Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 30 de maio de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


IV
O Mês de Joana d’Arc

|Maio de 1915|


   A Terra voltou a apresentar seus encantos após o longo sono do inverno.

   Abaixo de minhas janelas, no vasto jardim público, os tufos de flores brilhantes se misturam com as folhagens verdes.

   Na calma superfície das águas, cisnes deslizam majestosamente e nos altos ramos as aves canoras, em uma espécie de encantamento, fazem intermináveis concertos. Uma suave claridade envolve todas as coisas, mas, ao longe, na linha de combate, a fumaça da peleja cobre o solo e envolve o céu.

   Estamos em maio, mês de Joana d’Arc, assim denominado porque ele reúne as datas dos mais notáveis acontecimentos da sua vida: dias 7 e 8, libertação de Orléans; dia 24, sua prisão em Compiègne, e dia 30, seu martírio em Rouen.

   Nessa época do ano meu pensamento comovido sempre busca a Virgem Lorena como um modelo de força e beleza moral, porque nela se encontram, na aparência, as qualidades mais antagónicas: energia e sensibilidade, firmeza e delicadeza, idealismo e senso prático. Invoco-lhe o espírito e medito em seu sacrifício.

   Nos dolorosos momentos por que passa a França, essa invocação tem carácter geral e grandioso, num apelo supremo de uma nação ameaçada, espezinhada por sanguinário inimigo. É o grito de angústia de um povo que não quer morrer e que suplica o auxílio das forças celestes invisíveis.

   O culto de Joana d’Arc era exercido, antes da guerra, com numerosos fiéis, porém muitos consideravam os factos de sua vida como acontecimentos vagos, distantes, quase lendários, diminuídos pela distância do tempo.

   As tentativas do clero católico para monopolizar a Virgem Lorena levantaram contra ela um partido político completo.

   A ideia de se criar uma festa nacional para lhe comemorar a memória jazia há mais de dez anos no arquivo da Câmara e um enxame de críticos meticulosos e malévolos preocupou-se com os pormenores de sua história, para contestá-los, denegri-los ou, pelo menos, diminuir-lhe o brilho!

   Um Anatole France a apresentava aos nossos contemporâneos como uma mística quase idiota; Thalamas chegava mesmo a injuriá-la.

   Gabriel Hanotaux referia-se a ela mais dignamente, porém queria fazê-la passar por instrumento das ordens religiosas mendicantes, o que era pura fantasia.

   Assim pois, do messias de nosso país, admirado e glorificado pelo mundo inteiro, os franceses haviam chegado a fazer um tema de polémicas e discórdias.

   Hoje a transformação é completa: debaixo da tempestade de ferro e fogo que esmaga a França, na angústia que a sufoca, toda a nação dirige seus pensamentos para Joana e lhe pede socorro. Suplicam-lhe que salve, pela segunda vez, a pátria invadida.

   Atendendo a esses apelos, do seio do Espaço onde se encontrava, ela paira sobre nossas misérias e dores, para atenuá-las e consolá-las. Mais ainda: à frente de um exército invisível, actua na frente de batalha transmitindo aos nossos soldados a chama sagrada que a envolve, impelindo-os ao combate e à vitória!

   Há poderosos e bem-aventurados espíritos que a rodeiam, porém a todos ela domina com sua sublime energia. A filha de Deus tomou para si a nossa causa. Certa de tal auxílio na luta terrível que sustenta, a França não sucumbirá!

   Será que se sabe quanto sofrerão esses nobres espíritos em contacto com a Terra? Sua natureza delicada e purificada lhes torna penosa a permanência em nosso mundo inferior.

   Necessitam de um esforço permanente de vontade para se manterem em nossa atmosfera saturada de maus pensamentos e fluidos grosseiros, ainda agravada pelas vibrações das violentas paixões que a actual guerra desencadeia.

   Juntai a isso o espectáculo das mortandades, dos cadáveres, dos estertores dos moribundos, dos gritos dolorosos dos feridos e da visão das terríveis feridas produzidas pelos explosivos, por todas as máquinas mortais que os exércitos modernos carregam consigo.

   Quantas emoções pungentes para conter, para dominar! Na Idade Média, Joana presenciou, sem dúvida, cenas dessa espécie, porém em proporções menores! Não obstante, ela reagirá energicamente contra qualquer desfalecimento, porque tudo se torna secundário e desaparece diante do objectivo essencial que é mister alcançar: a libertação da pátria.

   A irradiação da força fluídica de Joana expande-se sobre todos, até sobre os ingleses, agora nossos companheiros de armas.

   Alguns de nossos soldados, dotados de faculdades psíquicas, a vêem passar em meio à fumaça dos combates, mas todos, intuitivamente, sentem sua presença e nela depositam sua suprema esperança. Daí resultam as qualidades heróicas demonstradas, que causam decepção aos alemães e assombro a todos quantos, sem razão aparente, acreditavam na inevitável decadência de nossa raça.
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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IV – O Mês de Joana d’Arc, 1 de 3 11º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

terça-feira, 29 de maio de 2012

a pedra e o joio~


Panorama desolador

   Foi tendo em vista todo esse panorama desolador que resolvemos lançar esta nova edição da Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito, sob novo título capaz de abranger toda a área conflitiva. Lançada a primeira edição há doze anos, em volumes de pequeno formato e composição em tipo miúdo, produziu ela os seus efeitos, mas já se encontra há muito esgotada. Muitas pessoas interessadas reclamam a reedição. Examinando o texto, vimos que ele ainda se apresenta como necessário no panorama actual. Foi a primeira crítica, rigorosamente crítica, oferecida ao meio doutrinário como um exemplo de como se deve desmontar uma doutrina absurda. Muitos dos seus tópicos se aplicam a outras formas de pretensa reformulação da doutrina. É um texto já clássico, modelo único de exame atento e minucioso de uma falsa teoria, não lhe faltando o exemplo de comedimento e de respeito humano ao responsável pela sua formulação e divulgação. Não teremos a falsa modéstia de negar o seu valor nesse sentido, mormente agora que o movimento da Educação Espírita atinge o plano universitário e exige a existência de textos dessa natureza, capazes de orientar os estudantes universitários no manejo da crítica espírita. Há momentos em que devemos ter a coragem de reconhecer e sustentar o valor das próprias obras elaboradas em favor da doutrina. Investimo-nos dessa coragem e lançamos o texto em nova edição, com endereço mais amplo e adaptado às exigências actuais. Não negaremos às novas gerações de estudantes universitários espíritas esse modelo ainda imperfeito, porque escrito sem o tempo necessário, mas valioso por seu acerto no enfoque do problema e por sua eficácia indiscutivelmente provada.

   Não buscamos nenhum efeito de interesse pessoal. A imprensa espírita ainda não está em condições de avaliar esforços desta natureza e a imprensa comum nem sequer tomará conhecimento desse trabalho. O que nos interessa é devolver à circulação um texto que tem a sua oportunidade e o seu valor relativo, atendendo a uma necessidade evidente do movimento espírita brasileiro. Ao lado de O Verbo e a Carne, cuja edição foi lançada recentemente, este pequeno volume poderá contribuir para orientar e estimular novas críticas dessa natureza. Nenhuma cultura se desenvolve sem crítica e sem exercício acurado do espírito crítico. O Espiritismo, ele mesmo, é um movimento crítico em favor do desenvolvimento da Civilização do Espírito, como vemos na obra gigantesca de Kardec. Todas as reacções que esta reedição provocar serão benéficas, mesmo quando possam parecer o contrário. A defesa da verdade está sempre acima dos melindres pessoais.

São Paulo, 18 de Abril de 1974.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Panorama desolador, 5º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sábado, 26 de maio de 2012

pensamento crítico ~


Introdução

A história do conhecimento é uma sequência de erros, equívocos e frustrações.

Este o motivo pelo qual Sócrates costumava explicar:

“Só sei que nada sei, e que a filosofia começa quando começamos a duvidar.”

Outra coisa não tem feito o homem, desde as cavernas da era pré-lacustre, do que errar para aprender. A história da civilização não é, portanto, somente a da luta de classes, segundo o materialismo dialéctico, mas a própria história do erro. Como, entretanto, do erro, do equívoco, da frustração, nasceram sempre e em todos os tempos o conhecimento e a sabedoria, mais uma vez se comprova, no terreno do pensamento, o processo dialéctico da natureza, que do pântano arranca os lírios, da larva a borboleta, do pecador o santo, do caos da sociedade capitalista os contornos do socialismo.

   Quando Demócrito firmou o princípio atómico da constituição do mundo, cometeu toda uma série de erros, atribuindo à suposta partícula indivisível a diversidade de peso no vácuo, e dotando-a de ganchos para a composição da matéria. Não obstante, havia descoberto, mais de trezentos anos antes de Cristo, o segredo da constituição do mundo, que a física experimental só encontraria vinte e quatro séculos depois.

   Ao formular a base dialéctica da sua filosofia, Hegel unificou o “ser” e o “pensar” de Kant, mas caiu no equívoco da “ideia universal”, espécie de encarnação filosófica do caprichoso deus antropomórfico das religiões. Feuerbach teve a coragem de fazer a filosofia descer do empíreo hegeliano à terra, para ligá-la às ciências naturais, mas caiu na frustração da “antropologia”, novamente separando o “ser” do “pensar” e transformando este último numa simples função da matéria. Não obstante, apoiados na dialéctica de Hegel e no materialismo de Feuerbach, Marx e Engels criaram o materialismo dialéctico, dando novo impulso ao pensamento filosófico, abrindo novas possibilidades à investigação dos processos históricos e sociais, oferecendo base científica às aspirações do socialismo empírico.

   Foram os génios transformadores do século XIX, tornando-se credores de todos os que – e são a humanidade – desfrutam hoje da possibilidade de uma caminhada mais rápida nos rumos da civilização socialista. Stanley Jones, o grande missionário protestante, conhecido como “o cavaleiro do Reino de Deus”, observa, em Cristo e o Comunismo, que Marx impulsiona a história, limpando o templo da praga dos vendilhões, à semelhança do chicote do rabino, que ainda hoje espanta os cristãos comodistas.

   Entretanto, a filosofia que Marx e Engels ofereceram ao mundo, como a mais alta expressão do conhecimento, não passa de uma forma híbrida, que se travestiu de síntese. A tese de Hegel e a antítese de Feuerbach não se conjugam na moderna escolástica do materialismo dialéctico, pois ali estão, sem dúvida, forçadas pela violência gráfica, duas palavras contraditórias e irredutíveis, que não encontram caminho para o desenvolvimento da síntese. O materialismo é a porta fechada, diante da qual se interrompe, abruptamente, o processo dialéctico de Hegel.

   Marx condenou a “incapacidade burguesa” de Proudhon para compreender a lei fundamental da dialéctica hegeliana, a “unidade dos contrários”, e chamou-o de falsificador, por ter feito a escolha indébita de um dos contrários, a propriedade “boa”, rejeitando dessa maneira a própria dialéctica. Mas, em compensação – rejubile-se o Espírito de Proudhon! –, ele e Engels não fizeram outra coisa. A luta dos contrários foi simplesmente frustrada na elaboração da dialéctica moderna, que se formou pela mesma e indébita escolha de um dos contrários. O materialismo dialéctico considerou “mau” o princípio espiritual, escolhendo como “bom” apenas o material. Por isso mesmo, não obstante a enorme contribuição que trouxe à marcha do conhecimento, não é mais do que uma tentativa de síntese.
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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico – Introdução, 1º fragmento da obra.
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


CAPÍTULO III

O País de Gales.
A Escócia.
A obra dos bardos

Era uma terra importante, austera e imponente, a do País de Gales, antes que a indústria moderna a tivesse coberto de chaminés de usinas, perfurado por inúmeras bocas de minas e obscurecido o seu céu com espessa fumaça. Hoje ainda podem ser notados os resíduos da acção das forças subterrâneas que esculpiram suas colinas, alteraram suas montanhas, como aquela de Snowdon, esse monte sagrado que domina toda a região, ultrapassa mil metros de altura e cuja origem vulcânica é evidente.

Em todo lugar, magmas de lavas e de pórfiro alternam-se com rochas e terrenos eruptivos, formando camadas em desordem que a Geologia designa pelo nome de “cambrianas”, que foi o nome primitivo da região.

No relevo de suas montanhas, Gales do Norte reúne a graça dos vales e a abundância das torrentes.

A Escócia também conheceu e conservou restos de manifestações dessa potência que ergueu cumes abruptos. Foi ela que levantou essas muralhas de granito, de basalto, de pórfiro, que margeiam o canal caledónio e se prolongam até à costa da Irlanda sob a forma de colunata imensa, conhecida sob o nome de “Calçada dos Gigantes”.

A Escócia tem, além disso, a poesia, a beleza triste e severa dos seus lagos, de seus pantanais e de seus planaltos solitários, semeados de urzes róseas e de musgos de todas as cores.

A parte norte é encrespada de picos, sempre envolvidos de neblina, mas tão imponentes quando se tingem de púrpura, no crepúsculo, ou de raios esbranquiçados da Lua.

Acrescentemos as penínsulas escarpadas que se prolongam ao longe no mar, os promontórios incessantemente batidos pelas ondas, e se terá uma ideia dessa natureza formidável onde se ramifica a cadeia mestra que serve de coluna vertebral à Grã-Bretanha.

Uma longa guirlanda de ilhas contém as chamadas “Terras Altas” da Escócia, e uma delas, Staffa, possui a célebre gruta de Fingall, semelhante a um templo, e onde cada dia a maré crescente executa sua cantiga queixosa. A raça dócil e forte que se adaptou a esses países parece ter bebido neles, na sua natureza grandiosa, as qualidades viris que a distinguem e, principalmente, toda essa vontade firme que, através dos tempos de provas, conserva, apesar de tudo, a esperança de uma renascença e de uma vida eterna.

A causa desse fenómeno nos é revelada pelo espírito Allan Kardec em uma das mensagens que publicamos adiante. Ele provém da corrente céltica que, desde os tempos primitivos, se estendeu no nordeste da Europa, impregnando profundamente o seu solo, e de onde seu magnetismo atingiu os habitantes e, pouco a pouco, as gerações que ali se sucederam.

É preciso notar, com efeito, que os ingleses e os saxões que vieram do leste possuem um carácter bem diferente, mais positivo e prático, menos inclinado para o ideal. Se, por excepção, encontram-se entre eles naturezas mais idealistas, é raro que elas não se liguem por laços anteriores a alguma origem céltica. Tais são, por exemplo, Conan Doyle, Bernard Shaw e tantos outros, que, por mais ingleses que sejam, pela cultura e pela língua, não provêm menos de um tronco irlandês.

Apesar das longas, das eternas perseguições, os anglo-saxões nunca conseguiram domar o sentimento nacional, o carácter étnico dos galeses e dos escoceses. Bem longe de os assimilar, eles foram, isto sim, assimilados pelos anglo-saxões, cada vez que entraram em contacto permanente. É assim que os operários ingleses, atraídos ao País de Gales pela indústria mineira, adoptaram rapidamente os hábitos e mesmo a língua desse país.

Graças à sua energia persistente, o Principado de Gales soube guardar a sua autonomia administrativa, assim como as grandes franquias para suas escolas, colégios e universidades, e até mesmo para sua igreja nacional. Ele conservou sua língua e sua literatura, de tal modo que a cidade de Cardiff e o condado de Glamorgan tornaram-se os focos mais intensos da propaganda céltica, onde se imprimem e se publicam todas as obras dos bardos antigos e modernos.

Dali partiu o primeiro sinal do movimento pancéltico que reúne, todos os anos, delegados vindos de todos os pontos do horizonte para confraternizar num mesmo espírito e num mesmo coração.

Se a força vital de um povo é sua alma, fé na justiça imanente e num Além compensador, pode-se dizer que os galeses estão de tal sorte impregnados por ela que sua convicção recai sobre todo seu estado moral e social. Com efeito, nota-se ali uma coisa bastante rara na França: é que os tribunais frequentemente não entram em função por não haver acusados nem culpados para julgar.

O alcoolismo, esse flagelo dos países célticos, ali também está em decréscimo. Encontram-se esses mesmos factos na Escócia, em grau menor.
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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO III – O País de Gales. A Escócia. A obra dos bardos 1 de 3, 10º fragmento.
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O peregrino sobre o mar de névoa~


Desenvolvimento da Ciência Espírita
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Os espíritas continuam, num clima de maiores esperanças mundiais nesse terreno,

com o avanço espantoso das pesquisas parapsicológicas nos Estados Unidos e na URSS,

a socorrer no Brasil as vítimas de perturbações mentais e psíquicas,
em seus centros de trabalho permanente e gratuito.

A eficácia de seus métodos simples, desprovidos dos recursos tecnológicos da actualidade, são evidentes, mas não constam de comprovações estatísticas. Não há recursos nem tempo para o luxo das avaliações estatísticas. Mas a verdade salta aos olhos, brilha nos lares beneficiados por dedicações anónimas. Já é tempo de acordarmos para a constatação desse facto.

O Brasil avançou culturalmente entre os anos 30 e 60, com a descentralização do ensino superior e a criação de Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras por toda a sua extensão. Nem mesmo o interregno das agitações políticas e militares conseguiu perturbar esse desenvolvimento.

Demos a prova decisiva da nossa preferência pela paz, a ordem e o progresso.

Mas o meio espírita, adverso às agitações e inquietações políticas, deixou-se embalar pelas canções de ninar das mensagens mediúnicas piedosas, dos relatos curiosos da vida após a morte, nas pregações mediúnicas incessantes sobre a caridade, a humildade, o amor ao próximo, a moral evangélica, a preparação de todos para a migração a mundos superiores e assim por diante.

Desenvolveu-se um curioso processo de alienação religiosa que nem mesmo nas sacristias se processava. Surgiram, além das fascinações do tipo roustainguista (intencionalmente retrógradas) correntes pseudo-espíritas de mentalismo e esoterismo pretensiosos, agrupamentos de fiéis acarneirados em torno de pseudomestres dotados de sabedoria infusa e arrogante, como a dos teólogos das igrejas, resquícios assustadores de pretensões divinistas e divinatórias, correntes alienantes de um formalismo beócio, pregando o aperfeiçoamento formal das atitudes e do comportamento humanos, com processos de impostação da voz e de gesticulações pré-fabricadas, e até mesmo (Deus nos acuda) tentativas de criação do celibato espírita e a imposição da abstinência sexual aos casados.

Toda essa floração de cogumelos venenosos, vinda evidentemente das raízes da Patrística, redundava na volta ao farisaísmo e às suas consequências no meio patrístico da era pós-apostólica, que tanto enfurecia o Apóstolo Paulo. Pouco faltava para que a proposta de Tertuliano, de recorrer-se à figura jurídica do usucapião, fosse aplicada ao Evangelho. Formava-se e ainda se tenta formar, no meio espírita, uma estrutura totalitária de poder e arbítrio, com uma disciplina legal asfixiando a liberdade espírita. Ao mesmo tempo, a terapia espírita, nascida humildemente da prece e da imposição das mãos aos doentes, segundo o ensino e o exemplo de Jesus, era transformada em ritos complicados e pretensiosos, aplicados por médiuns diplomados pelas Federações. Até mesmo as práticas do confessionário foram estabelecidas em várias instituições, a partir do manda-chuva, que agia com rigorosa disciplina paramilitar. O escândalo da adulteração das obras fundamentais da doutrina, declaradamente inspiradas pelo sucesso das adulterações da Bíblia pelas igrejas cristãs, produziu felizmente o estouro do tumor. Alguém tivera a coragem de usar o bisturi na hora precisa, mostrando a profundidade do processo infeccioso, definindo e localizando os focos da infecção na corroída e orgulhosa estrutura do movimento espírita.

Restabelecia-se a verdade e reanimava-se o corpo doente e minado pelas trevas. As áreas não contaminadas pela infecção reagiam de todos os lados e os vencidos pela fascinação começavam a sentir os primeiros abalos da consciência. Encerrava-se o ciclo perigoso das infiltrações malignas e os que não haviam cedido ao autoritarismo dos falsos mestres e mentores experimentavam a alegria da volta ao bom-senso kardeciano.

A terapia espírita começava lentamente a recuperar-se em sua simplicidade e pureza. O prestígio do passe espírita, desprovido de encenações espúrias e pretensiosas, restabelecia-se nos grupos não contaminados. Jesus aplacara o temporal como num gesto de piedade. O farisaísmo tem suas raízes nas entranhas animais do homem, de onde brotam os instintos primitivos, perturbando a mente e envenenando o coração. Os cristãos primitivos foram levados à loucura de se julgarem puros e santos, como vemos nas epístolas ardentes de Paulo, reprimindo os núcleos desvairados. No meio espírita domesticado por incessantes mensagens padrescas, algumas instituições doutrinárias chegaram a proclamar-se donas exclusivas da verdade. Um enviado dos anjos fez-se oráculo dos novos tempos (por conta própria) e a autodenominada Casa-Máter do Espiritismo no Brasil ampliou a sua orgulhosa e falsa pretensão, cortando do seu título autoconcedido a expressão “do Brasil”, tornando-se, com essa simples operação, a Casa-Máter do Espiritismo no Mundo. Com essa manobra as trevas cortavam a possibilidade de uma estruturação mundial do movimento espírita. O movimento brasileiro fechava-se a si mesmo e poderia restabelecer entre nós o Templo de Jerusalém com seu rabinato exclusivista. A reacção de André Dumas, na França, da Confederação Espírita Pan-americana da Argentina, da própria Federação Argentina, da Venezuela e de intelectuais espíritas como Humberto Mariotti, Robert Fourcade e outros mostrou o alcance dessa manobra. Que esse triste exemplo dos descaminhos a que o farisaísmo pode levar-nos sirva para acordar o bom-senso dos desprevenidos. A terapia espírita não terá eficácia se não pudermos aplicá-la a nós mesmos e ao nosso movimento doutrinário. Sem uma base de convicção firme e de fidelidade à obra de Kardec não poderemos curar-nos a nós mesmos, quanto mais aos outros.
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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, 1 Desenvolvimento da Ciência Espírita 2 de 2, 5º fragmento.
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – III

Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

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   Quoerens – Essa combinação de marchas não é menos estranho fenómeno!

   Lúmen – Não vos acode ao espírito outras objecções, ouvindo-me?

   Quoerens – Confesso que essa combinação foi a última, ou pelo menos me intrigou de modo a excluir qualquer outra no momento.

   Lúmen – Eu vos farei notar a existência de umas outras, astronómicas, que revelarei imediatamente para que não reste dúvida. Tal combinação depende do movimento da Terra. Não somente o movimento diurno do Globo deveria impedir-me de bem apanhar a sucessão dos factos, mas também esse movimento, sendo desmesuradamente acelerado pela rapidez do meu regresso rumo à Terra, e 864 meses escoando-se em menos de um dia – reflecti ser surpreendente que eu de tal não me apercebesse. Mas, tendo visto apenas um número relativamente restrito de paisagens, de panoramas e de factos, é provável que, retornado ao nosso planeta, eu me mantivesse, por muito rápidos instantes isolado, sobre pontos que sucessivamente me interessaram. De qualquer modo, devia render-me à evidência, e constatar que, sem fadiga, havia assistido à sucessão célere dos sucessos do século e da minha própria existência.

   Quoerens – Essa dificuldade não me escapara, e pensei que haveis navegado no Espaço à maneira de um balão arrastado pela rotação do globo. Certo, a inconcebível rapidez com que deveis ter sido levado é das de causar vertigens; mas não me limito, todavia, a essa hipótese, meditando sobre vossa afirmativa.

   Assinalando que a vossa visão, e assim a vossa insciente aproximação da Terra, eram devidas à intensidade de atenção sobre o ponto do globo onde vos víeis de novo, não é inadmissível que vos mantivésseis constantemente preocupado com o dito ponto.

   Lúmen – A esse respeito, não vos afirmo coisa alguma, pois de tal permaneci inconsciente; mas, sobre isso, penso diferente. Não revi todos os acontecimentos da minha existência, mas apenas um pequeno número dos principais, que, sucessivamente escalonados, me mostraram o conjunto da minha vida. Apresentaram-se quase todos sobre o mesmo raio visual. Tudo quanto sei é que a atenção indizível, que me prendia soberana e imperiosamente à Terra, agia na forma de uma corrente que me religasse a ela, ou, se preferis a expressão, com o poder dessa força ainda misteriosa da atracção dos astros, em virtude da qual os pequenos tombariam directamente sobre os mais importantes, se não fossem retidos nas suas órbitas pela força centrífuga.

   Quoerens – Cogitando desse efeito da concentração do pensamento relativamente a um ponto único, e da atracção real que ele sofre logo, com relação a esse ponto, creio assinalar que aí está o eixo principal do mecanismo dos sonhos.

   Lúmen – Dissestes a verdade, meu amigo, e vos posso afirmar, eu, que, durante largo tempo, fiz dos sonhos o assunto especial de minhas observações e estudos. Quando a alma, liberta das atenções, preocupações e tendências corporais, vê em sonho um objecto que a encanta e para o qual se sente atraída, tudo desaparece em torno de tal objecto – que permanece só e se constitui o centro de um mundo de criações; ela o possui inteiramente e sem reservas, contempla-o, dele se apossa e o faz seu, o universo inteiro se apaga da reminiscência, para deixar um domínio absoluto ao objecto da contemplação da alma, e, tal qual me aconteceu em meu regresso à Terra, não vê mais do que o dito objecto, acompanhado das ideias e das imagens que engendra e faz sucessivamente surgir.

   Quoerens – Vossa rápida viagem a Capela, e assim vosso regresso não menos veloz à Terra, tinham, pois, por fundamento causal, essa lei psicológica, e agistes mais livremente ainda do que em sonho, porque vossa alma não mais estava peada pelas engrenagens do organismo. Recordo-me de que, em nossas conversações passadas, vós, com efeito, dissertastes muitas vezes a respeito da força da vontade. Assim, pudestes retornar ao leito de morte antes que vosso envoltório mortal fosse sepultado.

   Lúmen – Regressei, e bendisse as saudades sinceras da minha família, acalmei as dores da nossa amizade ferida, esforcei-me por inspirar a meus filhos a certeza de que eu não era mais aquele envelope mortal, e que eu habitava a esfera dos Espíritos, o Espaço celeste, infinito e inexplorado.

   Assisti ao meu próprio enterro e assinalei aqueles que se diziam meus amigos e que, por uma ocupação de medíocre importância, não se deram ao incómodo de levar meus despojos terreais à derradeira morada. Ouvi as variadas conversações que versavam sobre o meu cortejo funerário. Pareceu-me que muitos se entretinham principalmente com os seus interesses personalíssimos; mas verifiquei a presença de irmãos de pensamento no convívio dos quais sempre me encontrava e, embora nesta região de paz não tenhamos avidez de elogios, eu me senti feliz em constatar que uma suave lembrança da minha passagem pela Terra lhes havia ficado na memória.

   Quando a pedra do túmulo caiu e separou a terra dos mortos da Terra dos vivos, dei um derradeiro adeus ao meu pobre corpo adormecido e, porque o Sol já descesse para o seu leito de púrpuras franjado de ouro, permaneci na atmosfera até à noite próxima, mergulhado na admiração dos belos espectáculos que se desdobravam nas regiões aéreas. A aurora boreal estendia por cima do pólo o seu turbante prateado, estrelas errantes choviam de Cassíope e a Lua-cheia, vagarosa, se elevava no Oriente, qual um novo mundo surgindo das ondas. Vi Capela cintilante, que me fixava com o seu luminoso olhar tão vivo, e distingui as coroas que a circundavam, príncipes celestes de uma divindade. Então, esqueci de novo a Terra, a Lua, o sistema planetário, o Sol, os cometas, para me deixar prender sem reservas à intensa atracção da refulgente estrela, e fui transportado no seu rumo pela acção do meu desejo, com uma rapidez maior do que a das setas eléctricas. Depois de algum tempo, cuja duração não me foi possível verificar, cheguei ao mesmo anel e à montanha onde estivera na antevéspera, e vi os anciães ocupados no seguimento da história da Terra, no período retardado de 860 meses. Estavam vendo os acontecimentos da cidade de Lião, do dia 23 de Janeiro de 1793

   Confessar-vos-ei qual a causa misteriosa da minha atracção para com a estrela Capela? Maravilha! Existem na Criação ligações invisíveis que não se rompem, qual acontece com os laços mortais, correspondências íntimas que subsistem entre as almas, apesar da separação pelas distâncias. Na noite desse segundo dia, porque a lua-esmeralda se incrustasse no terceiro anel de ouro (tal é a medida sideral do tempo), surpreendi-me percorrendo solitária avenida envolta de flores e perfumes. Flutuei nela alguns instantes, quando vi aproximar-se de mim a minha tão amada e cara Eivlys. Estava linda qual outrora; as primaveras desaparecidas resplenderam ante meus olhos. Não me deterei a descrever a alegria de tal reencontro, pois não é cabível aqui, e talvez um dia nos entretenhamos em falar a respeito das afeições ultraterrestres que sucedem às da vida carnal. Desejo apenas salientar, a propósito do reencontro em ligação com esta tese, que bem depressa procuramos juntos, no Céu, a Terra – a nossa pátria adoptiva, onde desfrutáramos dias de paz e ventura. Estimamos, com efeito, dirigir nossos olhares rumo desse ponto luminoso onde a nossa condição actual nos permitia distinguir um mundo; sentíamos prazer em consorciar o passado da nossa saudade ao presente que nos chegava nas asas da luz. E no êxtase em que nos mergulhava essa singularidade tão nova para ambos, buscávamos ardentemente ressurgir ante a vista os acontecimentos da nossa mocidade. Assim, revimos, então, os amados tempos do nosso primeiro amor, o pavilhão do Convento, o jardim florido, os passeios dos arredores de Paris, tão faceiros e formosos, e nossas viagens, sozinhos os dois, através dos campos. Para reconstruir esses períodos, bastava avançarmos, juntos, no Espaço, em direcção da Terra, até às regiões em que tais aspectos, trazidos pela luz, estavam gravados. Aí tendes revelada, meu amigo, a estranha observação que vos havia prometido. Eis a aurora que se avizinha, e já a estrela de Lúcifer empalidece sob a Alba Rósea. Volto às constelações...

   Quoerens – Ainda uma palavra, ó Lúmen, antes de findar esta palestra. De vez que os aspectos terrestres só se transmitem sucessivamente no Espaço, deve haver, pois, um presente perpétuo para as vistas escalonadas nesse Espaço, até um limite fronteirado apenas pela extensão da visão espiritual.

   Lúmen – Sim, meu amigo. Coloquemos, por exemplo, um primeiro observador na distância da Lua: ele se aperceberá dos factos terrestres um segundo e 1/4 depois de ocorridos. Situemos um outro em distância quádrupla; esses acontecimentos sofrerão uma demora de 5 segundos. Um terceiro os verá com a diferença de 10 segundos. A uma distância dupla ainda da precedente, o quarto observador os distinguirá com o intervalo de 20 segundos. E assim sucessivamente. À distância do Sol, já existe uma diferença de 8 minutos e 13 segundos. Com relação a certos planetas, a demora será de muitas horas, conforme assinalamos já. Mais longe, são necessários dias inteiros. Para além ainda, meses, mais de um ano. Das estrelas mais próximas, só se percebem os acontecimentos terráqueos um, dois lustros depois de realizados. Há estrelas bastante longínquas, as quais a luz atinge com o retardo de alguns séculos, e mesmo em dezenas de séculos. Nebulosas existem onde a luz chega somente depois de uma viagem de milhões de ciclos anuais.

   Quoerens – De sorte que, para ser testemunha de ocorrências históricas ou geológicas dos tempos passados, bastaria que esses observadores se afastassem suficientemente. Não se poderia rever verdadeiramente o dilúvio, o paraíso terrestre, Adão e...

   Lúmen – Já vos disse, meu velho amigo, que a chegada do Sol ao hemisfério põe em fuga os Espíritos. Uma segunda palestra permitirá aprofundar melhor um assunto do qual só vos pude apresentar hoje o esquema geral, e que é fértil em novos horizontes. As estrelas me chamam, e já desapareceram. Adeus, Quoerens, adeus.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – III, fragmento global 10º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen) 
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 12 de maio de 2012

arago ~


Sinais dos tempos

Se a Terra já não precisa de recear cataclismos gerais, não deixa por isso de estar submetida a revoluções periódicas cujas causas estão explicadas, do ponto de vista científico, nas instruções seguintes dadas por dois espíritos eminentes*.

«Cada corpo celeste, além das leis simples que presidem à divisão dos dias e das noites, das estações, etc. sofre revoluções que exigem milhares de séculos 
para sua perfeita realização mas que, tal como as revoluções mais breves, passam por todos os períodos desde o nascimento até ao limite máximo, para recomeçar de seguida a percorrer as mesmas fases.

»O homem só abarca as fases de duração relativamente curta e de que pode constatar a periodicidade; mas há os que incluem longas gerações de seres e até mesmo sucessões de raças, cujos efeitos, por consequência, têm para ele os aspectos da novidade e da espontaneidade enquanto, se o seu olhar se pudesse transportar a alguns milhares de séculos atrás, veria entre esses mesmos efeitos e as suas causas, uma correlação de que nem sequer suspeita. Estes períodos, que confundem a imaginação dos humanos pela sua relativa extensão, não passam no entanto de momentos na duração eterna.

»Num mesmo sistema planetário, todos os corpos que dele dependem reagem uns sobre os outros devido à aproximação ou afastamento que resulta do seu movimento de translação através das miríades de sistemas que compõem a nossa nebulosa. Vou mais longe ainda: digo que a nossa nebulosa, que é como um arquipélago na imensidão, tendo também o seu movimento de translação através das miríades de nebulosas, sofre a influência daquelas de que se aproxima.

»Assim, as nebulosas actuam sobre as nebulosas, os sistemas actuam sobre os sistemas, como os planetas actuam uns sobre os outros e assim de aproximação em aproximação até ao átomo; daí, em cada mundo, as revoluções locais ou gerais que só parecem perturbações porque a brevidade da vida não permite que se obtenha delas mais do que efeitos parciais.

»A matéria orgânica não poderia escapar a estas influências; as perturbações que sofre podem portanto alterar o estado físico dos seres vivos e determinar algumas dessas doenças que, de uma maneira geral, danificam as plantas, os animais e os homens; estas doenças, como todos os flagelos, são para a inteligência humana um estimulante que a impele, pela necessidade, para a busca dos meios de as combater e para a descoberta das leis da natureza.

»Mas a matéria orgânica actua por sua vez sobre o Espírito; este, pelo seu contacto e a sua ligação íntima com os elementos materiais, sofre também influências que modificam a sua disposição sem no entanto lhe retirarem o seu livre-arbítrio, lhe sobreexcitam ou abrandam a actividade e por isso mesmo contribuem para o seu desenvolvimento. A efervescência que por vezes se manifesta numa população inteira, entre os homens de uma mesma raça, não é uma coisa fortuita nem resultado de um capricho; tem a sua causa nas leis da natureza. Esta efervescência, primeiro inconsciente, que não passa de um vago desejo, uma aspiração não definida a qualquer coisa melhor, uma necessidade de mudança, traduz-se numa surda agitação, depois por actos que trazem consigo as revoluções sociais, que, acreditai, têm também a sua periodicidade como as revoluções físicas, pois tudo se encadeia. Se a visão espiritual não estivesse limitada pelo véu material, veríeis estas correntes fluídicas que, como milhares de fios condutores, ligam as coisas do mundo espiritual e do mundo material.

»Quando vos dizem que a humanidade atingiu um período de transformação e que a Terra se deve elevar na hierarquia dos mundos, não vejam nestas palavras nada de místico, mas pelo contrário, a realização de uma das leis fatais do Universo.»

                                                                                                        ARAGO


«Sim, é verdade, a humanidade transforma-se tal como já se transformou noutras épocas, e cada transformação é marcada por uma crise que constitui para o género humano o que as crises do crescimento são para os indivíduos; crises muitas vezes penosas, dolorosas, que arrastam com elas as gerações e as instituições, mas sempre seguidas por uma fase de progresso material e moral.

»A humanidade terrestre, chegada a um desses períodos de crescimento, está em breve há um século em pleno trabalho de transformação; é por isso que se agita por todos os lados, presa de uma espécie de febre e como que movida por uma força invisível, até ter retomado assento sobre novas bases. Quem a vir então, encontrá-la-á muito modificada nos seus costumes, no seu carácter, nas suas leis, nas suas crenças, numa palavra, em todo o seu estado social.

»Uma coisa que vos parecerá estranha mas que não deixa por isso de ser uma rigorosa verdade, é que o mundo dos Espíritos que vos rodeia sofreu o contragolpe de todas as comoções que agitam o mundo dos encarnados; digo mesmo que tem nisso uma parte activa. Isto nada tem de surpreendente para quem saiba que os Espíritos formam um só com a humanidade; que dela saem e nela devem reentrar; é portanto natural que se interessem pelos movimentos que se operam entre os homens. Tende então a certeza que, quando uma revolução social se realiza na Terra, ela agita igualmente o mundo invisível; todas as paixões boas e más são aí sobeexcitadas como entre vós; uma efervescência indizível reina entre os Espíritos que fazem ainda parte do vosso mundo e que esperam o momento de lá voltarem a entrar.

»A agitação dos encarnados e dos não encarnados por vezes juntam-se, a maior parte das vezes até porque tudo se liga à natureza, às perturbações dos elementos físicos; é então, durante um certo tempo, uma confusão geral, que passa como um furacão, após o qual o céu volta a estar sereno e a humanidade, reconstruída sobre novas bases, imbuída de novas ideias, percorre uma nova etapa de progresso.

»É no período que se abre que veremos o Espiritismo florescer e que ele dará seus frutos. É portanto para o futuro, mais do que para o presente, que trabalhais; mas era necessário que estes trabalhos fossem elaborados antecipadamente porque preparam as vias da regeneração pela unificação e pela racionalidade das crenças. Felizes os que disso beneficiam desde já; será para eles tanto de ganho como de sofrimentos poupados.»

                                                                                                    DR. BARRY
/...
* Extracto de duas comunicações dadas na Sociedade de Paris e publicadas na Revista Espírita de Outubro de 1868, p. 313. São o corolário das de Galileu, relatadas no Capítulo VI e um complemento ao Capítulo IX sobre as revoluções do globo. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo XVIII, SÃO CHEGADOS OS TEMPOS – Sinais dos tempos 8 e 9, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Violeta e os meteoritos, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O Espiritismo na Arte~


Parte II

Terceira lição, de O Esteta

– Inspiração: causa, efeitos, formas – A verdadeira arte

|29 de Novembro de 1921|

“Eu gostaria de vos falar sobre a inspiração. É um procedimento de transmissão da luz divina; ela se produz sob diversas formas, porquanto a arte, com suas inúmeras ramificações, aproxima-se em graus diversos desse plano divino do qual vos falo.
Quando, no espaço, o espírito de um artista decidiu reencarnar, leva com ele as amizades de seres queridos que, por causas diversas, devem ficar no espaço. Mas, por intuição, esses amigos enviarão a esse ser, aprisionado na carne, fluidos provenientes do seu meio e ideias que darão novo impulso à parcela de talento que existe nele e que, sob o domínio da carne, estaria bastante propensa a ficar adormecida.

A inspiração tem duas formas: uma pessoal, outra mais ampla, transmitida por espíritos elevados que haurem a arte das fontes mais puras e comunicam os seus efeitos a um ser que os emprega de forma ordenada por seus meios próprios e naturais.

A inspiração pessoal é a mais comum. Vós sabeis que um ser que é capaz de experimentar esse fenómeno já é evoluído; sua evolução se realizará por etapas. Em cada uma das suas vidas, ele terá um período mais marcante que outros, aquele em que o trabalho foi mais obstinado e, por consequência, mais produtivo; dele resultarão aquisições que se acumularão no perispírito. Na existência seguinte, essas aquisições voltarão a aparecer sob a forma de um dom inato. Esse dom, para os que não são iniciados, se denominará inspiração. Mas essa inspiração não tem senão um carácter humano; em geral ela é fria, não sendo animada pelas luzes divinas.

Para tornar essa inspiração mais bela, mais elevada, é preciso impregná-la de ideal e de fluidos que emanam do foco divino.

Chegamos assim à segunda forma de inspiração. Vós sabeis que os amigos invisíveis velam pelos seres que eles sentem que são dignos de serem protegidos e encorajados. Do espaço, os espíritos superiores pressentem a pequena chama criada pela inspiração pessoal. Para torná-la mais brilhante, pela prece, se Deus o permite, esses guias irão buscar, nas esferas onde reinam radiações maravilhosas, os elementos da vida criadora que alimentarão essa pequena chama e dela farão brotar centelhas de talento.

Pode acontecer que o corpo humano seja um pouco perturbado por essas forças. Quando os átomos físicos não podem resistir a esse influxo, produz-se uma desordem no organismo. É o que explica os homens de talento terem, algumas vezes, falta de equilíbrio.

Eis a explicação material do fenómeno. O que sentirá o ser sob o efeito de uma inspiração? Se ele é suficientemente sensível, quando uma ideia, um pensamento que ele não podia prever, aflorar em seu cérebro, ele o assimilará como um receptor telefónico que recebe ondas eléctricas e vibra à sua passagem. Ele é um pintor? De repente, sobre sua paleta, ele encontrará o segredo da mistura das cores que irá produzir uma nova cor, adaptando-se admiravelmente ao movimento de traços que torna o rosto expressivo ou ao relevo que deve ser dado a um quadro que está em execução. Ele é um pensador? Um escritor? Um poeta? Desse mesmo cérebro brotarão a ideia, a imagem, a expressão que devem realçar e ilustrar a obra que tem necessidade de revestir uma forma mais elevada e mais colorida. Ele é um músico? No momento em que menos esperar, um acorde, uma série harmónica, uma melodia, virão, pela sua suavidade, sua pureza, sua riqueza, dar à sua composição, um brilho que ela não teria conseguido adquirir. Se o ser humano é, desde o seu nascimento, tornado por um ideal, podeis calcular os novos tesouros que se ligarão a ele. A arte ideal é uma das formas da prece, seu pensamento atrairá amigos invisíveis muito elevados; a eles será fácil fazer realçar o brilho da chama acesa anteriormente e, da alma do artista, brotarão obras inspiradas pelo belo e pelo divino.

Geralmente é necessário que um artista fique em um meio são, porque a chama criadora que o anima pode extinguir-se, sob a influência de um ambiente fluídico carregado de moléculas materiais. A verdadeira arte não procura os prazeres da mesa, da carne, e aqueles dos quais o espírito e o cérebro não participam.

Em vosso país, a França, tendes artistas maravilhosos que criaram obras admiráveis em todos os domínios. Os artistas da Renascença constituíram, devo vos dizer, uma plêiade inspirada por um número não menor de grandes artistas do espaço. Esses artistas da Renascença haviam encontrado sua fonte criadora na Antiguidade grega e latina. Após terem vivido na Grécia, no Egipto e em Roma, retornaram ao espaço. Lá seus conhecimentos se ampliaram, adquiriram um brilho, uma aparência particular e, quando reencarnaram, deixaram o paganismo para celebrar, em todos os domínios, a glória de Deus, da qual eles tinham se impregnado durante sua última passagem nas esferas celestes. Suas vidas anteriores sobre a Terra haviam sido consagradas a um trabalho de base, isto é, à preparação dessa pequena chama que devia ser como um dos pólos atractivos da essência divina. É por essa razão que a obra dos pintores, dos escultores e dos músicos dessa época tem essa cor de piedade, de doçura, de quietude que não encontrais na época presente.

Em minha próxima exposição, eu vos falarei da inspiração em vossa época. Em alguns ela também é bela, porém, as características não são as mesmas. A inspiração actual, onde se misturam novos pontos de vista, deve contribuir para uma transformação geral da humanidade, por uma evolução no pensamento, aproximando-se e comunicando-se com o mundo invisível, intermediário do plano divino.”
/…


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte II – Terceira lição (de O Esteta)
– Inspiração: causa, efeitos, formas – A verdadeira arte, 8º fragmento
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA ~

   Logo se recobrou do vágado que o
fez tombar na inconsciência, o Espírito do duque di Bicci despertou lentamente.

Parecia-lhe
estar em leito de demorada agonia.


A mente, incapaz de raciocínios imediatos, se encontrava nublada, impossibilitando-lhe o conhecimento dos últimos sucessos.

Aquele deperecimento que experimentava parecia ter-lhe aniquilado o controle da razão. No comenos em que sentia voltar a memória, registava terrível apatia, acompanhada de opressão no peito e dificuldade respiratória incoercível.

Doía-lhe todo o corpo e com a astenia que o perturbava, por ilação quase automática, recordou o cataló em que sentia a vida finar-se lentamente, o desejo que acalentava de morrer, a funda melancolia que lhe tisnava a satisfação da existência e, como se a mente fosse, então, accionada por estranho mecanismo, passou a rever todos os lances daqueles últimos dias.

Percebeu-se, então, espectador e personagem do que via na própria mente, experimentando as aflições e sentindo-as dominá-lo, conscientemente.

Repassou o falecimento, as exéquias fúnebres e lembrou-se das instruções dadas ao preboste, quando ao cumprimento dos seus desejos expressos no testamento, que se encontrava lacrado e no cartório do notário Dom Germano Victorio.

Depois, como se tudo tomasse vida, sentiu o frio terrível que se abateu sobre ele e a angústia da saudade dos filhos e da esposa que partira antes dele para a Eternidade.

Passou a sofrer o medo, naquele estranho lugar que ainda era o seu palácio e se encontrava revestido de sombras apavorantes e espessas.

Dificilmente conseguia mover-se, embora, sem o controle da vontade, ora se sentisse num lugar ora noutro.

O tempo não lhe tinha significação: era noite intérmina, em que tudo tomava aspecto aparvalhante.

Repentinamente – recordou-se – sentira-se chamado com veemência por poderosa voz e arrastado por ignoto poder, passando a escutar o pensamento do sobrinho e filho adoptivo Girólamo. 

Um espasmo vigoroso dilatou-lhe a agonia e, então, vendo e ouvindo o moço, compreendeu que o rapaz planeava o assassínio e se preparava para executá-lo.

Oh! O desespero daquela hora todo retornou. Vivia, novamente, as angústias daqueles momentos já passados conquanto estivesse impossibilitado de reagir.

Semi-esmagado de dor, reacompanhou, através da esquisita visão, o sobrinho marchar resoluto pela longa betesga, até à recâmara em que se encontravam as crianças e Lúcia.

Seguiu, de alma transtornada, o estulto criminoso avançar com frieza e roubar as vidas queridas, diante dele, impossibilitado de qualquer defesa.

Sentia-se morrer, sem conseguir perder de todo a lucidez. Avançara naquele instante para o bandido e desfalecera…

   Agora, no entanto, via além do que vira: a encenação soez do rapaz, explicando o ocorrido ao ecónomo da casa e aos servos em desalinho…

   Sim, reflectia, tudo não passava de uma tragédia superlativa, que fora apresentada por duendes, objectivando o seu solar.

   Quase louco, o duque compreendeu: morrera, mas não se acabara. Estava vivo, numa situação que lhe era estranha, conquanto verdadeira, pois que prosseguia vivendo.

   Experimentou amarga indisposição, como se estivesse dominado pela maremma tão popular e devastadora. Todo ele vibrara accionado pelo ódio, que lhe espocava na mente e no coração. Por que Deus permitira que se consumasse o hediondo crime? Onde estava Ângela, que o não socorria? Será aquilo tudo o pórtico do Inferno ou delirava, simplesmente?

   As interrogações, entrecortadas pelo dissabor impossível de relatar, ricocheteavam nas paredes escuras da sua mente em infortúnio demorado e ele sentia-se rebolcar em fundo fosso. Asfixiado, em desalinho, foi acometido por crise de desespero… Os olhos saíram-lhe das órbitas dilatadas e a face se congestionou; as vestes ficaram em deplorável condição e as mãos, como se fossem garras, passaram a doer, traduzindo os paroxismos que lhe produziam baba pegajosa e nauseante e escorrer pelos lábios abertos, em ricto de infortúnio.

   A Senhora duquesa, compungida, acompanhava o esposo desde a sua desencarnação, orando por ele e ensejando-lhe a relativa paz que podem fruir aqueles que não foram além da craveira da vida comum, e que viveram retirando da vida somente favores, sem a lembrança de multiplicar as bênçãos que a existência oferece e se encontram ao alcance de todas as mãos.

   Viver por viver é fenómeno da imposição orgânica, da função vegetativa. Ao homem, dotado, como se encontra, da capacidade de raciocinar e crer, discernir e pensar na direcção do bem, os impositivos da construção da fraternidade são impostergáveis.

   Diante da massa de sofredores e aflitos, que enxameiam em toda a parte, o apelo do serviço nobre se faz indefectível. No entanto, as religiões ditas cristãs, do passado, permitindo a dolorosa “exploração do homem pelo homem”, e cultivando-a mesmo até à exorbitância, mediante o braço escravo, favorecendo a escravidão humana e dela se beneficiando, são, em verdade, as grandes responsáveis pela desagregação moral e pela ignorância que se estribava na selvageria dos princípios vigentes, em que aos nobres se facultavam as práticas de todas as misérias morais, facilmente perdoadas a peso de ouro. Isentos do trabalho, que lhes seria vergonhoso, declinavam-se os da nobreza ao cultivo da frivolidade e da rapina, mantendo tais religiões a fé nos espíritos à força das armas ou à força do fanatismo, do terror, enclausurando Deus sob suas abóbadas e absides, em nepotismo violento e demorados, de cujos efeitos ainda hoje sofre a Humanidade… Todos os erros e crimes podiam ser resgatados pelo ouro ou abonados mediante a confissão auricular, em doblez de comportamento ante os mesmos erros perpetrados pelos pobres e infelizes da Terra – aqueles para os quais viera Jesus…

   Ora, sem o respaldo de boas obras, enquanto não fosse melhor nem pior do que os seus pares, o duque, antes mesmo de libertar-se das viciações do invólucro carnal, que se apagam lentamente, à medida que os tecidos orgânicos são consumidos no túmulo – e se demoram por tempo dilatado naqueles que transformaram o corpo em carne de paixões, ou que fizeram do veículo material instrumento de exploração, fonte de cumplicidade e de que se impregnaram; casos em que tal libertação somente pode ocorrer após novo mergulho na carne, em outro processo reencarnatório, que se poderá repetir por diversas vezes, como impositivo de libertação da consciência ultrajada –, foi arrastado pela mente desalinhada do filho adoptivo à visão da tragédia que o enleou à rebeldia e, consequentemente, ao ódio – teia cruel em que se debatem até à exaustão os que lhe são vítimas indefesas.

   Não obstante o desvelo da esposa desencarnada, portadora de valiosos títulos de benemerência pessoal, que colocava à disposição do consorte, era-lhe imperioso vencer o teste de resistência ao mal, desde que os vínculos que o atavam, por antipatia recíproca, a Girólamo, provinham de obscuro passado, que convinha superar e vencer.

   A ascensão é sempre trabalho individual, de sacrifício, de incomparável renunciação, que todos nos devemos impor. Embora o auxílio que recebemos da Vida, o esforço nos pertence e não o podemos transferir. A plântula, atraída pelo sol e sustentada pela terra fértil, faz-se majestosa árvore milímetro a milímetro, sofrendo as intempéries e os insectos, os animais e os ventos, até atingir a própria grandeza. Assim também o espírito humano.

   Para a esposa afervorada, as dores supremas do idolatrado eram-lhe, igualmente, dores insuperáveis. Somente o refúgio na oração e a certeza de que Deus a tudo provê lhe davam suficientes forças e energia para continuar ao seu lado, sem descoroçoamento, evitando que ele fosse arrastado pelas hordas dos Espíritos odientos, que pululam sempre em redor dos incautos, em colónias infernais, nas quais os suplícios infligidos superam todo o romantismo trágico das lendas…

   Nem Homero, nem Virgílio, nem Dante conseguiram, com todo o estilo imponente de inspirados, traduzir os sofrimentos íntimos dos desgraçados que caem nessas regiões, em que a consciência se transforma no látego da justiça e da verdade… Nem o Letes, nem o Estige, nem o Tártaro, nem o “lago de fogo e enxofre” do Apocalipse, nem aqueles vermes a que se refere Isaías, que formigam eternamente sobre os cadáveres do Tofel”…

   Santa Teresa vislumbrou-lhes os pórticos, nos transes memoráveis, na sua cela de Ávila…

   As lendas narram os suplícios individuais no “rochedo do Sísifo”, no “tonel das Danaides” e na “roda de Íxion”… naquelas regiões em que os infelizes se chafurdam e se rebolcam, gemem sem consolo e padecem sem esperança, por longo tempo… e não dizem tudo.

   O carinho da afortunada esposa impedia-o de sintonizar-se, pelo ódio, com esses sequazes da impiedade, ser-lhes vítima inerme, não podendo, todavia, impedir que o caminho a seguir, na paisagem íntima, fosse o de sua livre escolha.

   Assim, a sua atormentada sombra acompanhava o hediondo sobrinho
/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 5 ASCENSÃO CRIMINOSA E GLÓRIA AMARGA (fragmento 1 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

sábado, 5 de maio de 2012

Inquietações Primaveris~


|Os Vivos e os Mortos|

Desconhecendo a complexidade do processo da vida, o homem terreno sempre se apegou, principalmente nas civilizações ocidentais, ao conceito negativo da morte como frustração total de todas as possibilidades humanas. Não há nenhuma novidade na expressão sartreana que se propagou por toda a cultura moderna: “O homem é uma paixão inútil.” Foi sempre esse o conceito do homem na cultura ocidental, voltada exclusivamente para o imediatismo. Sartre não revela nenhuma perspicácia filosófica nesse simples endosso cultural de uma posição comum do homo faber ante o inevitável da morte.

Mesmo nas civilizações orientais, impregnadas de misticismo, os homens comuns nunca saíram desse plano inferior da consideração da morte como destruição pura e simples.

A teoria das almas viajoras, de Plotino, que substituiu no Neo-Platonismo a teoria da metempsicose egípcia, não chegou a popularizar-se.

As hipóstases espirituais que essas almas franquearam, depois da morte, pareciam fantásticas, oriundas apenas da teoria platónica dos Mundos das Ideias e do desejo instintivo de sobrevivência que domina o homem.

Mas as pesquisas científicas da natureza humana, particularmente no campo dos fenómenos paranormais, chegaram a provas incontestáveis da sobrevivência do homem após a morte.

Essa sobrevivência implica naturalmente a existência de planos espirituais (as hipóstases) em que a vida humana prossegue.

O desenvolvimento da Física em nossos dias levou os cientistas à descoberta da antimatéria, das dimensões múltiplas de um Universo que considerávamos apenas tridimensional, à conquista dos antiátomos e antipartículas atómicas que podem ser elaboradas em laboratórios, como têm sido elaborados.

A existência das hipóstases já não é mais uma suposição, mas uma verdade comprovada.

O corpo bioplásmico do homem, bem como o dos vegetais e dos animais, foi tecnologicamente comprovado.

Os mortos não podem mais ser considerados mortos.

O que morreu foi apenas o corpo carnal dessas criaturas, que Deus não criou como figuras de guinol para uma rápida passagem pela Terra.

Seria estranho e até mesmo irónico que, num Universo em que nada se perde, tudo se transforma, o homem fosse a única excepção perecível, sujeito a desaparecer com os seus despojos.

A maior conquista da evolução na Terra é o homem, criado, segundo o consenso geral, na tradição dos povos mais adiantados, feito à imagem e semelhança de Deus.

Que estranha decisão teria levado o Criador a negar a esse ser a imortalidade que conferiu a todas as coisas e a todos os seres, desde os mais inferiores e aparentemente inúteis?

Há uma Economia na Natureza que seria contrariada por essa medida de excepção.

Hoje, a verdade se define, cada vez mais comprovada e inegável, aos nossos olhos mortais:

O homem é imortal.

Ao morrer na Terra, transfere-se para os planos de matéria mais subtil e rarefeita, em que continua a viver com mais liberdade e maiores possibilidades de realizações, certamente inconcebíveis aos que ficam no plano terreno.

O espírito encarnado, que, lutando no fundo de um oceano de ar pesado, consegue fazer tantas coisas, por que deixaria de agir com mais interesse e visão elevada num plano em que tudo milita a seu favor?

Enganam-se os que pensam nos mortos como mortos.

Eles estão mais vivos do que nós, dispõem de visão mais penetrante que a nossa, são criaturas mais definidas do que nós, e podem ver-nos, visitar-nos e comunicar-se connosco com mais facilidade e naturalidade.

É preciso que não nos esqueçamos deste ponto importante: os homens são espíritos e os espíritos nada mais são do que homens libertos das injunções da matéria.

Nós carregamos um fardo, eles já o alijaram de suas costas.

Temos de pensar neles como criaturas vivas e actuantes, como realmente o são.

Eles não gostam das nossas tristezas, mas sentem-se felizes com a nossa alegria.

Não querem que pensemos neles de maneira triste porque isso os entristece.

Encontram-se num mundo em que as vibrações mentais são facilmente perceptíveis e desejam que os ajudemos com pensamentos de confiança e alegria.

Não temos o direito de perturbá-los com as nossas inquietações terrenas, em geral nascidas do nosso egoísmo e do nosso apego.

Milhões de manifestações de entidades superiores, de espíritos conhecidos ou não, mas sempre identificados, ocorrem no mundo continuamente, provando a sobrevivência activa dos que passaram para o outro mundo e lá não nos esqueceram.

Desde a época das cavernas, das construções lacustres, passando pelas vinte e tantas grandes civilizações que se sucederam na História, os mortos se comunicam com os vivos e estes, não raro, procuram instruir-se com eles.

O intercâmbio é normal entre os dois mundos e uma vastíssima biblioteca foi produzida pelos sábios antigos e modernos que estudaram o problema e confirmaram a sobrevivência.

Mas, na proporção em que os métodos científicos se desenvolveram, na batalha das Ciências contra as superstições do passado multimilenar, a própria aceitação geral dessa verdade levantou maiores suspeitas no meio científico.

As raízes amargas das religiões da morte, que viveram sempre e vivem ainda hoje vampirizando o pavor da morte em todos os quadrantes do planeta, criaram novos empecilhos para o esclarecimento do problema.

Ainda hoje, depois das provas exaustivas, milhões de vezes confirmadas pelos mais respeitáveis investigadores, a nossa cultura pretensiosamente rejeita a fragrante realidade e pesquisada fenomenologia de todos os tempos, como se ela não passasse de suposições inverificáveis.

Qual a razão dessa atitude irracional em face de um problema tão grave, da maior importância para a Teoria do Conhecimento e particularmente para a adequação do pensamento à realidade, objectivo supremo da Filosofia?

Nossa cultura sofreu até agora de uma espécie de esquizofrenia catatónica, ignorando problemas essenciais e entregando-se à agitação das actividades pragmáticas.

Como diz o brocardo popular: “Gato escaldado tem medo de água fria.” A tremenda e criminosa oposição da Igreja ao desenvolvimento livre da Ciência, com o delírio pirovássico dos tempos inquisitoriais, com suas fogueiras assassinas, deixou suas marcas de sangue e fogo no pêlo, no couro e na carne viva do gato escaldado.

A cultura é um organismo conceptual vivo, nascido das experiências humanas e dotado do mesmo instinto de conservação dos organismos vivos.

Os pêlos do gato escaldado se eriçam à menor aproximação de questões metafísicas.

Remy Chauvin deu a esse fenómeno o nome apropriado de alergia ao futuro.

Essa alergia, como demonstra, tem suas origens históricas no período inquisitorial.

Só há um responsável por essa doença cultural: a Igreja, até hoje em actividade constante na luta contra o desenvolvimento cultural para asfixiar os movimentos que possam atentar contra a sua arcaica posição dogmática.

Por isso assistimos, ainda hoje, às vésperas da era cósmica, ao doloroso espectáculo de padres irados, particularmente nos países subdesenvolvidos, de cultura incipiente, desferindo os raios de sua indignação insolente contra as conquistas parapsicológicas, mas, ao mesmo tempo, com a sagacidade instintiva dos sacerdotes de todos os tempos e de todas as latitudes da Terra, tirando as vantagens possíveis dessa actividade histriónica na cobrança, a tanto por cabeça, dos cursos de parapsicologia dados ao povo com o tempero dos sofismas e mentiras habituais.

Devemos a isso o nosso atraso brasileiro de quarenta anos no campo das investigações e do estudo universitário do paranormal.

Em compensação, padres e frades entregam-se livremente à exploração de clínicas parapsicológicas, servidos por médicos iludidos ou bem integrados na luta contra o avanço da cultura em nossa terra.
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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 3 Os Vivos e os Mortos 1 de 2, 4º fragmento
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)