Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – I
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – Sem poder figurá-la, embora, pois que está além do meu conhecimento-experiência, posso conjecturar essa possibilidade. Assim, pudestes ver a Terra e mesmo distinguir de tão alto as cidades e as aldeias do nosso baixo mundo?

   Lúmen – Deixai-me prosseguir minha narrativa. Cheguei, pois, ao anel mencionado, cuja largura é bastante vasta para que 200 Terras qual a vossa possam nele rodar enfileiradas, e me encontrei sobre uma vasta montanha coroada de palácios vegetais. Pelo menos me pareceu que esses castelos feéricos cresciam naturalmente, ou eram apenas o resultado de um fácil ajustamento de ramos e flores altas. Cidade bastante populosa. Sobre o cimo da montanha onde aportara, notei um grupo de anciães, em número de 25 ou 30, os quais se fixavam, com a atenção mais obstinada e mais inquieta, em uma bela estrela da constelação austral do Altar, nos confins da Via-Láctea. Não notaram a minha chegada junto deles, tanto a sua múltipla atenção estava exclusivamente concentrada no exame da estrela, ou de um mundo do respectivo sistema.

   Quanto a mim, chegando a essa atmosfera, me vi revestido de um corpo físico igual aos deles e, surpresa maior ainda, não me admirei de ouvir que falavam a respeito da Terra, sim, da Terra, nessa linguagem universal do Espírito que todos os seres compreendem, desde o Serafim até as árvores da floresta. E não só falavam da Terra, mas, particularmente, da França.
– Porque esses massacres regulares? – eles se diziam –. “Haverá necessidade de que a força bruta reine soberana? A guerra civil irá dizimar esse povo até ao último dos seus defensores e lavar com rios de sangue as ruas da Capital, ainda há pouco tão tranquila, tão intelectual, tão elegante e tão brilhante?

   Eu não compreendia nada de tais palavras, eu que viera da Terra com uma velocidade igual à do pensamento e que, na véspera ainda, respirava o ambiente de uma cidade calma e pacífica. Reuni-me ao grupo e fixei com eles meu olhar na estrela de ouro. Bem depressa, escutando sua conversação e buscando avidamente distinguir as coisas extraordinárias das quais falavam, divisei, à esquerda da estrela, uma esfera azul-pálido: era a Terra. Não ignorais, meu amigo, que, apesar do aparente paradoxo, a Terra é verdadeiramente um astro do céu (e isso eu vos recordei há pouco). De longe, de uma das estrelas vizinhas do nosso sistema, este aparece, à visão espiritual de que falei, no grau de uma família de astros composta de oito mundos principais, unidos em torno do Sol. Júpiter e Saturno chamam primeiramente a atenção, devido ao seu tamanho; depois, não se tarda em destacar Urano e Neptuno e, em seguida, mais perto do Sol-estrela, Marte e a Terra. Vénus é mais difícil de perceber e Mercúrio fica invisível, devido à sua quase absoluta proximidade do Sol. Tal é o sistema planetário do céu.

   Minha atenção se prendeu exclusivamente na pequena esfera terrestre, junto da qual reconheci a Lua. Bem depressa notei as alvas neves do pólo boreal, a Europa tão retalhada, o Mediterrâneo azul, o triângulo amarelo da África, os contornos do oceano, e, porque minha atenção estava unicamente fixada sobre o nosso planeta, o Sol-estrela se eclipsou da minha visão. Depois, sucessivamente, pouco a pouco, consegui distinguir na esfera, em meio de regiões azuladas, uma espécie de recorte de cor bistre e, prosseguindo minha investigação, vislumbrar uma cidade no meio do dito recorte. Não tive dificuldade em reconhecer que o recorte era a França e a cidade Paris. O primeiro sinal de identificação da capital francesa foi o listão prateado do Sena, que tão faceiramente descreve tantas circunvoluções sinuosas a oeste da grande metrópole.

   Servindo-me do aparelho óptico, penetrei em maiores detalhes. A nave e as torres de Notre Dame, que eu via por cima, formavam bem uma cruz latina na ponta oriental da cidade. Os bulevares estendiam suas faixas ao norte. Ao sul reconheci o jardim de Luxemburgo e o Observatório. A cúpula do Panteão toucava com um ponto cinzento a montanha Santa Genoveva. A oeste, a grande avenida dos Campos Elíseos desenhava no solo a sua linha recta; divisava-se, mais distante, o bosque de Bolonha, os arredores de Sannt-Cloud, os bosques de Meudon, Sèvres, Ville d'Avray e Montretout. Tudo, porém, era paisagem de inverno, árvores despidas de folhagem, um triste dia de Janeiro, enquanto que eu deixara a Terra em Outubro. Tive, em pouco, a certeza de que era bem Paris o alvo da minha vista; mas, porque não compreendesse melhor as exclamações dos meus vizinhos, fiz esforços para mais exactamente realçar os detalhes.

   Minha visão se deteve de preferência sobre o Observatório, pois estava no meu bairro favorito, o qual, durante oito lustros, deixara apenas por alguns meses. Ora, julgue qual teria sido minha surpresa, quando meu olhar se adaptou mais completamente ao cenário e percebi não mais existir avenida entre o Luxemburgo e o Observatório, e que essa magnífica aléia de castanheiros dera lugar a jardins de mosteiros. Um desses retiros ocupava o lindo centro do vergel. O bulevar S. Miguel não existia mais, nem a rua dos Médicis; era um amálgama de ruelas, e julguei reconhecer a antiga rua do Este, a praça S. Miguel onde outrora uma antiga fonte fornecia água aos moradores do arrabalde, e uma série de outras ruazinhas que eu havia visto antigamente. Pareceu-me estar sob meus olhos o plano de Turgot, com as suas ruas e edificações. O Observatório estava despojado das cúpulas; as duas alas laterais haviam igualmente desaparecido. Pouco a pouco, prosseguindo minha investigação, constatei que, particularizando, Paris mudara profundamente. Meus rancores de artista contra as invasões da edilidade parisiense despertaram, mas foram rapidamente superados por outras cogitações mais fortes. O Arco triunfal da Estrela não existia mais, nem as avenidas opulentas que nele vinham confinar. O bulevar de Sebastopol não existia também, nem a gare do Este, e nenhuma linha de via-férrea! A torre S. Jaques estava enfeixada em um cortejo de velhos prédios e a coluna da Vitória lhe estava aproximada. A coluna da Bastilha também ausente, pois eu teria com facilidade reconhecido o génio dourado que a encimava. Na praça Vendôme a coluna da Grande Armada havia desaparecido e a rua da Paz não se via também. A rua de Rivoli sumira-se. O Louvre não estava concluído, ou então demolido. Entre o trecho quadrado do Louvre e as Tulherias, viam-se casebres amontoados, uma pequena igreja, velhos terraços e mansardas. Na praça da Concórdia não se distinguia mais o obelisco, mas parecia ver-se enorme pedestal e ante ele grande e grulhante multidão contida por tropas militares. Não se avistavam a igreja Madalena e a rua Royale. Havia uma ilhota por detrás da ilha S. Luís. Os bulevares exteriores não eram outra coisa que o velho muro da ronda, e as fortificações tinham destruído seus contornos. Enfim, embora reconhecendo a capital da França, pelos edifícios que lhe restavam e por alguns quarteirões não transformados, estava sem saber que pensar de tão maravilhosa metamorfose, que, da véspera para o outro dia, tão radicalmente mudara o aspecto da velha cidade.

   Ao meu pensamento acudiu, de início, a idéia de que, ao invés de pouco tempo, gastara, em vir da Terra, mais de um ano, lustro, decénio ou século.

   E porque a noção do tempo é essencialmente relativa e a medida da sua duração nada tem de real, nem de absoluta, separada do globo terrestre, eu perdera, por esse motivo, toda a medida fixa, e a mim mesmo dizia que um ano ou até um século podia ter passado ante meu ser sem que me apercebesse, pois o tão vivo interesse tomado por essa viagem não me fizera achar o tempo longo – expressão vulgar indicadora dessa sensação em nosso espírito. Não tendo meio algum de me certificar da realidade, terminaria por crer sem dúvida que muitos séculos já me separavam da vida terrestre e tinha sob os olhos a Paris do século XXI, se eu não houvesse, então, aprofundado mais o exame do conjunto.

   Com efeito, identifiquei sucessivamente o aspecto da cidade e cheguei, por gradação, a reencontrar terrenos, ruas e edifícios que havia conhecido na minha infância. O Palácio da Municipalidade me apareceu todo embandeirado e o castelo das Tulherias apresentava sua cúpula quadrada central. As torres feudais do Chatelet e da Santa-Capela assinalavam bem o antigo palácio. Um pequeno detalhe completou minha elucidação, quando, no centro do jardim de um velho mosteiro da rua S. Jaques, discerni um pavilhão cuja vista me fez estremecer. Fora ali que eu encontrara, adolescente, a mulher que me amou, com um profundo amor, a minha Eivlys, tão terna e tão devotada, que tudo abandonou para se entregar ao meu destino. Revi a pequena cúpula do terraço ante a qual íamos sonhar à tarde e estudar as constelações. Ah! com que júbilo acolhia eu esses passeios durante os quais, acertando o passo um pelo outro, caminhávamos as avenidas, fugindo aos olhos indiscretos do mundo ciumento. Revia o pavilhão, reconhecendo-o tal qual era então, e podeis calcular que tal vista bastou, ela só, para completar minhas indicações e convencer-me, com uma convicção invencível e inquebrantável, de que, longe de ter sob os olhos – conforme fora natural imaginar – a Paris de depois da minha morte, eu tinha ante mim a Paris desaparecida, a velha Paris do começo do século XIX, ou a do fim do XVIII.

   Podeis compreender facilmente, no mínimo, que eu, apesar da evidência, não devia crer no que meus olhos viam. Parecia-me mais natural imaginar que Paris havia envelhecido tanto, sofrido tais transformações depois da minha partida da Terra (intervalo cuja duração me era totalmente desconhecida), que eu tinha sob a vista a cidade do futuro, se posso exprimir por esta imagem um facto que estava presente para mim. Prossegui, pois, atentamente minha observação, para constatar, de modo decisivo, que se tratava da antiga Paris, em parte demolida actualmente, o que eu tinha sob os olhos, ou se, por um fenómeno não menos incrível, era uma outra Paris, uma outra França, uma outra Terra.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I, fragmento global 4º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

Sem comentários: