fim comum os recursos e as forças dos cinco grupos célticos, nasceu no País de Gales no ano de 1850. Ele se desenvolveu rapidamente e suas consequências prometem ser vastas e profundas.

   Nos últimos cinquenta anos, apesar da 1ª Guerra Mundial, a situação dos celtas mudou bastante. A Irlanda reconquistou a sua independência; o Principado de Gales e a Ilha de Man possuem sua plena autonomia; a Escócia trabalha eficazmente para realizar a sua; a Bretagne Francesa é a única que ficou estacionária.

   O primeiro objectivo a atingir era a salvaguarda das línguas célticas, garantia de raça inteira. A Irlanda conseguiu isso; os outros dialectos retomaram, também, força e vigor em seus ambientes respectivos. Os professores que os ensinam são subvencionados pela Liga Céltica. Esta suscitou uma unidade de impulsão, inicialmente literária e artística, mas que depois se tornou, pouco a pouco, filosófica e religiosa.

   Em 1570, uma assembleia solene, chamada “Eisteddfod”, foi presidida por William Herbert, Conde de Pembroke, o grande patrono da literatura galesa e o mesmo que fundou a célebre biblioteca de neogalês do castelo de Rhaglan, destruída mais tarde por Cromwell. Em outra reunião, realizada em Bowpyr, no ano de 1681, sob a direcção de Sir Richard Basset, os membros do congresso procederam a uma revisão completa dos antigos textos bárdicos Leis e Tríades.

   As assembleias solenes são realizadas regularmente desde 1819. O “Gorsedd”, que as prepara, as organiza e assume a sua direcção, é uma instituição livre, recrutada em todas as classes da sociedade.  Foi, no princípio, uma corte de justiça mantida pelos druidas. Apesar de eclipses temporários e de perseguições, essa instituição se manteve através dos séculos e é ainda ela, no momento actual, quem preside o movimento geral pancéltico.

   No século passado esse movimento aumentou e as assembleias solenes de Abergavenny, de Caer-Marthen, reuniam numerosos representantes das cinco grandes famílias célticas. Lamartine enviou sua adesão sob a forma de um poema; eis a sua primeira estrofe:

E nós dizemos: Oh! filhos das mesmas plagas!
Nós somos uma parte do velho gládio vencedor;
Olhai para nossos olhos, cabelos e faces;
Vós nos reconhecereis pelo aspecto do coração?

   Depois veio o Congresso de Saint-Brieuc, reunido pela convocação de Henri Martin, de H. de la Villemarqué e de um comité de celtistas famosos. Outras delegações célticas atravessaram a Mancha para confraternizar com os bretões franceses.

   Em compensação, o Congresso de Cardiff recebeu a visita de 21 dos nossos compatriotas. Em 1897, delegados galeses foram enviados a Dublin para participar da restauração do “Feiz-Céoil”. Na prefeitura de Dublin, sob a presidência do prefeito, Sir James Henderson, Lord Castletown, descendente de antigos reis celtas, falou estas palavras:

“A Liga Pancéltica, que tomou a iniciativa do Congresso, se propõe, unicamente, a reunir representantes celtas de todas as partes do mundo para manifestar a todos seu desejo de preservar sua nacionalidade e de cooperar para guardar e desenvolver os tesouros da língua, da literatura e da arte que lhes legaram seus antepassados comuns.”

   As associações célticas foram fundadas na França; o ensino superior incluiu a história e a literatura céltica. Cadeiras especiais foram criadas na Sorbonne, no Colégio de França, em 1870, em Rennes e em Poitiers.

   A Revue Celtique foi publicada em Paris, e não foi extinta até ao momento, estando sob a direcção principal de Gaidoz e de d’Arbois de Jubainville.

   Após a publicação das obras célebres de Henri Martin, Jean Reynaud e A. Thierry, um marinheiro ilustre, o almirante Réveillère, pôde escrever:

“Está na ordem dos factos que os celtas, um dia ou outro, se agrupem conforme suas afinidades e formem federações para defesa de suas fronteiras naturais e propagação de seus princípios. É preciso que o Panceltismo se torne uma religião, uma fé... A obra de nossa época é dupla: primeiro, a renovação da fé cristã enxertada sobre a doutrina céltica da transmigração das almas, única doutrina capaz de satisfazer a inteligência pela crença no aperfeiçoamento indefinido da alma humana em uma série de vidas sucessivas; segundo, a restauração da pátria céltica e a reunião em um único corpo de seus membros, hoje separados.”
/…

LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico. 4º fragmento.
(imagem: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – I
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – Sem poder figurá-la, embora, pois que está além do meu conhecimento-experiência, posso conjecturar essa possibilidade. Assim, pudestes ver a Terra e mesmo distinguir de tão alto as cidades e as aldeias do nosso baixo mundo?

   Lúmen – Deixai-me prosseguir minha narrativa. Cheguei, pois, ao anel mencionado, cuja largura é bastante vasta para que 200 Terras qual a vossa possam nele rodar enfileiradas, e me encontrei sobre uma vasta montanha coroada de palácios vegetais. Pelo menos me pareceu que esses castelos feéricos cresciam naturalmente, ou eram apenas o resultado de um fácil ajustamento de ramos e flores altas. Cidade bastante populosa. Sobre o cimo da montanha onde aportara, notei um grupo de anciães, em número de 25 ou 30, os quais se fixavam, com a atenção mais obstinada e mais inquieta, em uma bela estrela da constelação austral do Altar, nos confins da Via-Láctea. Não notaram a minha chegada junto deles, tanto a sua múltipla atenção estava exclusivamente concentrada no exame da estrela, ou de um mundo do respectivo sistema.

   Quanto a mim, chegando a essa atmosfera, me vi revestido de um corpo físico igual aos deles e, surpresa maior ainda, não me admirei de ouvir que falavam a respeito da Terra, sim, da Terra, nessa linguagem universal do Espírito que todos os seres compreendem, desde o Serafim até as árvores da floresta. E não só falavam da Terra, mas, particularmente, da França.
– Porque esses massacres regulares? – eles se diziam –. “Haverá necessidade de que a força bruta reine soberana? A guerra civil irá dizimar esse povo até ao último dos seus defensores e lavar com rios de sangue as ruas da Capital, ainda há pouco tão tranquila, tão intelectual, tão elegante e tão brilhante?

   Eu não compreendia nada de tais palavras, eu que viera da Terra com uma velocidade igual à do pensamento e que, na véspera ainda, respirava o ambiente de uma cidade calma e pacífica. Reuni-me ao grupo e fixei com eles meu olhar na estrela de ouro. Bem depressa, escutando sua conversação e buscando avidamente distinguir as coisas extraordinárias das quais falavam, divisei, à esquerda da estrela, uma esfera azul-pálido: era a Terra. Não ignorais, meu amigo, que, apesar do aparente paradoxo, a Terra é verdadeiramente um astro do céu (e isso eu vos recordei há pouco). De longe, de uma das estrelas vizinhas do nosso sistema, este aparece, à visão espiritual de que falei, no grau de uma família de astros composta de oito mundos principais, unidos em torno do Sol. Júpiter e Saturno chamam primeiramente a atenção, devido ao seu tamanho; depois, não se tarda em destacar Urano e Neptuno e, em seguida, mais perto do Sol-estrela, Marte e a Terra. Vénus é mais difícil de perceber e Mercúrio fica invisível, devido à sua quase absoluta proximidade do Sol. Tal é o sistema planetário do céu.

   Minha atenção se prendeu exclusivamente na pequena esfera terrestre, junto da qual reconheci a Lua. Bem depressa notei as alvas neves do pólo boreal, a Europa tão retalhada, o Mediterrâneo azul, o triângulo amarelo da África, os contornos do oceano, e, porque minha atenção estava unicamente fixada sobre o nosso planeta, o Sol-estrela se eclipsou da minha visão. Depois, sucessivamente, pouco a pouco, consegui distinguir na esfera, em meio de regiões azuladas, uma espécie de recorte de cor bistre e, prosseguindo minha investigação, vislumbrar uma cidade no meio do dito recorte. Não tive dificuldade em reconhecer que o recorte era a França e a cidade Paris. O primeiro sinal de identificação da capital francesa foi o listão prateado do Sena, que tão faceiramente descreve tantas circunvoluções sinuosas a oeste da grande metrópole.

   Servindo-me do aparelho óptico, penetrei em maiores detalhes. A nave e as torres de Notre Dame, que eu via por cima, formavam bem uma cruz latina na ponta oriental da cidade. Os bulevares estendiam suas faixas ao norte. Ao sul reconheci o jardim de Luxemburgo e o Observatório. A cúpula do Panteão toucava com um ponto cinzento a montanha Santa Genoveva. A oeste, a grande avenida dos Campos Elíseos desenhava no solo a sua linha recta; divisava-se, mais distante, o bosque de Bolonha, os arredores de Sannt-Cloud, os bosques de Meudon, Sèvres, Ville d'Avray e Montretout. Tudo, porém, era paisagem de inverno, árvores despidas de folhagem, um triste dia de Janeiro, enquanto que eu deixara a Terra em Outubro. Tive, em pouco, a certeza de que era bem Paris o alvo da minha vista; mas, porque não compreendesse melhor as exclamações dos meus vizinhos, fiz esforços para mais exactamente realçar os detalhes.

   Minha visão se deteve de preferência sobre o Observatório, pois estava no meu bairro favorito, o qual, durante oito lustros, deixara apenas por alguns meses. Ora, julgue qual teria sido minha surpresa, quando meu olhar se adaptou mais completamente ao cenário e percebi não mais existir avenida entre o Luxemburgo e o Observatório, e que essa magnífica aléia de castanheiros dera lugar a jardins de mosteiros. Um desses retiros ocupava o lindo centro do vergel. O bulevar S. Miguel não existia mais, nem a rua dos Médicis; era um amálgama de ruelas, e julguei reconhecer a antiga rua do Este, a praça S. Miguel onde outrora uma antiga fonte fornecia água aos moradores do arrabalde, e uma série de outras ruazinhas que eu havia visto antigamente. Pareceu-me estar sob meus olhos o plano de Turgot, com as suas ruas e edificações. O Observatório estava despojado das cúpulas; as duas alas laterais haviam igualmente desaparecido. Pouco a pouco, prosseguindo minha investigação, constatei que, particularizando, Paris mudara profundamente. Meus rancores de artista contra as invasões da edilidade parisiense despertaram, mas foram rapidamente superados por outras cogitações mais fortes. O Arco triunfal da Estrela não existia mais, nem as avenidas opulentas que nele vinham confinar. O bulevar de Sebastopol não existia também, nem a gare do Este, e nenhuma linha de via-férrea! A torre S. Jaques estava enfeixada em um cortejo de velhos prédios e a coluna da Vitória lhe estava aproximada. A coluna da Bastilha também ausente, pois eu teria com facilidade reconhecido o génio dourado que a encimava. Na praça Vendôme a coluna da Grande Armada havia desaparecido e a rua da Paz não se via também. A rua de Rivoli sumira-se. O Louvre não estava concluído, ou então demolido. Entre o trecho quadrado do Louvre e as Tulherias, viam-se casebres amontoados, uma pequena igreja, velhos terraços e mansardas. Na praça da Concórdia não se distinguia mais o obelisco, mas parecia ver-se enorme pedestal e ante ele grande e grulhante multidão contida por tropas militares. Não se avistavam a igreja Madalena e a rua Royale. Havia uma ilhota por detrás da ilha S. Luís. Os bulevares exteriores não eram outra coisa que o velho muro da ronda, e as fortificações tinham destruído seus contornos. Enfim, embora reconhecendo a capital da França, pelos edifícios que lhe restavam e por alguns quarteirões não transformados, estava sem saber que pensar de tão maravilhosa metamorfose, que, da véspera para o outro dia, tão radicalmente mudara o aspecto da velha cidade.

   Ao meu pensamento acudiu, de início, a idéia de que, ao invés de pouco tempo, gastara, em vir da Terra, mais de um ano, lustro, decénio ou século.

   E porque a noção do tempo é essencialmente relativa e a medida da sua duração nada tem de real, nem de absoluta, separada do globo terrestre, eu perdera, por esse motivo, toda a medida fixa, e a mim mesmo dizia que um ano ou até um século podia ter passado ante meu ser sem que me apercebesse, pois o tão vivo interesse tomado por essa viagem não me fizera achar o tempo longo – expressão vulgar indicadora dessa sensação em nosso espírito. Não tendo meio algum de me certificar da realidade, terminaria por crer sem dúvida que muitos séculos já me separavam da vida terrestre e tinha sob os olhos a Paris do século XXI, se eu não houvesse, então, aprofundado mais o exame do conjunto.

   Com efeito, identifiquei sucessivamente o aspecto da cidade e cheguei, por gradação, a reencontrar terrenos, ruas e edifícios que havia conhecido na minha infância. O Palácio da Municipalidade me apareceu todo embandeirado e o castelo das Tulherias apresentava sua cúpula quadrada central. As torres feudais do Chatelet e da Santa-Capela assinalavam bem o antigo palácio. Um pequeno detalhe completou minha elucidação, quando, no centro do jardim de um velho mosteiro da rua S. Jaques, discerni um pavilhão cuja vista me fez estremecer. Fora ali que eu encontrara, adolescente, a mulher que me amou, com um profundo amor, a minha Eivlys, tão terna e tão devotada, que tudo abandonou para se entregar ao meu destino. Revi a pequena cúpula do terraço ante a qual íamos sonhar à tarde e estudar as constelações. Ah! com que júbilo acolhia eu esses passeios durante os quais, acertando o passo um pelo outro, caminhávamos as avenidas, fugindo aos olhos indiscretos do mundo ciumento. Revia o pavilhão, reconhecendo-o tal qual era então, e podeis calcular que tal vista bastou, ela só, para completar minhas indicações e convencer-me, com uma convicção invencível e inquebrantável, de que, longe de ter sob os olhos – conforme fora natural imaginar – a Paris de depois da minha morte, eu tinha ante mim a Paris desaparecida, a velha Paris do começo do século XIX, ou a do fim do XVIII.

   Podeis compreender facilmente, no mínimo, que eu, apesar da evidência, não devia crer no que meus olhos viam. Parecia-me mais natural imaginar que Paris havia envelhecido tanto, sofrido tais transformações depois da minha partida da Terra (intervalo cuja duração me era totalmente desconhecida), que eu tinha sob a vista a cidade do futuro, se posso exprimir por esta imagem um facto que estava presente para mim. Prossegui, pois, atentamente minha observação, para constatar, de modo decisivo, que se tratava da antiga Paris, em parte demolida actualmente, o que eu tinha sob os olhos, ou se, por um fenómeno não menos incrível, era uma outra Paris, uma outra França, uma outra Terra.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I, fragmento global 4º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O Espiritismo na Arte~


Parte I

(Objectivo da arte.
Objectivo da evolução.
Necessidade das vidas sucessivas.
Apresentação de o Esteta)

   Dissemos que o objectivo essencial da arte é a procura e a realização da beleza;
é, ao mesmo tempo, a procura de Deus, pois que Deus é a fonte primeira e a realização perfeita da beleza física e moral.

   Quanto mais a inteligência se apura, se aperfeiçoa e se eleva, mais se impregna
da ideia do belo.


O objectivo essencial da evolução, portanto, será a procura e a conquista da beleza, a fim de realizá-la no ser e nas suas obras. Tal é a norma da alma na sua ascensão infinita.

   Nisso já se impõe a necessidade das vidas sucessivas como meio de adquirir, por esforços contínuos e graduados, um sentido sempre mais preciso do bem e do belo. Os inícios são modestos aqui na Terra, a alma se prepara primeiro nas tarefas humildes, obscuras, apagadas, depois, pouco a pouco, por novas etapas, o espírito adquire a dignidade de artista. Mais elevado ainda, ele se abrirá às concepções vastas e profundas, que são o privilégio do génio, e se tornará capaz de realizar a lei suprema da beleza ideal.

   Em nossa Terra, os artistas não se inspiram todos nesse ideal superior. A maior parte limita-se a imitar o que eles chamam “a natureza”, sem perceber que ela não é mais que um dos aspectos da obra divina. No espaço, porém, a arte reveste formas ao mesmo tempo mais subtis e mais grandiosas e se ilumina com um reflexo divino.

   Eis por que, neste estudo, tivemos que consultar principalmente os nossos espíritos-guias, recolher e resumir seus ensinamentos. No âmbito em que vivem, as fontes de inspiração são mais abundantes, o campo de acção se alarga; o pensamento, a vontade, o poder supremo se afirmam e irradiam com mais intensidade.

   Nossos protectores invisíveis nos enviaram primeiro o Espírito Massenet*, que veio nos ditar cinco lições sobre a música celeste, procedendo como o fazia sobre a Terra, nos seus cursos do Conservatório. Mas isso não podia ser suficiente para nós; precisávamos de dados mais gerais, de uma visão global sobre a forma como a arte é sentida e praticada no Além.

   Observa-se muitas vezes, nas obras inspiradas por espíritos, principalmente nos livros anglo-saxões, a descrição de lugares, de monumentos, de moradas criadas com a ajuda de fluidos, pela vontade dos habitantes do espaço. Temos necessidade de esclarecimentos sobre esse assunto tão controverso e sobre o qual, até hoje, faltaram indicações preciosas.

   De acordo com nossos pedidos reiterados, e a fim de nos ensinarem, os guias nos anunciaram uma entidade que se apresenta sob este nome: o Esteta, cuja personalidade verdadeira só nos será revelada ao final deste estudo. Imediatamente tivemos a impressão de que nos encontrávamos em presença de um espírito de alto valor.

   O fenómeno produziu-se sob a forma de incorporações. Desde o momento em que a entidade toma posse do médium em transe, os traços deste, que é um rapaz cego, tomam uma expressão de calma, de serenidade quase angélica e, que contrasta com a maneira de ser dos outros espíritos. A palavra é suave, penetrante, e, quando a sessão termina, os assistentes se encontram sob uma impressão de serena paz, de profunda quietude. O médium, ao despertar, ignora completamente o que foi dito por sua boca durante o transe e declara encontrar-se como mergulhado em um “banho de radiações”. Ele experimenta uma sensação de bem-estar inexprimível.

   O Esteta tomou a arquitectura como tema das duas primeiras lições estenografadas, que reproduzimos mais adiante. Escolheu como modelo a catedral, porque ela serve de moldura a todas as outras artes. Mais tarde ele nos falará de escultura, de pintura, de eloquência e, por fim, o estudo da música e as lições de Massenet virão completar esta exposição.
/…

* Massenet (Jules): compositor francês (Montaud, Saint-Étienne, 1842 – Paris, 1912). Sua arte encantadora, sensível, possuía o dom da invenção melódica e o senso real do teatro. Autor de Manon, Herodíade, Taís, Werther, O Jogral de Notre-Dame, Dom Quichote, etc. (N.T., segundo o Dicionário Koogan Larousse.)


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte I – Objectivo da arte – Objectivo da evolução – Necessidade das vidas sucessivas – Apresentação de o Esteta. 2º Fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

~~~Párias em Redenção~~~


3. O TESTAMENTO
.../

   Terminados os ofícios fúnebres dedicados aos infortunados descendentes do duque di Bicci di M., os despojos mortais das crianças foram inumados no mausoléu da família, na delicada capela fronteiriça à casa senhorial, na qual dias antes

fora depositado o corpo de Dom Giovanni.

Lúcia, acusada vilmente por Girólamo, que se fazia acompanhar do falso testemunho de Assunta, teve negada pela Igreja “terra sagrada” ao seu corpo, que não mereceu exéquias de qualquer natureza, sendo sepultada na floresta, como animal batido em refrega selvagem.

   As autoridades policiais fizeram ligeira investigação e, como faltasse um móvel para outras suspeitas, o “caso” foi encerrado dentro das disposições legais e as sombras fantasmagóricas da tragédia caíram pesadamente sobre o palácio, onde antes abundavam a alegria e a fartura, a arte e a beleza, quando nos dias da Senhora duquesa Ângela.

   Girólamo, por autorização da Justiça de Siena, despediu os servos, permitindo somente a alguns que se fixassem no local, nos mesmos terrenos da propriedade do seu tio e pai adoptivo, enquanto se tomavam as providências para abertura do testamento, em data a ser fixada, logo diminuísse o impacto do infortúnio que enlutara toda a região. Fâmulos e servos foram dispensados, ficando, apenas, alguns zeladores para guarda e conservação da casa, amanho do solo e protecção aos animais…

   Fingindo um abatimento profundo e recusando alimentos, em ardilosa atitude, estudada para escapar a quaisquer suspeitas, o moço malsinado concertou com Assunta os planos para o futuro.

   – Acredito conveniente – arengou, logo pôde encontra-se com a sórdida companheira de crimes – que nos separemos por algum tempo e que te dirijas à Capital (*), de modo a evitar desconfianças quanto aos acontecimentos últimos do Palácio di Bicci.

   Procurando demonstrar um amor e afecto que estava longe de sentir, envolveu a jovem irresponsável com braços de lânguida sensualidade e, persuadindo-a, serpente que hipnotiza a pomba invigilante para a devorar depois, continuou:

   – Não ignoras o imenso amor que me devora a alma por ti. Sabes da chama que me queima e requeima, somente diminuindo de intensidade quando em comunhão contigo. Anelo a bênção do matrimónio, a fim de regulaizar a nossa incómoda situação, quando, passado algum tempo e o olvido tudo tiver envolvido, retornares à nossa casa, na condição de senhora.

   – Temo, Girólamo! Pressinto que nunca poderei ser feliz ao teu lado, por mais que o cobice. Devorada pela paixão, não titubeei em ser-te fiel até ao crime. Por ti faria muito mais. Esta loucura, que me cega e que me conduz à destruição em passos de corcel veloz, me domina cada dia, e temo. Não me enganas: somos da mesma têmpera e feitos do mesmo material. Eu te amo, embora não creia no teu afecto. Pressinto que te queres apartar de mim e que, no resultado final da escolha, ficarei à margem. Seleccionarás uma dessas mulheres que são adorno social, para compartir as homenagens e glórias contigo, embora me busques às escapadas, para o leito da animalidade. Não te atrevas, porém, a trair-me. Sabes que nós outros, os etruscos, especialmente os nascidos em Chiusi, somos violentos e apaixonados; recorda que os nossos ascendentes, que antes dominaram estas terras, defenderam-na até a total extinção da raça. Já te disse muitas vezes que não sou daquelas que cedem ou que se conformam com a derrota. Arrastaste-me ao crime e tens agora o teu destino ao meu ligado…

   Repentinamente, desapareceram do rosto da jovem os sinais da ternura e da afectividade, transformando-se a face, visivelmente conturbada. Os olhos se dilataram e, afastando-se do amante com gesto brusco, gargalhou, transtornada, falando com os dentes rilhados:

   – Qualquer traição da tua parte será cobrada com o ácido da vindita. Denunciar-te-ei às autoridades, narrando toda a infâmia, desde os seus primeiros planos; direi a forma como me seduziste, arrastando-me contigo à perene desdita, mesmo que, com a denúncia da tua pessoa, eu pague o suplício ao teu lado. Nunca te cederei a outra, não esqueças!

   Muito pálido, o moço, acobardado ante a acusação que temia e esperava, avançou e esbofeteou a jovem, enquanto lhe gritava:

   – Não me repitas mais esta acusação; nunca mais! Desgraçados já o somos desde a hora do nosso conúbio para o homicídio e a desonra. A memória da minha tia me persegue e um surdo ódio ainda me extravasa do coração quando recordo o duque, e sinto algo, como se a sua sombra hedionda me seguisse os passos. As artimanhas do remorso já tomam forma em minha memória e procuro apagá-las… Tu, também, te levantas para me incriminar, sabendo que tudo foi feito para nossa felicidade, porque te amo e desejo a paz para nós? Antes, a nossa união seria impossível… Agora, quando tudo se regularize e eu passe a ostentar o poder, quem me reprochará a escolha? Não sabes que o dinheiro e a posição tudo conseguem no mundo? Cala e ouve!

   A encenação desmedida produzida por Girólamo impressionou favoravelmente a companheira inexperiente.

   Ele a fitou, e enquanto seus olhos brilhavam – ninguém poderia saber se de volúpia, aumentada pela ardência do atrito, se de paixão de homem desregrado, ou de medo da ameaça – , imprimiu a fogo as palavras proferidas pela moça, no adito da memória, para estar sempre vigilante, constatando que ela o faria, assim se sentisse ludibriada na posse devastadora da carne.

   Girólamo, conquanto jovem, desde cedo acostumara-se às astúcias do crime, Espírito endividado em muitas existências, trazia consigo as sementes da violência e da alucinação cobarde, conhecendo os meandros sórdidos da consciência muitas vezes ultrajada e, interiormente, se acreditava capaz de qualquer tentame nos arraiais da delinquência. Por isso se identificara facilmente com Assunta que, ao seu lado, repetia experiência insana, tentando regularizar débitos pretéritos, que complicava ainda mais pela invigilância actual, enrodilhando-se em cipós de cruel aflição, para futuro próximo.

   É claro que desde a elaboração do plano do homicídio múltiplo ele cuidara, também de tomar uma medida para ser executada oportunamente, de modo a libertar-se da única testemunha da sua crueza criminosa. Agora, no entanto, era necessário silenciar-lhe a voz temporariamente, mediante o afastamento dos sítios de Siena, para evitar complicações. Aproveitava-se, logicamente da justificativa de despedir os fâmulos e serviçais para, assim, prosseguir aguardando os resultados da leitura do testamento.

   Após a demorada reflexão, durante a qual fixava a jovem dominada pelo seu encanto maléfico, propôs:

   – Demandarás a Capital e lá te quedarás por algum tempo. Sei que tens família entre os florentinos e tomarás precauções extremas, evitando aventuras ou excessos e cultivando o recato, pois em breve serás a esposa de um Cherubini… Irei visitar-te sempre que o possa fazer, sem que a minha ausência venha a levantar suspeição aqui. Encontrar-nos-emos e, felizes, traçaremos planos para o nosso futuro. Serás minha desde hoje e ninguém mais te possuirá. Evita os teus amos, caso necessites de servir alguém, e esquece tudo quanto aconteceu no Palácio di Bicci. Irei preparar a mentalidade dos meus amigos e de algumas famílias locais, logo entre na posse dos bens, para que todos te recebem fidalgamente. O tronco da família donde procedes dar-te-á entrada fácil na nossa sociedade agrícola, tão corrupta quanto a citadina, bem o sei…

   E tomando a jovem, com a violência da paixão desregrada, nublou-lhe a mente, dominando-lhe o corpo e a alma…

   Assunta despediu-se dos últimos servos, arrumou os pertences e partiu numa sege especial a expensas de Girólamo. Afastou-se do amante com lágrimas, e este, quando viu a carruagem desaparecer entre os cedros que bordavam a estrada, respirou fundo e sorriu em misterioso júbilo, como se tudo estivesse a transcorrer conforme planejado.
/...
(*) Florença. 


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 3. O TESTAMENTO (fragmento 1 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


I O Espiritualismo e a Guerra

Outubro de 1914

   Factos temerosos vêm acontecendo há alguns meses,
e uma tempestade de ferro e fogo desabou sobre a Europa, abalando os alicerces da civilização.
Não são milhares, são milhões
de homens que se entrechocam numa batalha formidável, numa luta jamais presenciada pelo mundo.
O número de vidas humanas sacrificadas é tão grande que deixa estarrecido
o pensamento.


   Até o próprio destino das nações é posto em dúvida. Em determinadas horas trágicas, a França viu passar sobre ela o vento da ruína e da morte, e talvez o nosso país terminasse destruído, se não fossem os auxílios do Alto e a incontável legião de espíritos, acudindo de todos os pontos do Espaço, para ajudar seus defensores, aumentar-lhes a energia, favorecer-lhes o ânimo e estimular-lhes o ardor.

   Diante desse drama terrível indagamos, como num pesadelo, que lição fica desses factos dolorosos.

   Observemos, diante da primeira análise, que esses acontecimentos eram anunciados antecipadamente. Os avisos vinham de toda parte; por nosso lado sentíamos aproximar-se a tempestade e um mal-estar indefinível invadia nossas almas. Segundo as palavras de um pensador, os grandes acontecimentos que abalam o mundo projectam primeiramente sua própria sombra.

   Todavia, a massa dos homens continuava indiferente. A França principalmente, há 20 anos adormecera numa ilusão de bem-estar e de sensualidade, sendo que a maior parte de seus filhos só objectivava conquistar a riqueza e desfrutar os prazeres que ela proporciona.

   A consciência pública, a noção do dever, a disciplina familiar e social, sem as quais não há nações progressistas, atrofiavam-se cada vez mais.

   Processos escandalosos revelavam um estado de terrível corrupção; o alcoolismo, a prostituição e a pequena percentagem de nascimentos daí resultante pareciam encaminhar a nação para inevitável decadência.
  
   Nossos inimigos achavam os franceses um povo exausto e se preparavam para disputar seus despojos.

   Por acaso as discussões inúteis em que estávamos empenhados não nos condenavam à fraqueza? No entanto, nossa desunião era apenas aparente, pois, diante do perigo que ameaça a pátria, todos os corações sabem unir-se para um esforço supremo.

   Como em todos os instantes solenes da História (como na época de Joana d’Arc), o mundo invisível interferiu e, impulsionadas pelo Alto, as forças profundas da raça, que dormitam dentro de cada um de nós, despertaram, entraram em acção e, num grande ardor, fizeram renascer, com toda plenitude, as virtudes heróicas dos séculos passados.

   O general Joffre é, sem dúvida, um estratega de valor, mas sabemos, com segurança, que suas melhores inspirações, sem que ele o soubesse, vieram do além.

   Nosso país, que parecia corrompido, condenado a desaparecer, mostrou ao mundo assombrado que havia nele um poder irresistível, em estado latente.

   Premida pela provação e por vontade superior, a França despertou. Num ímpeto supremo e disposta a todos os sacrifícios, ergueu-se contra um invasor sem escrúpulos, cego pelo orgulho e ávido para implantar no mundo seu domínio bárbaro e brutal.

   Julguem o que julgarem os alemães, há justiça no Universo. Não basta ter nos lábios, a cada instante, o nome de Deus; seria muito melhor guardar no coração suas leis imutáveis.

   O direito não é uma palavra vã e o poder material não é absoluto neste mundo.

   As mentiras, a perfídia, a violação dos tratados, o incêndio das cidades, a morte dos fracos e dos inocentes não podem encontrar desculpas diante da majestade divina.

   Qualquer mal praticado atinge, com suas consequências, quem o produziu e a violação do direito dos fracos se volta contra os poderes dos ultrajantes.

   A invasão e a devastação da Bélgica e do norte da França provocaram indignação geral e uma grande reacção das forças invisíveis. Das regiões devastadas um grito de angústia subiu ao céu, que não ficou surdo a tão desesperados apelos. Os poderes do Além entram em acção: são eles que sustentam a França e animam seus filhos ao combate.

   À rectaguarda dos que sucumbem, outros aparecerão, até que o invasor sinta que a sua disposição se enfraquece e que o destino se ergue contra ele.

   Os que morreram voltam ao Espaço com a glória do dever cumprido e o exemplo deles animará as vindouras gerações.

   A lição que fica desses terríveis acontecimentos consiste em que o homem deve aprender a elevar seus pensamentos acima dos tristes espectáculos do mundo e voltar suas vistas para esse Além de onde descem os socorros, as forças necessárias para empreender uma nova etapa, objectivando o fim grandioso que lhe está designado.

   Nossos contemporâneos haviam depositado seu pensamento e suas amizades nas coisas materiais, porém os factos demonstraram que elas eram passageiras e precárias e que as esperanças e as glórias que elas suscitam são também efémeras.

   Nenhum bem, nenhum poder terrestre está protegido das catástrofes; só os do espírito imortal possuem verdadeira duração, riqueza ou esplendor, porque só o espírito é capaz de transformar as obras de morte em obras de vida. Porém, para compreender tão profunda lei é necessária a escola do sofrimento. Assim como o raio de luz precisa decompor-se no prisma para produzir as cores brilhantes do arco-íris, também a alma humana deve purificar-se pela provação, a fim de que brilhem todas as energias e todas as qualidades que nela dormitam.

   É especialmente na desgraça que o homem pensa em Deus, e assim que as paixões ardentes tiverem se apaziguado e que a sociedade tiver recomeçado a vida normal, começará a missão dos espíritas.

   Quantas lutas haverá então para consolar! Quantas chagas morais para curar! quantas almas dilaceradas para socorrer!

   Pela actuação lenta, profunda e eficiente do sofrimento, um grande número de seres ficará acessível às verdades de que somos responsáveis depositários. Aproveitemos, portanto, as trágicas situações que atravessamos e a Providência fará delas nascer benefícios para a humanidade.

   Todas as almas fortes, que mantiveram sangue frio no meio da borrasca, suplicarão, conosco, que as provações sofridas por nosso país lhes façam vibrar na alma os sentimentos de honra, união e concórdia, que são poderosos meios de ressurgimento.

   Tais sentimentos, por sua intensidade, poderiam actuar contra os flagelos da sensualidade, do egoísmo e do personalismo desmesurado que se implantaram, como senhores, em nossa França, abafando generosos instintos que sempre estavam prontos a reviverem nela.

   Que os franceses, raça inteligente e nobre, de mãos estendidas e corações abertos, voltem a ser admirados, como exemplo vivo que todas as nações se alegram em seguir.
/...


“Léon Denis, que vivenciou um dos períodos mais conturbados da história francesa, escrevia tendo como base as mensagens mediúnicas que lhe chegavam, particularmente do médium cego, Sr. G. C., que possuía a mediunidade da escrita mecânica.”
Altivo Carissimi Pamphiro in O Mundo Invisível e a Guerra, 2ª Edição CELD 2001 Apresentação.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, I O Espiritualismo e a Guerra.
(imagem: Naufrágio de "O Lusitania" navio de passageiros a navegar com bandeira inglesa, no decurso da Primeira Guerra Mundial, após ter sido Torpedeado pelo submarino alemão U-20. Afundamento que demorou apenas 18 minutos e no qual perderam a vida 1200 pessoas)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O Alvo da Vida~



   Por esses dados, em torno de nós se estabelece a ordem; o nosso caminho se esclarece; mais distinto se mostra o alvo da vida. Sabemos o que somos e para onde vamos.

   Desde então não devemos mais procurar satisfações materiais, porém trabalhar com ardor pelo nosso adiantamento. O supremo alvo é a perfeição;
o caminho que para lá conduz é o progresso. Estrada longa que se percorre passo a passo.
À proporção que se avança, parece que o alvo longínquo recua, mas, em cada passo que dá, o ser recolhe o fruto de seus trabalhos, enriquece a sua experiência e desenvolve as suas faculdades.

   Nossos destinos são idênticos. Não há privilegiados nem deserdados. Todos percorrem a mesma vasta carreira e, através de mil obstáculos, todos são chamados a realizar os mesmos fins. Somos livres, é verdade, livres para acelerar ou para afrouxar a nossa marcha, livres para mergulhar em gozos grosseiros, para nos retardarmos durante vidas inteiras nas regiões inferiores; mas, cedo ou tarde, acorda o sentimento do dever, vem a dor sacudir-nos a apatia e, forçosamente, prosseguiremos a jornada.

   Entre as almas só há diferenças de graus, diferenças que lhes é lícito transpor no futuro. Usando do livre-arbítrio, nem todos havemos caminhado com o mesmo passo e isso explica a desigualdade intelectual e moral dos homens; mas todos, filhos do mesmo Pai, nos devemos aproximar dEle na sucessão das existências, para formar com os nossos semelhantes uma só família, a grande família dos bons Espíritos que povoam o Universo.

   Estão banidas do mundo as idéias de paraíso e de inferno eterno. Nesta imensa oficina, só vemos seres elevando-se por seus próprios esforços ao seio da harmonia universal. Cada qual conquista a sua situação pelos próprios actos, cujas consequências recaem sobre si mesmo, ligam-no e prendem. Quando a vida é entregue às paixões e fica estéril para o bem, o ser se abate; a sua situação se apouca. Para lavar manchas e vícios, deverá reencarnar nos mundos de provas e ali purificar-se pelo sofrimento. Cumprida a purificação, sua evolução recomeça. Não há provações eternas, mas sim reparações proporcionais às faltas cometidas. Não temos outro juiz nem outro carrasco a não ser a nossa consciência, pois essa consciência, assim que se desprende das sombras materiais, torna-se um julgador terrível. Na ordem moral como na física só há efeitos e causas, que são regidos por uma lei soberana, imutável, infalível. Essa lei regula todas as vidas. O que, em nossa ignorância, chamamos injustiça da sorte não é senão a reparação do passado. O destino humano é um pagamento do débito contraído entre nós mesmos e para com essa lei.

   A vida actual é a consequência directa, inevitável das nossas vidas passadas, assim como a nossa vida futura será a resultante das nossas acções presentes, da nossa maneira de viver. Vindo animar um corpo novo, a alma traz consigo, em cada renascimento, a bagagem das suas qualidades e dos seus defeitos, todos os tesouros acumulados pela obra do passado. Assim, na série das vidas, construímos por nossas próprias mãos o nosso ser moral, edificamos o nosso futuro, preparamos o meio em que devemos renascer, o lugar que devemos ocupar.

   Pela lei da reencarnação, a soberana justiça reina sobre os mundos. Cada ser, chegando a possuir-se em sua razão e em sua consciência, torna-se o artífice dos próprios destinos. Constrói ou desmancha, à vontade, as cadeias que o prendem à matéria. Os males, as situações dolorosas que certos homens sofrem, explicam-se pela acção desta lei. Toda vida culpada deve ser resgatada. Chegará a hora em que as almas orgulhosas renascerão em condições humildes e servis, em que o ocioso deve aceitar penosos labores. Aquele que fez sofrer sofrerá a seu turno.

   Porém, a alma não está para sempre ligada a esta Terra obscura. Depois de ter adquirido as qualidades necessárias, deixa-a e vai para mundos mais elevados. Percorre o campo dos espaços, semeado de esferas e de sóis. Ser-lhe-á arranjado um lugar no seio das humanidades que os povoam. E, progredindo ainda nesses novos meios, ela, sem cessar, aumentará a sua riqueza moral e o seu saber. Depois de um número incalculável de vidas, de mortes, de renascimentos, de quedas e de ascensões, liberta das reencarnações, gozará vida celeste, tomará parte no governo dos seres e das coisas, contribuindo com suas obras para a harmonia universal e para a execução do plano divino.

   Tal é o mistério de psique – a alma humana –, mistério admirável entre todos. A alma traz gravada em si mesma a lei dos seus destinos. Aprender a soletrar os seus preceitos, aprender a decifrar esse enigma, eis a verdadeira ciência da vida. Cada farrapo arrancado ao céu da ignorância que a cobre, cada faísca que adquire do foco supremo, cada conquista sobre si mesma, sobre suas paixões e seus instintos egoísticos permite-lhe uma alegria pura, uma satisfação íntima, tanto mais viva quanto maior for o trabalho executado.

   Eis aí o céu prometido aos nossos esforços. O céu não está longe de nós, mas, sim, conosco. Felicidades íntimas ou remorsos pungentes, o homem traz, nas profundezas do ser, a própria grandeza ou a miséria consequente dos seus actos. As vozes harmoniosas ou severas que em si percebe são as intérpretes fiéis da grande lei, tanto mais potentes e imperiosas quanto mais elevado ele estiver na escala dos aperfeiçoamentos infinitos. A alma é um mundo em que se confundem ainda sombras e claridades, mundo cujo estudo atento faz-nos cair de surpresa em surpresa. Em seus recônditos todas as potências estão em germe, esperando a hora da fecundação para se desdobrarem em feixes de luz. À medida que ela se purifica, suas percepções aumentam. Tudo o que nos encanta em seu estado presente, os dons do talento, os fulgores do génio, tudo isso nada é, comparado ao que um dia adquirirá, quando tiver atingido as supremas altitudes espirituais.
Já possui imensos recursos ocultos, sentidos íntimos, variados e subtis, fontes de vivas impressões, mas o pesado e grosseiro invólucro embaraça-lhe quase sempre o exercício.

   Somente algumas almas eleitas, destacadas por antecipação das coisas terrestres, depuradas pelo sacrifício, sentem as primícias desse mundo; todavia, não encontram palavras para descrever as sensações que as enlevam e os homens, em sua ignorância da verdadeira natureza da alma e das suas potências latentes, têm escarnecido disso que julgam ilusões e quimeras.


LÉON DENIS, Depois da Morte – Parte Segunda Os Grandes Problemas – O Alvo da Vida.
(imagem: La Petite Esmeralda_1874, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


   Durante a longa noite
da Idade Média, o ideal céltico aparentemente foi esquecido, mas ele subsistiu e adormeceu na consciência popular.

Os druidas e os bardos, expulsos da terra das Gálias, foram para a ilha da Bretanha.

Na França, os nobres e os senhores foram divididos em partidos rivais e se desgastaram em lutas internas. O povo pobre das cidades e dos campos foi entregue a uma pesada tarefa, absorvidos pelas preocupações materiais, sofrendo fome e miséria.

   O Cristianismo, tendo penetrado na Gália, suavizou até certo ponto esses males. Ele representou benefício e progresso; a religião de Jesus se adaptou bem à fraqueza humana. Se a lei do amor e do sacrifício, que ela trazia, tivesse achado sua aplicação, podia ser suficiente para a salvação das almas e para a redenção da humanidade.

   Com a finalidade de aperfeiçoamento moral, a religião cristã reprimia a vontade, a paixão, o desejo, tudo o que constitui o “eu”, o centro da personalidade. A doutrina céltica, pelo contrário, aplicava-se em dar ao ser todo o seu poder de irradiação, inspirando-se nessa lei de evolução que não tem limite, na qual a ascensão da alma é infinita. A alma cristã aspira ao repouso, à bem-aventurança no seio de Deus, mas a alma céltica se interessa em desenvolver seus poderes íntimos a fim de participar, numa medida crescente, de círculos em círculos, da vida e da obra universal.

   A alma cristã é mais amante, a alma céltica é mais viril. Uma procura ganhar o céu pela prática das virtudes, pela abnegação e pela renúncia; a outra quer conquistar o “Gwynfyd”, colocando em acção as forças que adormecem nela. Mas ambas têm sede do infinito, da eternidade, do absoluto. A alma céltica acrescenta o sentido do invisível, a certeza do além e o culto fervoroso da Natureza.

   Essas duas almas, porém, muitas vezes coexistem, ou melhor, se superpõem nos mesmos seres. É o caso para muitos de nossos compatriotas; entre eles essas duas almas ainda se ignoram, mas se fundirão um dia.

   Será preciso lembrar que a doutrina de Cristo perdeu, em vários pontos, o seu sentido primitivo? A França se achou ante um ensino teológico que tinha restringido todas as coisas, reduzindo as proporções da vida a uma única existência terrestre, muito desigual, conforme os indivíduos, para os fixar em seguida em uma imobilidade eterna. As perspectivas do inferno tornaram a morte mais temível. Elas fizeram de Deus um juiz cruel que, tendo criado um homem imperfeito, o punia por essa imperfeição sem reparação possível. E daí o progresso do ateísmo, do materialismo, que com o tempo fizeram da França uma nação em maioria céltica, desprovida de força moral, dessa fé robusta e esclarecida que torna o dever fácil, a prova suportável, e atribui à vida um fim prático de evolução e de aperfeiçoamento.

   O jugo feudal e teocrático durante longo tempo pesou sobre a França; depois, chegou a hora em que ela retomou sua liberdade de pensar e de crer. Então, desejou-se passar pelo crivo toda a obra dos séculos e, sem verificar o que era bom e belo, sob pretexto da crítica e da análise, foi realizado um trabalho ferrenho de desagregação. Em um dado momento, nada mais se via no domínio do pensamento, a não ser escombros; do que havia feito a grandeza do passado nada ficou de pé, e somente sobrou a poeira das idéias.

   Escritores de mérito e pensadores conscienciosos muito se aplicaram, em suas obras, para fazer ressaltar o valor e o prestígio do Druidismo, mas o fruto de seus trabalhos não penetrou nas camadas profundas da nação. Até tivemos o assombro de ver universitários, membros distintos do ensino, alinharem-se com os teólogos para denegrir, desfigurar as crenças dos nossos antepassados. O trabalho secular de destruição foi tão completo, a noite foi tão profunda sobre suas concepções, que raros se tornaram aqueles que dele ainda experimentavam a potência e a beleza.

   Ficar desprovida de noções precisas sobre a vida e sobre a morte, em conformidade com as leis da Natureza e as intuições profundas da consciência, seria uma grande causa de fraqueza e, portanto, uma infelicidade para a França. Durante séculos ela esqueceu suas tradições nacionais, perdeu de vista o génio de sua raça, como também as revelações dadas aos seus antepassados para dirigir sua escalada para um fim elevado.

   Essa revelação afirmava que o princípio da vida no homem é indestrutível, que as forças, as energias que se agitam em nós não podem ser condenadas à inação, que a personalidade humana é chamada a se desenvolver, através do tempo e do espaço, para adquirir as qualidades, as potências novas que lhe permitirão desempenhar um papel sempre mais importante no Universo.

   Eis que esta revelação se repete, renova-se. Como nos tempos célticos, o mundo invisível intervém. Há cerca de um século, a voz dos espíritos é ouvida em todos os lugares da Terra. Ela demonstra que, de um modo geral, nossos pais não se enganaram. Suas crenças estão confirmadas pelos ensinos de além-túmulo em tudo que se relaciona com a vida futura, a evolução, a justiça divina, em outras palavras, pelo conjunto das regras e das leis que regem a vida universal.

   Graças a essa luz, o infinito está aberto para nós até as suas profundezas íntimas. Em vez de um paraíso beato e de um inferno ridículo, entrevimos o imenso séquito dos mundos, que são as estações que a alma percorre na sua longa peregrinação, na sua ascensão para Deus, construindo e possuindo em si mesma sua felicidade e sua grandeza pelos méritos adquiridos.

   Em lugar da fantasia ou do arbítrio, em toda parte desponta a ordem, a sabedoria e a harmonia.

   Para as gerações que se erguem e procuram um ideal suscetível de substituir as pesadas teorias escolásticas, afirmamos: examinai conosco essas duas fontes, que formam uma só, confundindo-se na sua identidade; examinai as fontes puras onde nossos ancestrais temperaram seus pensamentos e sua alma. Ali obtereis a força moral, as qualidades viris e o ideal elevado, sem os quais a França seria entregue a uma decadência irremediável, à ruína e à morte!
/... 


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico. 3º fragmento.
(imagem: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – I

Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – É a primeira vez que assimilo, sob uma forma sensível, este facto não sobrenatural da morte, e compreendo a existência individual da alma, sua autonomia do corpo e da vida, sua personalidade e sobrevivência, sua situação tão simples no céu. Esta teoria sintética me prepara, eu o creio, para compreender e apreciar vossa revelação. Um acontecimento singular, dissestes, vos impressionou a entrada na vida eterna. Em que momento sobreveio?

   Lúmen – Ei-lo, meu amigo. Deixe-me seguir na narrativa. Soavam, bem sabeis, as doze pancadas da meia-noite, no tímpano do meu velho carrilhão e o plenilúnio, em meio do seu curso, derramava seu pálido clarão sobre meu leito mortuário, quando minha filha, meu neto e amigos de estima saíram do aposento, no intuito de repousar um pouco. Quisestes permanecer assistindo-me e prometestes à minha filha não abandonar o lugar até ao amanhecer. Eu vos agradeceria esse devotamento, terno e dedicado, se não fôssemos qual dois verdadeiros irmãos. Teria decorrido meia-hora, mais ou menos, pois o astro das noites declinava para a direita, quando vos peguei a mão e anunciei que a vida já me abandonava as extremidades. Assegurastes-me o contrário; mas, eu observava com calma meu estado fisiológico e conhecia que poucos instantes restavam ainda a respiração. Dirigistes subtilmente vossos passos para o aposento dos meus filhos, mas (ignoro por que concentração de esforços) pude conseguir gritar, detendo tal intento. Voltastes, olhos lacrimosos, meu amigo, e dissestes: Sim, vossas derradeiras vontades foram observadas e amanhã cedo será tempo ainda de fazer vir vossos filhos. Havia nessas palavras evidente contradição, que apreendi, sem isso deixar perceber. Lembrai-vos de que, então, pedi que fosse aberta a janela? Que bela noite de Outubro, mais bela do que as dos poetas da Escócia cantada por Ossian! Não longe do horizonte, e sob meus olhos, distinguiam-se as Plêiades, veladas pelas brumas inferiores. Castor e Pólux remigiavam vitoriosamente no céu, algo mais distante. E, ao alto, formando triângulo constelado com as precedentes, admirava-se, na constelação do Cocheiro, bela estrela de áureos raios, a que, desenhada à borda das cartas zodiacais, se denomina Capela, ou a Cabra. Vedes que a memória não me falha. Quando abristes a janela de todo, os perfumes das recentes rosas, adormecidas sob a asa da Noite, chegaram até mim e confundiram-se às claridades silenciosas das estrelas. Exprimir a doçura que derramaram em minha alma essas impressões – as derradeiras que a Terra me enviava, as últimas que tocavam os sentidos ainda não atrofiados – ficaria para além das possibilidades da minha linguagem: nas minhas horas de mais terno enlevo, de mais suave ventura, jamais senti essa alegria imensa, tal serenidade gloriosa, semelhante prazer já celeste, que me foram dados por esses minutos de êxtase, escoados entre o sopro odoroso das flores e o meigo olhar das estrelas longínquas. E, quando regressastes para junto de mim, eu também voltara ao mundo exterior e, juntas as mãos sobre o peito, deixei que meu olhar e meu pensamento rogassem unidos e subissem ao Espaço. E porque meu ouvido fosse bem depressa se fechar para sempre, recordo as derradeiras palavras que pronunciei: Adeus, meu velho amigo; sinto que a morte me conduz... rumo às regiões desconhecidas, onde nos reencontraremos um dia. Quando a aurora desmaiar as estrelas, haverá aqui apenas o meu corpo mortal. Repeti à minha filha a última expressão da minha vontade: que ela eduque os filhos, tendo em mira os bens eternos.

   E porque choráveis e dobrastes os joelhos diante do meu leito, acrescentei: Repeti a bela prece de Jesus. E começastes a dizer em tom vacilante o Pai-nosso...

   Perdoai-nos... nossas ofensas tal qual perdoemos... àqueles que nos... hajam... ofendido...

   Tais são os pensamentos finais que chegaram à minha alma por intermédio dos sentidos. A vista se me perturbou ao fixar a estrela Capela e não sei mais de quanto se seguiu imediatamente a esse instante. O ano, os dias e as horas são constituídos pelo movimento da Terra. Fora desses movimentos, o tempo terrestre não existe mais no Espaço; é, pois, absolutamente impossível ter noção desse tempo. Creio, sem embargo disso, ter ocorrido no próprio dia do meu trespasse o acontecimento que vou narrar, pois, conforme percebereis desde logo, meu corpo ainda não fora sepultado, quando a visão se apresentou à minha alma.

   Nascido em 1793, estava, em Outubro de 1864, no meu septuagésimo segundo ano de existência, e não me senti mediocremente surpreendido ao constatar-me animado de ardor e agilidade de espírito não menos intensos do que nos mais belos dias da minha adolescência. Não possuía corpo, porém não me julguei incorpóreo, pois senti e vi que uma substância me constituía, embora não houvesse nenhuma analogia entre tal elemento e aqueles que formam os corpos terrestres. Não sei de que modo atravessei os espaços celestes e qual a força que me aproximou depressa de um sol magnífico, cujo dourado esplendor, aliás, não me deslumbrou e que estava rodeado, qual mostrara à distância, de grande número de mundos, envoltos cada qual em um ou muitos anéis. Por essa mesma força, da qual era eu inconsciente, fui levado rumo de um desses anéis, espectador de indefiníveis fenómenos de luz, pois o Espaço estrelado estava, dir-se-ia, atravessado por pontes de arco-íris. Não via mais o sol de ouro; estava numa espécie de noite colorida de nuanças multicores. A visão da minha alma atingira potência incomparavelmente superior à dos olhos do organismo terrestre que recentemente deixara; e, circunstância notável, esse poder me parecia subordinado à vontade. Tal poder visual da alma é tão maravilhoso que não me deterei hoje em descrevê-lo. Basta que vos faça pressentir isto: em lugar de ver simplesmente as estrelas no firmamento tal qual as contemplais da Terra, eu distinguia também de modo nítido os mundos que lhes gravitam em redor; e, detalhe estranho, quando não mais desejava divisar a estrela, a fim de não ser forçado ao exame desses mundos, ela desaparecia de minha visão, deixando-me em excelentes condições para observar apenas um de tais globos.  Além disso, quando minha visão sobre um mundo em particular chegava a distinguir os detalhes da superfície, os continentes e os mares, os nevoeiros e os rios, e, embora não visse aumentar perceptivelmente, qual acontece com o auxílio dos telescópios, conseguia, por intensidade particular de concentração na “vista” de minha alma, enxergar o objecto sobre o qual ela convergia, no mesmo grau em que se distingue uma cidade, uma campina. Chegando a esse mundo anelar, apercebi-me de que me revestira de uma forma idêntica à dos seus habitantes, tal qual se houvesse a minha alma atraído para ela os átomos constitutivos de um novo corpo. Na Terra, os corpos são compostos de moléculas que não se tocam e se renovam constantemente pela respiração, alimentação e assimilação. Aqui, o envoltório da alma se forma de modo mais rápido. Eu me senti vivo em mais alto grau do que os seres sobrenaturais cujas paixões e saudades foram cantadas por Dante. Uma das faculdades essenciais dos habitantes desse novo mundo é decerto a de enxergar muito longe.

   Quœrens – Mas, meu amigo (perdoai minha observação quiçá ingénua), a essa tão grande distância, os mundos e os planetas que circulam em torno das estrelas não se confundem com o próprio centro de atracção? Por exemplo, a tão grande longitude, onde vos achastes, os planetas do nosso sistema não ficaram confundidos nessa estrela, no nosso Sol? Pudestes distinguir a Terra?

   Lúmen – Haveis aproveitado, à primeira vista, a única objecção geométrica que parece contrariar a observação precedente. Com efeito, a uma certa distância, os planetas são absorvidos nos clarões do seu sol e nossos olhos terrestres teriam dificuldade em distingui-los. Sabeis que, a partir de Saturno, não se diferencia mais a Terra. Mas, convém acentuar que tais dificuldades dependem tanto da imperfeição da nossa vista quanto da lei geométrica do decrescimento das superfícies. Ora, no mundo a cujas margens acabava de aportar, os seres, não encarnados em um envoltório grosseiro igual ao da Terra, e sim mais livres e dotados de faculdades de percepção elevadas a eminente grau de potência, podem, conforme vos disse já, isolar a fonte ilumiradora do objecto iluminado e, por isso, perceber distintamente os detalhes, que, a tamanhas distâncias, seriam de todo encobertos aos olhos dos organismos terrestres.

   Quœrens – E para tais observações eles se servem de instrumentos superiores aos nossos telescópios?

   Lúmen – Se, para tornar menos difícil à compreensão essa maravilhosa faculdade visual, é mister concebê-la munida de instrumentos ópticos, vós a podeis assim admitir teoricamente. Lícito vos é imaginar óculos que, por uma sucessão de lentes e dispositivos de diafragmas, aproximam sucessivamente os mundos e isolam da vista o foco iluminador, para deixar à observação somente o mundo objecto do estudo. Devo, porém, advertir que esses seres são dotados de um sentido especial, diferente da vista ordinária, e que o sabem desenvolver por processos ópticos muita eficazes. Fica entendido que tal poder visual e respectiva construção óptica são naturais nesses mundos, e não sobrenaturais. Atentai um pouco em os insectos que dispõem da faculdade de encolher ou alongar seus olhos à maneira de tubos de binóculos, de intumescer ou achatar o cristalino para dele fazer uma lente de diversos graus, ou ainda de concentrar no mesmo foco uma série de olhos assentados, à feição de outros tantos microscópios para surpreender o infinitamente pequeno – e podereis de modo mais fácil conceber a faculdade de tais seres ultraterrestres.
/...

CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I, fragmento global 3º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)