Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 30 de março de 2021

agonia das religiões ~


Revolução Cósmica
 

Nos meados do Século XIX deu-se uma abertura cósmica para o homem em todos os sentidos. Três séculos depois da Revolução Copérnica, que começara a demolir o geocentrismo de Ptolemeu, Kardec rompia o organocentrismo da concepção científica do homem, que tinha em seu apoio a tradição religiosa judaico-cristã. Nicolau Copérnico escrevera em latim o seu tratado De Revolucionibus Orbium Celestium (Das Revoluções das Orbes Celestes) que só foi publicado em 1543, depois de sua morte e, condenado pelo Papa Paulo V. Kardec publicou “O Livro dos Espíritos”, em 1857, que também não escapou à dupla condenação da Igreja e da Ciência. 

A concepção da vida como inerente às estruturas orgânicas foi o último refúgio do geocentrismo. Já que a Terra não era o centro do Universo, o homem sustentava a sua vaidade e o seu orgulho considerando-se o centro da vida. Isso é evidente ainda hoje, transparecendo na luta desesperada das religiões contra a concepção espírita do homem e na desesperada resistência das Ciências à evidência resultante de suas próprias conquistas. Na América e na Europa de hoje as declarações positivas de Rhine, Soal, Carington e outros sobre a existência de um conteúdo extrafísico nos seres humanos e da sua sobrevivência à morte orgânica são combatidas ferozmente e classificadas como ridículas. É um curioso espectáculo da arena intelectual, em que vemos o homem a lutar, por orgulho, para sustentar que não é mais do que pó e cinzas. 

Podem os clérigos argumentar que nas religiões não se passa o mesmo, pois os princípios religiosos sustentam a concepção metafísica do homem. Entretanto, pode aplicar-se às religiões a advertência de Descartes quanto ao perigo de se fazer confusão entre a alma e o corpo. Enquanto para o Espiritismo a alma é o espírito que anima o corpo, havendo nítida distinção entre um e o outro, as religiões admitem a unidade substancial da alma e do corpo, de tal maneira que a ressurreição se verifica no próprio corpo. A complexa teoria de matéria e de forma, de Aristóteles, deu muito pano para mangas à teologia medieval, resultando na doutrina da forma substancial, em que forma é substância e substância é forma. Em consequência, a matéria e a forma misturam-se e não se sabe como explicar ao homem sem a sua estrutura orgânica da matéria, pois chega-se mesmo a sustentar que o homem é pó e em pó se reverterá com a morte. 

Opondo-se a esta posição restritiva, que reduz o homem á condição de bicho da terra, segundo a expressão camoniana, o Espiritismo reintegra-o na dignidade de sua natureza espiritual e reajusta-lhe a imagem no panorama cósmico. A manifestação dos mortos, demonstrando que continuam vivos e actuantes noutra dimensão da vida, e que continuam a ser o que eram apesar de já não possuírem o corpo material, não deixa nenhuma possibilidade de dúvida sobre a diferença entre conteúdo e continente, entre espírito e corpo. A confusão de forma e substância resolve-se com a demonstração da estrutura tríplice do homem: o espírito é a substância, a essência necessária, o ser do primado ôntico de Heideggar; o perispírito (corpo espiritual ou bioplásmico) é a forma da hipótese aristotélica, o padrão estrutural dos biólogos soviéticos; o corpo é a matéria que nos dá o ser existencial. Essa é a tese espírita dos dois seres do homem: o ser do espírito e o ser do corpo. 

E o não-ser, como queria Hegel, não é um ente especifico e autónomo, oposto ao ser, mas inerente ao ser de relação ou existencial, ligado a ele na existência como contrafacção, determinado pela oposição da existência do ser. É o que vemos no problema da relação entre Deus e o Diabo, em que a figura do Diabo só é tomada em sentido mitológico, nunca real, como personificação das forças do passado, que pesam sobre o ser existencial, atrapalhando-lhe o desenvolvimento. O não-ser é o que não quer ser, não quer actualizar-se na existência, mas permanecer o que era, apegado aos resíduos das fases anteriores ao ser. Uma das funções do ser é absorver o não-ser para levá-lo a ser, segundo a tese da passagem do inconsciente ao consciente, de Gustave Geley

É assim que o homem se reintegra, pela concepção espírita, na realidade cósmica. Já não é um ser isolado na Criação, privilegiado pela inteligência e amesquinhado pela morte, já não é aquela paixão inútil de Sartre que o tempo consome e reduz ao nada. O homem é a síntese superior produzida pela dialéctica da evolução criadora de Bergson nos reinos inferiores da Natureza, a partir das entranhas da Terra. No seu curso de milhões e milhões de anos, a partir da mónada oculta na matéria cósmica, impulsionado na ascensão filogenética das coisas e dos serespassando pelas metamorfoses de uma ontogenia assombrosa, ele atingiu a consciência e descobriu a marca de Deus em si mesmo. Herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, segundo a expressão do Apóstolo Paulo, o homem não está condenado à frustração da morte, mas destinado à vida em abundância na plenitude do espírito. 

Não é fácil a mentalidade necrófila desenvolvida pelas religiões da morte, sob o peso esmagador da escatologia judaica e da tragédia grega, compreender essa visão nova do homem como um ser cósmico. Por isso se acusa o Espiritismo de reactivar antigas superstições e voltar à concepção da metempsicose egípcia elaborada pelo génio de Pitágoras. Não percebe essa mentalidade que a teoria pitagórica da metempsicose se impunha ao sistema do filósofo por uma intuição do seu próprio génio e pela necessidade lógica. O homem pitagórico antecipou o homem do Espiritismo na medida possível das grandes antecipações históricas. Era um homem cósmico por antevisão, tão integrado e entranhado na realidade universal que não podia escapar ao círculo vicioso das formas se não despertassem no seu íntimo os poderes secretos da mónadaO conceito do homem em Pitágoras é infinitamente superior ao das religiões actuais e ao das filosofias do desespero e da morte no nosso século. 

Quando Pitágoras falava da música das esferas não se embrenhava nas superstições, mas abria a mente dos seus discípulos para a visão verdadeira do Cosmos, que só no nosso tempo se tornaria acessível a todos. Mais tarde, Jesus também anunciaria as muitas moradas do Infinito e ensinaria o princípio da ressurreição e das vidas sucessivas, estarrecendo um mestre em Israel que não sabia dessas coisas. Já numa fase mais avançada da evolução terrena, Jesus não se referia à metempsicose, mas à palingenesia do pensamento grego, à transformação constante dos seres e das coisas no desenvolvimento do plano divino. Nesse mesmo tempo, nas antigas Gálias, os celtas, que para Aristóteles eram um povo de filósofos, divulgavam esses princípios pela voz dos seus bardos, poetas-cantores das tríades sagradas. E entre eles, como druida, Kardec se preparava para a sua missão futura na França do Século XIX. 

Vemos assim duas linhas paralelas na filogénese humana: de um lado temos a evolução do princípio inteligente a partir dos reinos inferiores da Natureza, onde a mónada, a semente espiritual lançada pelo pensamento divino, desenvolve as suas potencialidades numa sequência natural em que podemos perceber as seguintes etapas: o poder estruturador no reino mineral, a sensibilidade no vegetal, a motilidade do animal e, o pensamento produtivo no homem. A este esquema linear temos de juntar a ideia do desenvolvimento simultâneo de todas essas potencialidades, num crescendo incessante, num processo dialéctico de dinamismo tão intenso e complexo que mal podemos imaginar. Foi isso que levou Gustave Geley, o grande sucessor de Richet, a considerar a existência de todas as coisas de um dinamismo-psíquico-inconsciente que rege toda a evolução. Que abismo vai entre essa concepção da génese universal que o Espiritismo oferece e a génese alegórica das religiões! E mesmo em relação à génese científica podemos notar a superioridade da concepção espírita, que não se restringe à ideia de um processo dinâmico de forças desencadeadas no plano superficial da matéria, mas penetra nas entranhas do fenómeno para descobrir o número, a essência determinante do processo e os objectivos graduais e conscientes que são acessíveis à nossa percepção e compreensão. A criação do homem, a sua natureza e o seu destino tornam-se inteligíveis. Édipo decifra os mistérios da Esfinge. 

Apesar disso, há criaturas que acusam o Espiritismo de doutrina simplória, de simples abecê da Espiritualidade, curso primário de iniciação nos conhecimentos superiores da realidade universal. Enganam-se com a linguagem simples da obra de Kardec, através da qual o mestre francês colocou ao alcance de todos, graças a um processo didáctico dificílimo de se atingir e aplicar, os mais graves problemas que os sábios do futuro teriam de enfrentar, como estão a enfrentá-lo neste momento. A simplicidade de Kardec é tão enganosa como a de Descartes. À maneira do Discurso do Método, “O Livro dos Espíritos” é um desafio permanente à argúcia e ao bom senso dos sábios do mundo. Esses dois livros lembram-nos a simplicidade enganosa dos ensinos de Jesus, que os teólogos enredaram em proposições confusas, não compreendendo o seu sentido profundo e impedindo os simples de compreendê-los. 

Mas voltemos às duas linhas paralelas da filogénese humana, para tratar da segunda. Na primeira tivemos o processo natural de desenvolvimento das potencialidades do princípio inteligente, que podemos comparar ao crescimento da criança e aos primeiros cuidados com a sua educação. Temos de aguardar o desenvolvimento orgânico da criança para que as suas possibilidades mentais se revelem. E temos então de orientar as suas disposições naturais para o aprendizado escolar. O que vimos na primeira paralela foi exactamente esse processo. Quando as potências da mónada atingiram o desenvolvimento necessário à sua individualização definitiva, como criatura humana e, a consciência se mostrou estruturada, começou então o processo da sua maturação e do seu aprendizado. O clã, a tribo, a horda, a família e as formas sucessivas de civilização representam as etapas da segunda linha paralela, em que se verifica o desenvolvimento cultural. A inteligência, já formada, vai ser cultivada ao longo do tempo, nas gerações sucessivas. As diferenciações monádicas intuídas por Leibniz, como as diferenciações na constituição atómica verificadas pela Física actual, respondem pelas características diversas e diversificadoras das criaturas humanas em substância e forma. Essas diferenciações não são apenas individuais, mas também grupais, determinando por afinidade os grupos familiais e raciais. Os elementos da natureza, do meio físico e, as miscigenações, as misturas raciais e culturais, contribuirão para acentuar as diversificações no decorrer do tempo. Nota-se a existência de um dispositivo protector das raças e culturas em desenvolvimento, nas primeiras fases do processo, com o isolamento dos grupos afins nos continentes. Mas esse dispositivo não é artificial, entrosa-se naturalmente no processo evolutivo, em que todas as condições necessárias decorrem das variantes evolutivas. São inerentes ao processo. 

Quando os vários grupos amadurecem suficientemente e conquistaram um grau relativamente elevado de civilização, inicia-se a fase das conquistas, da dominação dos grupos mais poderosos sobre os mais fracos, numa longa e penosa elaboração de novas condições de vida e cultura. Kerschensteiner coloca o problema da cultura subjectiva e da cultura objectiva, a primeira correspondendo ao plano das ideias, da elaboração intelectual, a segunda no plano da prática, do fazer, das realizações materiais. 

Ernst Cassirer mostra como a cultura objectiva conserva nas suas obras materiais, gravadas nos objectos, as conquistas subjectivas de uma civilização morta. A Renascença, por exemplo, revela como as conquistas espirituais do mundo clássico greco-romano foram arrancadas das ruínas e dos arquivos aparentemente perdidos e reelaboradas pelo mundo moderno. Dewey, por sua vez, acentua a importância da reelaboração da experiência nas gerações sucessivas. 

Mas quando chegamos ao ponto em que hoje estamos, prontos para um salto cultural de natureza qualitativa, ainda não nos podemos considerar como obra acabada. Como observou Oliver Lodge, o homem ainda não está acabado, mas em fase talvez de acabamento. Sim, talvez, porque o nosso optimismo e a nossa vaidade podem enganar-nos a respeito do nosso estágio actual de realização. A própria situação da Terra, isolada no espaço e só agora tentando a expansão cósmica, deve advertir-nos de que ainda não estamos preparados para ingressar na comunidade dos mundos superiores. Somos ainda um obscuro e grosseiro subúrbio da Cidade de Deus e só à distância podemos vislumbrar o esplendor da luminária celeste na imensidade cósmica. Os nossos próprios meios de penetração no espaço sideral são demasiado rudimentares e precários. Os nossos corpos animais não nos permitem viver em condições superiores às da Terra. O desenvolvimento dos nossos poderes psíquicos está ainda a começar e a nossa capacidade mental, condicionada por um cérebro de origem animal, não vai muito além dos processos indutivos e dedutivos, mal abrangendo o litoral esquivo do mundo da intuição. Como assinala Remy Chauvin, nem sequer conseguimos atingir uma organização social superior, permanecendo ainda num plano de barbárie, estruturado em princípios ilógicos decorrentes da selva, com o predomínio da força sobre o direito. 

Não obstante, estamos a avançar mais rapidamente do que nunca. E se a nossa vaidade e o nosso egoísmo não nos cegarem por completo, se formos capazes de reconhecer no Espiritismo a doutrina que integra o esquema do futuro; a plataforma espiritual, política e social do novo mundo que temos de construir no planeta – já não a ferro, fogo e sangue – mas a golpes de inteligência, compreensão e fraternidade, então poderemos atingir a maturidade humana. Caso contrário retornaremos à selva, recomeçaremos de novo o nosso aprendizado desde o princípio, reiniciaremos o curso desperdiçado das instruções superiores. E já não teremos na nossa companhia os que souberam vencer, pois cabe-lhes o direito de se transferirem para os cursos universitários da Cidade de Deus, em que o Pai certamente os matriculará. A escolha pertence-nos, a decisão é nossa. Deus no-la concedeu, com a consciência, o direito e o dever das opções. 

Kardec sabia o que fazia, quando evitava a confusão do Espiritismo com as religiões dogmáticas e formalistas, sem entretanto negar ao Espiritismo o seu aspecto religioso. Teve mesmo o cuidado de não cortar em excesso as ligações da doutrina com a tradição religiosa, pois sabia que a evolução não pode sofrer, sem graves perigos de solução de continuidade. O princípio espírita do encadeamento de todas as coisas no Universo estava presente na sua mente. Poucas obras revelam uma compreensão tão clara e profunda da natureza orgânica do Universo, como a Codificação. É por isso e, não por sectarismo ou fanatismo, que não podemos fazer concessões ao passado no campo das actividades doutrinárias. Avançamos para um novo mundo que só o Espiritismo pode modelar, pois só ele revela condições para isso na sua estrutura doutrinária. Mas se não procurarmos compreendê-lo em toda a sua grandeza, certamente que o reduziremos a uma seita fanática de crentes obscurantistas. Evitemos essa queda no passado, a nós e ao mundo. Tenhamos a coragem de avançar sem muletas e sem medo para a Civilização do Espírito. 

/… 


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 13 – Revolução Cósmica, 13º fragmento desta obra
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

terça-feira, 16 de março de 2021

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Sr. Home 
(Segundo artigo) 

(Ver o número de fevereiro de 1858) (*) 

Como dissemos, o Sr. Home é um médium do género daqueles sob cuja influência se produzem, mais em especial, fenómenos físicos, sem por isso excluir as manifestações inteligentes. Todo o efeito que revela a acção de uma vontade livre é, por isso mesmo, inteligente, ou seja, não é puramente mecânico e nem poderia ser atribuído a um agente exclusivamente material; mas, daí às comunicações instrutivas de elevado alcance moral e filosófico há uma distância muito grande e, não é do nosso conhecimento que o Sr. Home as obtenha de tal natureza. Não sendo médium escrevente, a maior parte das respostas são dadas por pancadas, indicativas das letras do alfabeto, meio sempre imperfeito e bastante lento, que dificilmente se presta a desenvolvimentos de uma certa extensão. Entretanto, ele também obtém a escrita, mas por outro processo de que falaremos dentro em pouco. 

Digamos, primeiro, como princípio geral, que as manifestações ostensivas, as que impressionam os sentidos, podem ser espontâneas ou provocadas. As primeiras são independentes da vontade; por vezes, ocorrem mesmo contra a vontade daquele que lhes é objecto e ao qual nem sempre são agradáveis. São frequentes os factos desse género e, sem remontar aos relatos mais ou menos autênticos dos tempos recuados, deles a história contemporânea oferece numerosos exemplos, cuja causa, ignorada no seu princípio, é hoje perfeitamente conhecida: tais são, por exemplo, os ruídos insólitos, o movimento desordenado dos objectos, as cortinas puxadas, as cobertas arrancadas, certas aparições, etc. Algumas pessoas são dotadas de uma faculdade especial que lhes dá o poder de provocar esses fenómenos, pelo menos em parte, por assim dizer, à vontade. Essa faculdade não é muito rara e, de cem pessoas, cinquenta pelo menos a possuem em maior ou menor grau. O que distingue o Sr. Home é que nele a faculdade está desenvolvida, como entre os médiuns de sua espécie, de uma maneira a bem dizer excepcional. Alguns não obterão senão golpes leves, ou o deslocamento insignificante de uma mesa, enquanto que, sob a influência do Sr. Home os ruídos mais retumbantes fazem-se ouvir e todo o mobiliário de um quarto pode ser revirado, os móveis amontoando-se uns sobre os outros. Por mais estranhos que sejam esses fenómenos, o entusiasmo de alguns admiradores muito zelosos ainda encontrou forma de os amplificar por meio de pura invenção. Por outro lado, os detractores não ficaram inactivos; a seu respeito, contaram todo o tipo de anedotas, que só existiram na sua imaginação. 

Eis um exemplo: 

O Sr. Marquês de..., uma das personagens que mais interesse demonstrou pelo Sr. Home e, em cuja residência o médium era recebido na intimidade, encontrava-se um dia na ópera com este último. Na plateia superior estava o Sr. de P..., um de nossos assinantes e, que conhece ambos pessoalmente. O seu vizinho entabula conversa com ele; o assunto é o Sr. Home. “Acreditais – disse ele – que aquele pretenso feiticeiro, aquele charlatão, encontrou meio de introduzir-se em casa do Sr. Marquês de... ? Os seus artifícios, porém, foram descobertos e ele foi posto no olho da rua a pontapés, como um vil intrigante. – Estais bem certo disso? pergunta o Sr. de P... Conheceis o Sr. Marquês de...? – Certamente, responde o interlocutor – Nesse caso, diz o Sr. de P..., olhai naquele camarote; podereis vê-lo em companhia do próprio Sr. Home, ao qual não parece que queira dar pontapés.” Diante disso, o nosso melancólico falador, não julgando conveniente continuar a conversa, pegou no seu chapéu e não apareceu mais. Por aí se pode julgar do valor de certas afirmações. Seguramente, se certos factos divulgados pela maledicência fossem verdadeiros, ter-lhe-iam fechado mais de uma porta; mas como as casas mais respeitáveis sempre lhe estiveram abertas, se deve concluir que sempre e por toda a parte ele se conduziu como um cavalheiro. Basta, aliás, haver conversado algumas vezes com o Sr. Home para ver que, com a sua timidez e a sua simplicidade de carácter, seria o mais desajeitado de todos os intrigantes; insistimos nesse ponto pela moralidade da causa. Voltemos às suas manifestações. Sendo o nosso objectivo fazer conhecer a verdade, no interesse da Ciência, tudo quanto relatamos é colhido em fontes de tal maneira autênticas que podemos garantir delas a mais escrupulosa exactidão; temos testemunhas oculares muito sérias, muito esclarecidas e altamente colocadas para que a sua honorabilidade possa ser posta em dúvida. Se dissessem que essas pessoas puderam, de boa-fé, ser vítimas de uma ilusão, responderíamos que há circunstâncias que escapam a todas as suposições desse género; aliás, tais pessoas estavam muito interessadas em conhecer a verdade para não se precaverem contra toda a falsa aparência. 

De uma maneira geral o Sr. Home começa as suas sessões pelos factos conhecidos: pancadas em uma mesa ou em qualquer outra parte do apartamento, procedendo como já dissemos alhures. Segue-se o movimento da mesa, que se opera, primeiro, pela imposição das mãos, dele somente ou de várias das pessoas reunidas, depois, à distância e sem contacto; é uma espécie de ensaio. Muito frequentemente ele nada mais obtém a seguir: vai depender da disposição em que ele se encontra e algumas vezes também da dos assistentes; há pessoas perante as quais jamais se produziu alguma destas coisas, mesmo sendo seus amigos. Não nos alongaremos sobre estes fenómenos, hoje tão conhecidos e, que só se distinguem pela sua rapidez e energia. Muitas vezes, após várias oscilações e balanços, a mesa se destaca do solo, eleva-se gradualmente, lentamente, por pequenas sacudidelas, não mais alguns centímetros somente, mas até ao tecto e fora do alcance das mãos. Após permanecer suspensa no espaço por alguns segundos, desce como havia subido, lenta e gradualmente. 

Sendo um facto conhecido a suspensão de um corpo inerte e de peso específico incomparavelmente maior que o do ar, concebe-se que o mesmo se possa dar com um corpo animado. Não nos consta que o Sr. Home tivesse agido sobre alguma pessoa além dele mesmo e, ainda assim, o facto não se produziu em Paris, mas se verificou diversas vezes, tanto em Florença como em França, especialmente em Bordeaux, na presença das mais respeitáveis testemunhas, que poderíamos citar, se necessário. Como a mesa, ele se elevou até ao tecto, descendo do mesmo modo que subiu. O que há de bizarro neste fenómeno é que não se produz por um acto de sua vontade e, ele mesmo nos disse que não se apercebe, acreditando estar sempre no chão, a menos que olhe para baixo; apenas as testemunhas o vêem elevar-se; diz, experimentar nesse momento a sensação produzida pelo sacolejo de um navio sobre as ondas. De resto, o facto que relatamos não é de forma alguma peculiar ao Sr. Home. A História cita vários exemplos autênticos que relataremos posteriormente. 

De todas as manifestações produzidas pelo Sr. Homea mais extraordinária, sem dúvida, é a das aparições, razão por que nelas insistiremos, mais, tendo em vista as graves consequências daí decorrentes e a luz que elas lançam sobre uma multidão de outros factos. O mesmo acontece com os sons produzidos no ar, instrumentos de música que tocam sozinhos, etc. No próximo número examinaremos detalhadamente esses fenómenos. 

Retornando de uma viagem à Holanda, onde produziu forte sensação na corte e na alta sociedade, o Sr. Home acaba de partir para Itália. A sua saúde, gravemente alterada, exigia um clima mais ameno. 

Confirmamos, com prazer, o que certos jornais relataram, de um legado de 6.000 francos de renda que lhe foi feito por uma dama inglesa, convertida por ele à Doutrina Espírita e em reconhecimento da satisfação que ela experimentou. Sob todos os aspectos, merecia o Sr. Home esse honroso testemunho. Esse acto, da parte da doadora, é um precedente que terá o aplauso de todos quantos partilham das nossas convicções; esperamos tenha a Doutrina, um dia, os seus Mecenas: a posteridade inscreverá o seu nome entre os benfeitores da Humanidade. A religião nos ensina a existência da alma e a sua imortalidade; o Espiritismo dá-nos a sua prova viva e palpável, já não pelo raciocínio, mas pelos factos. O materialismo é um dos vícios da sociedade actual, porque engendra o egoísmo. O que há, com efeito, fora do eu, para quem tudo liga à matéria e à vida presente? Intimamente vinculada às ideias religiosas, esclarecendo-nos sobre a nossa natureza, a Doutrina Espírita mostra-nos a felicidade na prática das virtudes evangélicas; lembra ao homem os seus deveres para com Deus, a sociedade e, para consigo mesmo. Colaborar na sua propagação é desferir um golpe mortal na chaga do cepticismo que nos invade como um mal contagioso; honra, pois, aos que empregam nessa obra os bens com que Deus os favoreceu na Terra! 

/…  
(*) Sr. Home (primeiro artigo).


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Sr. Home, (Segundo artigo – Ver o número de Fevereiro de 1858). Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Março de 1858, 9º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

segunda-feira, 15 de março de 2021

~ em torno do mestre


A restauração do Inferno ~ 

(Paródia a Tolstoi *

Satanás, o príncipe dos demónios, encarando o Nazareno, cujo corpo pendia do madeiro erguido no topo do Calvário, exclamou: “Miserável! morreste, graças às insinuações que sugeri aos Pontífices e Fariseus, mas de que me serve este triunfo vão, se a tua Doutrina já foi compreendida e assimilada por muitos que a praticam e propagam? Maldição! O meu reino está destruído para sempre. Vinguei-me, é certo, arrastando-te ao patíbulo da cruz, porém, que te importa isso, uma vez que estavas disposto ao sacrifício?”. 

Balbuciando estas últimas apóstrofes em voz estentórica, Satanás encurvou as negras asas sobre o esguio arcabouço e desapareceu por entre larga fenda que se abriu no solo, qual suicida que se precipita na voragem de um abismo. 

Caindo nas profundezas do inferno, ali permaneceu perturbado, num ambiente silencioso e tétrico onde as trevas da noite seriam sóis, se dado fosse penetrar a luz em semelhante antro, sede do reinado diabólico. 

Um século, dois séculos, três séculos se passaram. Satanás permanecia imóvel, de chavelhos entre as garras, esforçando-se por esquecer o facto que lhe havia produzido a ruína; mas, mau grado seu, não pensava noutra coisa. 

De repente, num dado momento, após largo ciclo de tempo decorrido, ouviu certo movimento em volta de si. Perscrutou atentamente e distinguiu um ruído sinistro de correntes que se arrastavam, a par de gemidos lancinantes, gritos, pragas e o ranger de dentes. 

Ergueu-se, então, Satanás nas veludas patas mal acreditando no que ouvia. Agitou a cauda, distendeu as membranosas e luzidias asas, a fim de despertar completamente daquele longo torpor e, se pôs a escutar. Era tudo verdade! O inferno mantinha o seu comércio em franca actividade. Tudo em movimento e vida nas tenebrosas masmorras de Belzebu. 

Satanás discorria consigo mesmo: Como conseguiram restabelecer o meu reino depois da vitória do Crucificado, vitória que presenciei e cujos pormenores acompanhei até ao transe derradeiro? Que teriam feito os meus sequazes? Vejamos. 

Dito isto, soltou um silvo agudo e prolongado que se repercutiu, sibilante, nas abóbadas infernais. 

Imediatamente, se abriu sobre o alto daquele subterrâneo um buraco que deixava ver labaredas vivas de um fogo rubro-azulado, precipitando-se por ali uma turbamulta de diabos de toda a casta e feitio que se vieram agrupar em torno de Satanás, como bando de urubus à volta de um corpo em putrefacção. 

Dentre eles, havia um que se postou mesmo em frente ao Chefe das trevas, mostrando-se satisfeito em ter ocasião de relatar as suas façanhas. 

Satanás, sequioso de notícias, não se fez esperar e, dirigindo-se a ele, travou o seguinte diálogo: 

— Então o inferno foi restaurado? Que foi feito da Doutrina de Jesus-Cristo? 

— Saiba, respeitável Chefe, que o nosso reinado continua firme como dantes. Diariamente, se abrem as portas do inferno para dar entrada a centenares de pecadores. 

— Zombas comigo. Então, depois da Doutrina do Cristo de Deus cujo nome tremo em pronunciar, ainda caem almas no inferno às centenas? 

— Pois é como eu digo os ensinamentos do Divino Mestre não nos incomodam, porque logramos destruí-los. 

— Mentes, cão infame. Aquela Doutrina é indestrutível. 

— Expressei-me mal, eminente Chefe. Queira perdoar-me. Nós conseguimos adulterá-la, introduzindo-lhe falsos conceitos. 

— Conta-me como isso foi. 

— Sim, adulterámo-la de tal maneira e com tanta astúcia e habilidade, que os homens adoptam a nossa doutrina, supondo ser aquela que o Chefe tanto teme. 

— Estupendo! Como conseguiram semelhante proeza? 

— Aproveitámo-nos de certas circunstâncias, conforme passo a expor. 

Logo depois da destruição do nosso império, procurámos observar os homens que praticavam a temível Doutrina do Filho de Maria. Viviam felizes. Amavam-se uns aos outros, tinham as propriedades em comum. Não havia, nem podia haver ciúmes, nem contendas, nem rivalidades entre eles. Pagavam o mal com o bem, perdoavam sempre. As pessoas que a eles se chegavam tornavam-se logo adeptas daquela Fé, tal a força viva da exemplificação. Ora, em tais condições, eram inacessíveis às nossas influências, por mais esforços que empregássemos. 

Vi tudo perdido. Mas, as tais circunstâncias, a que antes me referi, vieram em nosso auxílio. Levantou-se entre eles uma ligeira divergência sobre meras questões de formalidades. 

Assim, diziam uns que a circuncisão era indispensável. Outros se reportavam às demais cerimónias de ritual judeu, opinando que não deviam desprezá-las de todo. Falavam sobre o jejum, as abluções, o baptismo da água, a hóstia, etc. Entramos, então, em acção, sugerindo a cada grupo que nada cedesse sobre o seu modo de ver àquelas questões importantíssimas para a salvação das almas. O veneno foi-se infiltrando. O egoísmo e o orgulho começaram a despertar. As discussões acaloravam-se. Deu-se o cisma. As figuras mais importantes e que se haviam distinguido nas controvérsias instituíram um forte partido, com sede em Roma, aliando-se ao poder civil e à força política do século. Criaram um tribunal de onde passaram a decretar os novos artigos de fé. 

O povo tinha que aceitar as deliberações dos concílios reunidos em Roma. Uma onda de sangue inundou a Terra. Milhares de vítimas foram sacrificadas por se haverem insurgido contra os dogmas estatuídos. 

— Dogma? Que vem a ser esse termo, para mim desconhecido? 

— Dogma é um processo que inventámos e inspirámos aos membros do tal tribunal e que consiste em impor à razão e à consciência de outrem um absurdo qualquer, que convenha à nossa obra. 

— Esplêndido! Continua a narrativa dos factos; sem nada omitires. 

— Uma vez os acontecimentos no estado já exposto, o nosso império ficou de novo estabelecido. O inferno foi restaurado e a terrível doutrina desapareceu dentre esses escombros de dogmas, fórmulas ritos e cerimónias que conseguimos inspirar aos homens, no momento em que, esquecidos da essência e da base do Cristianismo, se preocupavam com as aparências e as formas exteriores. Eis aí, valoroso Chefe, em ligeiros traços, a história da restauração dos nossos domínios. 

Satanás, cofiando a pêra com as aguçadas garras, permaneceu por algum tempo perplexo, depois de ouvir a narrativa do seu dedicado súbdito. Despertando daquela meditação, disse: 

— Muito bem. Agiste com sabedoria: hei de gratificar-te como mereces. Nesta altura, saltaram os demais demónios, pretendendo, cada um, fazer jus a propinas, pelos seus trabalhos particulares. 

— Afastem-se, bradou Satanás, em voz imperativa; não sejam idiotas. Uma vez que a Doutrina do Crucificado foi desnaturada nas suas bases e que os homens, por isso, não fazem um juízo verdadeiro do objecto da vida, temos completo ganho de causa. Os feitos isolados carecem de importância. A base é tudo e a base foi desvirtuada. Enquanto pudermos conservar esta situação, as portas do inferno não se fecharão. Esforcemo-nos, pois, pela estabilidade deste estado de coisas. Estou inteirado de tudo e declaro dissolvida a Assembleia. Cada um para o seu posto: marchem. 

E um novo e prolongado silvo dissolveu o congresso diabólico. 


O pecado e a atitude pecaminosa ~ 

"Tendes ouvido o que foi dito: Não adulterareis. Eu, porém, vos digo que todo o que põe os seus olhos em uma mulher, para a cobiçar, já no seu coração cometeu adultério... É necessário que haja escândalos, mas ai do homem por quem o escândalo vem." (Mateus, 5:27 e 28) 

A atitude pecaminosa e o pecado consumado são igualmente passíveis de condenação pela justiça soberana do céu. 

Há capacidade para o mal, como há para o bem. O estado pecaminoso está incurso na lei divina, ainda mesmo que, por esta ou aquela circunstância, não se objective o pecado. 

A justiça da Terra julga pelas aparências. A do céu julga segundo a recta equidade. Para o julgamento do mundo faz-se mister que o mal se concretize para que exista e seja condenado. Para o juízo divino, que penetra o âmago dos corações, isso não é necessário: ele constata o mal latente e o exprobra desde logo. 

E assim se explicam as palavras de Jesus: É preciso que haja escândalo; mas ai daquele por quem o escândalo vem. Sim, é preciso que a maldade humana, oculta nos pélagos insondáveis do Espírito, se manifeste, se mostre à luz do dia para que o delinquente se reconheça como tal, e, suportando as consequências dolorosas do delito, se corrija e se converta. Enquanto a sujidade permanece escondida, o homem se julga puro; quando, porém, extravasa a lama pútrida que jazia acamada no fundo de sua alma, ele desperta para a realidade e se reconhece pecador. É o que sucedeu com o Mancebo, cuja paixão pelas riquezas mundanas Jesus tornou patente. 

Sendo a confissão da culpa o início da redenção, é preciso que haja escândalo, uma vez que o homem só se curva à evidência dos seus pecados quando estes se tornam ostensivos, já não lhe sendo possível dissimulá-los. 

Que importa que o adultério não se haja consumado, se ele existe no coração? Que importa que o homem mau não haja tirado a vida a ninguém, se ele é homicida de pensamento, se alimenta ódio contra o seu próximo e se regozija com as desventuras alheias? 

Quem diria que Judas seria capaz de vender Jesus-Cristo por trinta dinheiros, senão o mesmo Jesus, que sabia existir na alma cúpida daquele discípulo a avareza, a sede insaciável de ouro que, no dizer de Paulo, é a raiz de todos os males? Neste caso, dir-se-á: porque, então, Jesus chamou Judas para o apostolado? Justamente porque era preciso que o escândalo se verificasse, já em proveito da missão que Jesus vinha desempenhar na Terra, já no do próprio Judas, cuja redenção teve início precisamente depois da prática daquele crime de traição. O tremendo remorso de que se viu possuído é o atestado certo do despertar de sua consciência até ali mergulhada na embriaguez de paixões bastardas. 

Noutro terreno menos grave, vemos Pedro, o apóstolo arrojado, cujo temperamento ardoroso tão bem se prestava a transmitir as mensagens do céu, negar três vezes o seu Mestre, mesmo a despeito de haver sido por ele prevenido dessa prova pela qual devia passar. A negação de Pedro foi, a seu turno, um escândalo; mas, era preciso que assim sucedesse para que Pedro se acautelasse contra uma ralha do seu bondoso carácter. 

Jesus estava certo de que Pedro podia negá-lo; porem Pedro, a parte mais interessada no caso, ignorava que de tal fosse capaz. Após a consumação do acto pecaminoso, ficou-se conhecendo melhor; e, como é sabido, do conhecimento próprio depende a obra do nosso aperfeiçoamento. Pedro, no conceito de Jesus, era o mesmo, antes e depois da negação. Esta falta, ou melhor, a capacidade de praticar ou incorrer em tal género de pecado, já Jesus o havia descortinado no interior daquele apóstolo. 

De todos estes comentos ressalta grande e proveitosíssima lição de humildade, que convém assinalar. Do exposto, é forçoso concluir que existe em todos nós grandes falhas de carácter, muitas e variadas capacidades de pecar. Esta convicção, do que na realidade somos, há de nos tornar mais benevolentes, menos insensíveis para com as quedas alheias. Veremos com olhos mais complacentes as vítimas do crime; e, — como os acusadores da mulher adúltera, aos quais Jesus forçou reconhecer as próprias culpas — não nos sentiremos com ânimo de lhes atirar a primeira pedra. 


O criminoso e o crime ~ 

No conceito que geralmente se faz do mal, sob os seus vários aspectos, confunde-se o mal, propriamente dito, com aquele que o pratica. Dessa lamentável confusão advêm não pequenos erros de apreciação, quanto à maneira eficiente de se combater o mal. 

Para bem agirmos em prol do saneamento moral, precisamos partir deste princípio: o crime não é o criminoso, o vício não é o viciado, o pecado não é o pecador, do mesmo modo e pelo mesmo critério que o doente não é a doença. Assim como se combatem as enfermidades e não os enfermos, assim também se devem combater o crime, o vício e o pecado e, não o criminoso, o viciado e o pecador. 

O mal não é intrínseco ao indivíduo, não faz parte da natureza íntima do Espírito; é, antes, uma anomalia, como o são as enfermidades. O bem, tal como a saúde, é o estado natural, é a condição visceralmente inerente ao espírito. Um corpo doente constitui um caso de desequilíbrio, precisamente como um espírito transviado, rebelde, viciado, ou criminoso. 

Há tantas variedades de distúrbios psíquicos quantos de distúrbios físicos, aos quais a medicina rubrica com variadíssimas denominações. A origem do mal, quer no corpo, quer no espírito, é a mesma: uma infracção das leis de higiene. 

O homem frauda essa lei por ignorância, por fraqueza e, finalmente, pelo impulso de certas paixões que o dominam. Não devemos votá-lo ao desprezo por isso, nem, muito menos, malsiná-lo como réprobo, pois em tal caso, se justificaria se tratarem de igual modo os enfermos. 

Aliás em épocas felizmente remotas, se procedeu assim com relação aos enfermos de doenças infectuosas. Esses infelizes eram tidos como vítimas da cólera divina e, por isso, perseguidos cruelmente pela sociedade. 

A ignorância torna os homens capazes de todas as banias. Pois é essa mesma ignorância, com refreia aos transviados da senda nobre da vida, que gera a repulsa e mesmo o ódio contra os delinquentes. Os velhos códigos humanos, assim civis como religiosos, foram vazados nos moldes dessa confusão entre o acto delituoso e o seu agente. 

Quando Jesus preconizou o — amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos fazem mal — não proclamou somente um preceito de alta humanidade; proferiu uma sentença profundamente pedagógica e sábia. A benevolência, contrastando com a agressão, é o único processo educativo capaz de corrigir e regenerar o pecador. 

Cumpre notar e, o dizemos com toda a ênfase, que esta doutrina nada tem de comum com o sentimentalismo piegas, estéril e, às vezes, prejudicial. Trata-se de repor as coisas nos seus lugares. 

Para se varrer o mal da face da Terra, é preciso que se apliquem métodos naturais, conducentes a esse objectivo. O método natural é a educação do espírito. Com o velho sistema de castigar, ou eliminar as vítimas do crime e do vício, nada se logrará de positivo, conforme os factos atestam eloquentemente. 

A medicina jamais pensou na eliminação dos enfermos; toda a sua preocupação está em curar as doenças. Pois o processo deve ser o mesmo, em se tratando dos distúrbios que afectam o moral dos indivíduos. 

Felizmente, os primeiros pródromos de uma reforma radical neste sentido já se observam nos meios mais avançados. O único castigo capaz de produzir efeito na regeneração dos culpados é o que se traduz pela consequência natural dolorosa do erro ou mal cometido, consequência que recai fatalmente sobre o culpado. É necessário fazer que o delinquente reconheça esse facto e, isso se consegue por meio de instrução moral. 

Toda a punição imposta de fora, como revide social, é contraproducente, conforme os factos, na sua irretorquível expressão, têm comprovado mil vezes. 

É muito fácil encarcerar ou electrocutar um criminoso. Educá-lo é mais difícil, mais trabalhoso, demanda esforço, tempo, saber e caridade. Por isso, os Estados mandam os criminosos para a forca e as religiões remetem os pecadores, que não são da sua grei, para o inferno. 

Mas, se aquele é o único processo eficaz, procuremos empregá-lo e, não este, anti-científico, imoral e cruel. 

A educação vence e previne o mal. O homem educado conhece o senso da vida, age conscienciosamente com critério, com discernimento: é um valor social. É pela educação que se hão de vencer os vícios repugnantes (haverá algum que o não seja?), que se hão de domar as paixões tumultuarias que obliteram a inteligência e a razão. E, de tal modo, sanear-se-á a sociedade. 

Retirem-se os delinquentes do convívio social, como se faz com o pestoso que ameaça a salubridade pública; mas, como a este, se preste àquele a assistência que lhe é devida: a educação. 

E não se suponha, outrossim, que só os criminosos devem ser educados. A obra de educação é obra de salvação, é obra religiosa na sua alta finalidade, é obra científica e social na sua expressão verdadeira. Eduquem-se a todos, cada um na sua esfera, até que a educação se transforme, em cada indivíduo, numa auto-educação contínua, ininterrupta. 

Na educação do espírito está o senso da vida, está a solução de todos os seus problemas. 


Os lírios e as aves ~ 

Considerai as aves, que não semeiam nem ceifam, não têm despensa nem celeiro; contudo, Deus as alimenta; quanto mais a vós que valeis mais do que as aves. Considerai os lírios, como não trabalham nem fiam; contudo, eu vos digo que nem Salomão com toda a sua glória se vestiu como um deles. (Mateus, 6:26 a 20.) 

Esplêndidas e sublimes palavras! Como o nosso espírito se sente bem ao meditá-las! Nada está esquecido na obra imensurável da criação infinita! 

O lírio esbelto e mimoso, de pétalas multicores, cuja vida efémera se esvai através de alguns dias, tem, todavia, uma finalidade, mais alta que o simples deleitar as retinas dos nossos olhos. Deus o criou como parte integrante da extraordinária orquestra da vida. Sim, o lírio, essa erva do campo, que hoje se ostenta garrida e bela, para amarelecer e finar-se amanhã, faz jus, ainda assim, ao mesmo destino reservado a todas as formas da vida: à evolução

Como a planta e, com mais razão, evolvem também os animais. Considerai — diz o Intérprete da Lei — as aves, que não semeiam nem ceifam, contudo, Deus as alimenta. 

Os lírios como as aves, estão contidos no pensamento da Divindade. 

Deus veste as flores com mais pompa do que Salomão, o mais rico monarca que o mundo já viu, conseguiu fazê-lo. Deus alimenta as aves que, descuidadas e alegres, fendem os ares sem jamais se preocuparem com o dia de amanhã. Tudo está disposto, na maravilhosa obra da criação, de maneira a assegurar o bem inigualável de viver e, de viver com alegria, porfiando na conquista de um destino glorioso, reservado a todos os seres. 

O indizível espectáculo das assombrosas produções com que a Natureza se engalana, ao lado da sapientíssima organização que tudo rege no cenário universal, fez aflorar aos lábios de Maeterlink esta magnífica exclamação: "Para a frente e para o alto! eis a legenda gravada em cada átomo do Universo." 

Esta sentença do grande pensador encerra uma empolgante verdade: na criação tudo evolve, tudo marcha, do infinitamente pequeno para o infinitamente grande. Nada jaz no esquecimento. O Pai amantíssimo traz no seu pensamento cada partícula da sua ilimitada criação. 

Deste conceito ressalta a ideia soberana da justiça. Imaginar Deus desacompanhado de indefectível justiça é heresia imperdoável. 

Por isso, quando o expoente da Lei passou pelo mundo, anunciando o reino divino, predicava assim aos homens: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça: tudo o mais vos será dado por acréscimo." Só podemos encontrar Deus através da justiça; fora dela jamais o descobriremos. O seu reino é o da justiça, justiça que em tudo se revela, que em tudo resplende, como a luz do primeiro dia da Génese. 

E que belo aspecto, que majestoso quadro é o do Universo, visto através do império da justiça! Nada de privilégios, nada de favoritismos. Nada esquecido, nem mesmo o verme que rasteja! Entre o grão de pó que volteia no ar e a estrela que refulge no azul do firmamento, uma relação qualquer existe. Os reinos da Natureza se entrelaçam num abraço fraterno de íntima solidariedade. 

Mesmo no nosso meio, recanto mesquinho da imensidade, vemos, por exemplo, o coral reunindo várias modalidades, que se conjugam no reinado tríplice da planta, do mineral e do animal. Existem, no terreno da microbiologia, certas variedades microbianas que os próprios bacteriologistas se sentem embaraçados em classificar, se pertencentes ao reino animal ou ao vegetal, pois são como que pontos de transição entre este e aquele. 

Ó maravilhosa manifestação do poder divino! Confundes os sábios com os teus prodígios, prodígios diante dos quais não sabemos que mais admirar — se a infinita diversidade da harmonia, se o esplendor da justiça que refulge, iluminando tão sublimes e inconcebíveis milagres! 

No conjunto geral, todos têm o seu lugar. Daí o dizer, profundamente sábio, de Amado Nervo: "Tão essencial é, talvez, no ritmo do mundo, o canto do rouxinol como o pensamento de Newton." 

Deus criou o rouxinol e criou Newton, criou as aves e criou os homens. Estes, como aquelas, são feituras de suas mãos. Portanto, é natural que a sua solicitude se estenda sobre todos os seres, da monera humílima ao génio mais refulgente. Todos, indistintamente, são objecto do amor divino. Animais, homens, anjos e deuses são criaturas de um só e único gerador da vida universal. 

Aquele Deus que, no dizer de seu Verbo humanado, "derrama chuvas sobre os bons e os maus e dardeja os raios benfazejos de seu sol sobre os justos e os injustos", é o mesmo Deus de amor e de justiça que veste os lírios e alimenta as aves do céu. 

Assim como não admitimos que haja seres criados especialmente para o desfrute de gozos infindos nos paramos celestiais, enquanto nós, unos da carne e do sangue, lutamos com todas as fraquezas da matéria e mais as contingências desfavoráveis de um meio onde imperam o mal e a dor, assim também não concebemos como possam os seres inferiores da escala zoológica permanecer eternamente nesse estado de inferioridade. 

Onde há vida, há movimento e crescimento. E as obras de Deus são vivas. 

Queremos ver e, de facto vemos, com os nossos “olhos de ver", a Lei bendita da evolução promovendo e determinando o progresso de todas as criaturas, num encadeamento majestoso e extraordinário, que nos empolga a mente e conforta o coração. 

A grandeza da fé espírita, que é a cristã, ressalta precisamente dessa solidariedade através da qual apresenta a infinita obra de Deus, congraçando, num magnífico e soberbo amplexo, todas as formas de vida. 

Cremos em Deus! Cremos na sua justiça! "Sursum corda" (**). Digamos com C. Wagner: E vós, mimosas flores que a cada primavera desabrochais, sede as mensageiras da boa nova reconfortante! Dizei aos lutadores abatidos que o êxito será feliz, que jamais terá fim o amor! Sede na sombra, perto de nós, as testemunhas das estrelas eternas! Levai às moradas e mesmo aos corações esse reflexo do azul do céu, prisioneiro das vossas corolas. 

/... 

(*) Leon Tolstói: “Durante a década de 1870, Tolstói experimentou uma profunda crise moral, seguida do que ele considerou um despertar espiritual igualmente profundo, conforme descrito no seu trabalho não-ficcional A Confissão (1882). A sua interpretação literal dos ensinamentos éticos de Jesus, centrada no Sermão da Montanha, fez com que ele se tornasse um fervoroso anarquista cristão e pacifista. As ideias de Tolstói sobre resistência não-violenta, expressadas em obras como O reino de deus esta em vós (1894), teriam um impacto profundo em figuras centrais do século 20 como WittgensteinWilliam Jennings Bryan e Gandhi.[1] Tolstói também se tornou um defensor dedicado do Georgismo, filosofia económica de Henry George, incorporada na sua obra intelectual, sobretudo no seu último romance Ressurreição (1899).” Fonte: Wikipédia / Wikiwand, a enciclopédia livre. Continuar a ler (i).
(**) Sursum corda – frase latina, que significa “elevai os corações”, cita-se como exortação a sentimentos elevados. Fonte: Léon Denis, in O Mundo Invisível e a Guerra. 

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra." 
                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius” 


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; A restauração do Inferno (Paródia a Tolstoi) / O pecado e a atitude pecaminosa / O criminoso e o crime / Os lírios e as aves, 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: A Arte da Pintura, óleo sobre tela (1666), de Johannes Vermeer)