Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – I

Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – É a primeira vez que assimilo, sob uma forma sensível, este facto não sobrenatural da morte, e compreendo a existência individual da alma, sua autonomia do corpo e da vida, sua personalidade e sobrevivência, sua situação tão simples no céu. Esta teoria sintética me prepara, eu o creio, para compreender e apreciar vossa revelação. Um acontecimento singular, dissestes, vos impressionou a entrada na vida eterna. Em que momento sobreveio?

   Lúmen – Ei-lo, meu amigo. Deixe-me seguir na narrativa. Soavam, bem sabeis, as doze pancadas da meia-noite, no tímpano do meu velho carrilhão e o plenilúnio, em meio do seu curso, derramava seu pálido clarão sobre meu leito mortuário, quando minha filha, meu neto e amigos de estima saíram do aposento, no intuito de repousar um pouco. Quisestes permanecer assistindo-me e prometestes à minha filha não abandonar o lugar até ao amanhecer. Eu vos agradeceria esse devotamento, terno e dedicado, se não fôssemos qual dois verdadeiros irmãos. Teria decorrido meia-hora, mais ou menos, pois o astro das noites declinava para a direita, quando vos peguei a mão e anunciei que a vida já me abandonava as extremidades. Assegurastes-me o contrário; mas, eu observava com calma meu estado fisiológico e conhecia que poucos instantes restavam ainda a respiração. Dirigistes subtilmente vossos passos para o aposento dos meus filhos, mas (ignoro por que concentração de esforços) pude conseguir gritar, detendo tal intento. Voltastes, olhos lacrimosos, meu amigo, e dissestes: Sim, vossas derradeiras vontades foram observadas e amanhã cedo será tempo ainda de fazer vir vossos filhos. Havia nessas palavras evidente contradição, que apreendi, sem isso deixar perceber. Lembrai-vos de que, então, pedi que fosse aberta a janela? Que bela noite de Outubro, mais bela do que as dos poetas da Escócia cantada por Ossian! Não longe do horizonte, e sob meus olhos, distinguiam-se as Plêiades, veladas pelas brumas inferiores. Castor e Pólux remigiavam vitoriosamente no céu, algo mais distante. E, ao alto, formando triângulo constelado com as precedentes, admirava-se, na constelação do Cocheiro, bela estrela de áureos raios, a que, desenhada à borda das cartas zodiacais, se denomina Capela, ou a Cabra. Vedes que a memória não me falha. Quando abristes a janela de todo, os perfumes das recentes rosas, adormecidas sob a asa da Noite, chegaram até mim e confundiram-se às claridades silenciosas das estrelas. Exprimir a doçura que derramaram em minha alma essas impressões – as derradeiras que a Terra me enviava, as últimas que tocavam os sentidos ainda não atrofiados – ficaria para além das possibilidades da minha linguagem: nas minhas horas de mais terno enlevo, de mais suave ventura, jamais senti essa alegria imensa, tal serenidade gloriosa, semelhante prazer já celeste, que me foram dados por esses minutos de êxtase, escoados entre o sopro odoroso das flores e o meigo olhar das estrelas longínquas. E, quando regressastes para junto de mim, eu também voltara ao mundo exterior e, juntas as mãos sobre o peito, deixei que meu olhar e meu pensamento rogassem unidos e subissem ao Espaço. E porque meu ouvido fosse bem depressa se fechar para sempre, recordo as derradeiras palavras que pronunciei: Adeus, meu velho amigo; sinto que a morte me conduz... rumo às regiões desconhecidas, onde nos reencontraremos um dia. Quando a aurora desmaiar as estrelas, haverá aqui apenas o meu corpo mortal. Repeti à minha filha a última expressão da minha vontade: que ela eduque os filhos, tendo em mira os bens eternos.

   E porque choráveis e dobrastes os joelhos diante do meu leito, acrescentei: Repeti a bela prece de Jesus. E começastes a dizer em tom vacilante o Pai-nosso...

   Perdoai-nos... nossas ofensas tal qual perdoemos... àqueles que nos... hajam... ofendido...

   Tais são os pensamentos finais que chegaram à minha alma por intermédio dos sentidos. A vista se me perturbou ao fixar a estrela Capela e não sei mais de quanto se seguiu imediatamente a esse instante. O ano, os dias e as horas são constituídos pelo movimento da Terra. Fora desses movimentos, o tempo terrestre não existe mais no Espaço; é, pois, absolutamente impossível ter noção desse tempo. Creio, sem embargo disso, ter ocorrido no próprio dia do meu trespasse o acontecimento que vou narrar, pois, conforme percebereis desde logo, meu corpo ainda não fora sepultado, quando a visão se apresentou à minha alma.

   Nascido em 1793, estava, em Outubro de 1864, no meu septuagésimo segundo ano de existência, e não me senti mediocremente surpreendido ao constatar-me animado de ardor e agilidade de espírito não menos intensos do que nos mais belos dias da minha adolescência. Não possuía corpo, porém não me julguei incorpóreo, pois senti e vi que uma substância me constituía, embora não houvesse nenhuma analogia entre tal elemento e aqueles que formam os corpos terrestres. Não sei de que modo atravessei os espaços celestes e qual a força que me aproximou depressa de um sol magnífico, cujo dourado esplendor, aliás, não me deslumbrou e que estava rodeado, qual mostrara à distância, de grande número de mundos, envoltos cada qual em um ou muitos anéis. Por essa mesma força, da qual era eu inconsciente, fui levado rumo de um desses anéis, espectador de indefiníveis fenómenos de luz, pois o Espaço estrelado estava, dir-se-ia, atravessado por pontes de arco-íris. Não via mais o sol de ouro; estava numa espécie de noite colorida de nuanças multicores. A visão da minha alma atingira potência incomparavelmente superior à dos olhos do organismo terrestre que recentemente deixara; e, circunstância notável, esse poder me parecia subordinado à vontade. Tal poder visual da alma é tão maravilhoso que não me deterei hoje em descrevê-lo. Basta que vos faça pressentir isto: em lugar de ver simplesmente as estrelas no firmamento tal qual as contemplais da Terra, eu distinguia também de modo nítido os mundos que lhes gravitam em redor; e, detalhe estranho, quando não mais desejava divisar a estrela, a fim de não ser forçado ao exame desses mundos, ela desaparecia de minha visão, deixando-me em excelentes condições para observar apenas um de tais globos.  Além disso, quando minha visão sobre um mundo em particular chegava a distinguir os detalhes da superfície, os continentes e os mares, os nevoeiros e os rios, e, embora não visse aumentar perceptivelmente, qual acontece com o auxílio dos telescópios, conseguia, por intensidade particular de concentração na “vista” de minha alma, enxergar o objecto sobre o qual ela convergia, no mesmo grau em que se distingue uma cidade, uma campina. Chegando a esse mundo anelar, apercebi-me de que me revestira de uma forma idêntica à dos seus habitantes, tal qual se houvesse a minha alma atraído para ela os átomos constitutivos de um novo corpo. Na Terra, os corpos são compostos de moléculas que não se tocam e se renovam constantemente pela respiração, alimentação e assimilação. Aqui, o envoltório da alma se forma de modo mais rápido. Eu me senti vivo em mais alto grau do que os seres sobrenaturais cujas paixões e saudades foram cantadas por Dante. Uma das faculdades essenciais dos habitantes desse novo mundo é decerto a de enxergar muito longe.

   Quœrens – Mas, meu amigo (perdoai minha observação quiçá ingénua), a essa tão grande distância, os mundos e os planetas que circulam em torno das estrelas não se confundem com o próprio centro de atracção? Por exemplo, a tão grande longitude, onde vos achastes, os planetas do nosso sistema não ficaram confundidos nessa estrela, no nosso Sol? Pudestes distinguir a Terra?

   Lúmen – Haveis aproveitado, à primeira vista, a única objecção geométrica que parece contrariar a observação precedente. Com efeito, a uma certa distância, os planetas são absorvidos nos clarões do seu sol e nossos olhos terrestres teriam dificuldade em distingui-los. Sabeis que, a partir de Saturno, não se diferencia mais a Terra. Mas, convém acentuar que tais dificuldades dependem tanto da imperfeição da nossa vista quanto da lei geométrica do decrescimento das superfícies. Ora, no mundo a cujas margens acabava de aportar, os seres, não encarnados em um envoltório grosseiro igual ao da Terra, e sim mais livres e dotados de faculdades de percepção elevadas a eminente grau de potência, podem, conforme vos disse já, isolar a fonte ilumiradora do objecto iluminado e, por isso, perceber distintamente os detalhes, que, a tamanhas distâncias, seriam de todo encobertos aos olhos dos organismos terrestres.

   Quœrens – E para tais observações eles se servem de instrumentos superiores aos nossos telescópios?

   Lúmen – Se, para tornar menos difícil à compreensão essa maravilhosa faculdade visual, é mister concebê-la munida de instrumentos ópticos, vós a podeis assim admitir teoricamente. Lícito vos é imaginar óculos que, por uma sucessão de lentes e dispositivos de diafragmas, aproximam sucessivamente os mundos e isolam da vista o foco iluminador, para deixar à observação somente o mundo objecto do estudo. Devo, porém, advertir que esses seres são dotados de um sentido especial, diferente da vista ordinária, e que o sabem desenvolver por processos ópticos muita eficazes. Fica entendido que tal poder visual e respectiva construção óptica são naturais nesses mundos, e não sobrenaturais. Atentai um pouco em os insectos que dispõem da faculdade de encolher ou alongar seus olhos à maneira de tubos de binóculos, de intumescer ou achatar o cristalino para dele fazer uma lente de diversos graus, ou ainda de concentrar no mesmo foco uma série de olhos assentados, à feição de outros tantos microscópios para surpreender o infinitamente pequeno – e podereis de modo mais fácil conceber a faculdade de tais seres ultraterrestres.
/...

CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I, fragmento global 3º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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