Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


3. O TESTAMENTO
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   Terminados os ofícios fúnebres dedicados aos infortunados descendentes do duque di Bicci di M., os despojos mortais das crianças foram inumados no mausoléu da família, na delicada capela fronteiriça à casa senhorial, na qual dias antes

fora depositado o corpo de Dom Giovanni.

Lúcia, acusada vilmente por Girólamo, que se fazia acompanhar do falso testemunho de Assunta, teve negada pela Igreja “terra sagrada” ao seu corpo, que não mereceu exéquias de qualquer natureza, sendo sepultada na floresta, como animal batido em refrega selvagem.

   As autoridades policiais fizeram ligeira investigação e, como faltasse um móvel para outras suspeitas, o “caso” foi encerrado dentro das disposições legais e as sombras fantasmagóricas da tragédia caíram pesadamente sobre o palácio, onde antes abundavam a alegria e a fartura, a arte e a beleza, quando nos dias da Senhora duquesa Ângela.

   Girólamo, por autorização da Justiça de Siena, despediu os servos, permitindo somente a alguns que se fixassem no local, nos mesmos terrenos da propriedade do seu tio e pai adoptivo, enquanto se tomavam as providências para abertura do testamento, em data a ser fixada, logo diminuísse o impacto do infortúnio que enlutara toda a região. Fâmulos e servos foram dispensados, ficando, apenas, alguns zeladores para guarda e conservação da casa, amanho do solo e protecção aos animais…

   Fingindo um abatimento profundo e recusando alimentos, em ardilosa atitude, estudada para escapar a quaisquer suspeitas, o moço malsinado concertou com Assunta os planos para o futuro.

   – Acredito conveniente – arengou, logo pôde encontra-se com a sórdida companheira de crimes – que nos separemos por algum tempo e que te dirijas à Capital (*), de modo a evitar desconfianças quanto aos acontecimentos últimos do Palácio di Bicci.

   Procurando demonstrar um amor e afecto que estava longe de sentir, envolveu a jovem irresponsável com braços de lânguida sensualidade e, persuadindo-a, serpente que hipnotiza a pomba invigilante para a devorar depois, continuou:

   – Não ignoras o imenso amor que me devora a alma por ti. Sabes da chama que me queima e requeima, somente diminuindo de intensidade quando em comunhão contigo. Anelo a bênção do matrimónio, a fim de regulaizar a nossa incómoda situação, quando, passado algum tempo e o olvido tudo tiver envolvido, retornares à nossa casa, na condição de senhora.

   – Temo, Girólamo! Pressinto que nunca poderei ser feliz ao teu lado, por mais que o cobice. Devorada pela paixão, não titubeei em ser-te fiel até ao crime. Por ti faria muito mais. Esta loucura, que me cega e que me conduz à destruição em passos de corcel veloz, me domina cada dia, e temo. Não me enganas: somos da mesma têmpera e feitos do mesmo material. Eu te amo, embora não creia no teu afecto. Pressinto que te queres apartar de mim e que, no resultado final da escolha, ficarei à margem. Seleccionarás uma dessas mulheres que são adorno social, para compartir as homenagens e glórias contigo, embora me busques às escapadas, para o leito da animalidade. Não te atrevas, porém, a trair-me. Sabes que nós outros, os etruscos, especialmente os nascidos em Chiusi, somos violentos e apaixonados; recorda que os nossos ascendentes, que antes dominaram estas terras, defenderam-na até a total extinção da raça. Já te disse muitas vezes que não sou daquelas que cedem ou que se conformam com a derrota. Arrastaste-me ao crime e tens agora o teu destino ao meu ligado…

   Repentinamente, desapareceram do rosto da jovem os sinais da ternura e da afectividade, transformando-se a face, visivelmente conturbada. Os olhos se dilataram e, afastando-se do amante com gesto brusco, gargalhou, transtornada, falando com os dentes rilhados:

   – Qualquer traição da tua parte será cobrada com o ácido da vindita. Denunciar-te-ei às autoridades, narrando toda a infâmia, desde os seus primeiros planos; direi a forma como me seduziste, arrastando-me contigo à perene desdita, mesmo que, com a denúncia da tua pessoa, eu pague o suplício ao teu lado. Nunca te cederei a outra, não esqueças!

   Muito pálido, o moço, acobardado ante a acusação que temia e esperava, avançou e esbofeteou a jovem, enquanto lhe gritava:

   – Não me repitas mais esta acusação; nunca mais! Desgraçados já o somos desde a hora do nosso conúbio para o homicídio e a desonra. A memória da minha tia me persegue e um surdo ódio ainda me extravasa do coração quando recordo o duque, e sinto algo, como se a sua sombra hedionda me seguisse os passos. As artimanhas do remorso já tomam forma em minha memória e procuro apagá-las… Tu, também, te levantas para me incriminar, sabendo que tudo foi feito para nossa felicidade, porque te amo e desejo a paz para nós? Antes, a nossa união seria impossível… Agora, quando tudo se regularize e eu passe a ostentar o poder, quem me reprochará a escolha? Não sabes que o dinheiro e a posição tudo conseguem no mundo? Cala e ouve!

   A encenação desmedida produzida por Girólamo impressionou favoravelmente a companheira inexperiente.

   Ele a fitou, e enquanto seus olhos brilhavam – ninguém poderia saber se de volúpia, aumentada pela ardência do atrito, se de paixão de homem desregrado, ou de medo da ameaça – , imprimiu a fogo as palavras proferidas pela moça, no adito da memória, para estar sempre vigilante, constatando que ela o faria, assim se sentisse ludibriada na posse devastadora da carne.

   Girólamo, conquanto jovem, desde cedo acostumara-se às astúcias do crime, Espírito endividado em muitas existências, trazia consigo as sementes da violência e da alucinação cobarde, conhecendo os meandros sórdidos da consciência muitas vezes ultrajada e, interiormente, se acreditava capaz de qualquer tentame nos arraiais da delinquência. Por isso se identificara facilmente com Assunta que, ao seu lado, repetia experiência insana, tentando regularizar débitos pretéritos, que complicava ainda mais pela invigilância actual, enrodilhando-se em cipós de cruel aflição, para futuro próximo.

   É claro que desde a elaboração do plano do homicídio múltiplo ele cuidara, também de tomar uma medida para ser executada oportunamente, de modo a libertar-se da única testemunha da sua crueza criminosa. Agora, no entanto, era necessário silenciar-lhe a voz temporariamente, mediante o afastamento dos sítios de Siena, para evitar complicações. Aproveitava-se, logicamente da justificativa de despedir os fâmulos e serviçais para, assim, prosseguir aguardando os resultados da leitura do testamento.

   Após a demorada reflexão, durante a qual fixava a jovem dominada pelo seu encanto maléfico, propôs:

   – Demandarás a Capital e lá te quedarás por algum tempo. Sei que tens família entre os florentinos e tomarás precauções extremas, evitando aventuras ou excessos e cultivando o recato, pois em breve serás a esposa de um Cherubini… Irei visitar-te sempre que o possa fazer, sem que a minha ausência venha a levantar suspeição aqui. Encontrar-nos-emos e, felizes, traçaremos planos para o nosso futuro. Serás minha desde hoje e ninguém mais te possuirá. Evita os teus amos, caso necessites de servir alguém, e esquece tudo quanto aconteceu no Palácio di Bicci. Irei preparar a mentalidade dos meus amigos e de algumas famílias locais, logo entre na posse dos bens, para que todos te recebem fidalgamente. O tronco da família donde procedes dar-te-á entrada fácil na nossa sociedade agrícola, tão corrupta quanto a citadina, bem o sei…

   E tomando a jovem, com a violência da paixão desregrada, nublou-lhe a mente, dominando-lhe o corpo e a alma…

   Assunta despediu-se dos últimos servos, arrumou os pertences e partiu numa sege especial a expensas de Girólamo. Afastou-se do amante com lágrimas, e este, quando viu a carruagem desaparecer entre os cedros que bordavam a estrada, respirou fundo e sorriu em misterioso júbilo, como se tudo estivesse a transcorrer conforme planejado.
/...
(*) Florença. 


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 3. O TESTAMENTO (fragmento 1 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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