(Paródia a Tolstoi *)
Satanás, o príncipe dos demónios, encarando o Nazareno, cujo corpo pendia do
madeiro erguido no topo do Calvário, exclamou: “Miserável! morreste, graças às
insinuações que sugeri aos Pontífices e Fariseus, mas de que me serve este
triunfo vão, se a tua Doutrina já foi compreendida e assimilada por muitos
que a praticam e propagam? Maldição! O meu reino está destruído para sempre.
Vinguei-me, é certo, arrastando-te ao patíbulo da cruz, porém, que te importa
isso, uma vez que estavas disposto ao sacrifício?”.
Balbuciando estas últimas apóstrofes em voz estentórica,
Satanás encurvou as negras asas sobre o esguio arcabouço e desapareceu por
entre larga fenda que se abriu no solo, qual suicida que se precipita na
voragem de um abismo.
Caindo nas profundezas do inferno, ali permaneceu
perturbado, num ambiente silencioso e tétrico onde as trevas da noite seriam
sóis, se dado fosse penetrar a luz em semelhante antro, sede do reinado
diabólico.
Um século, dois séculos, três séculos se passaram. Satanás
permanecia imóvel, de chavelhos entre as garras, esforçando-se por esquecer o
facto que lhe havia produzido a ruína; mas, mau grado seu, não pensava noutra
coisa.
De repente, num dado momento, após largo ciclo de tempo
decorrido, ouviu certo movimento em volta de si. Perscrutou atentamente e
distinguiu um ruído sinistro de correntes que se arrastavam, a par de gemidos
lancinantes, gritos, pragas e o ranger de dentes.
Ergueu-se, então, Satanás nas veludas patas mal acreditando
no que ouvia. Agitou a cauda, distendeu as membranosas e luzidias asas, a fim
de despertar completamente daquele longo torpor e, se pôs a escutar. Era tudo
verdade! O inferno mantinha o seu comércio em franca actividade. Tudo em
movimento e vida nas tenebrosas masmorras de Belzebu.
Satanás discorria consigo mesmo: Como conseguiram
restabelecer o meu reino depois da vitória do Crucificado, vitória que
presenciei e cujos pormenores acompanhei até ao transe derradeiro? Que teriam
feito os meus sequazes? Vejamos.
Dito isto, soltou um silvo agudo e prolongado que se
repercutiu, sibilante, nas abóbadas infernais.
Imediatamente, se abriu sobre o alto daquele subterrâneo um
buraco que deixava ver labaredas vivas de um fogo rubro-azulado,
precipitando-se por ali uma turbamulta de
diabos de toda a casta e feitio que se vieram agrupar em torno de Satanás, como
bando de urubus à
volta de um corpo em putrefacção.
Dentre eles, havia um que se postou mesmo em frente ao Chefe
das trevas, mostrando-se satisfeito em ter ocasião de relatar as suas façanhas.
Satanás, sequioso de notícias, não se fez esperar e,
dirigindo-se a ele, travou o seguinte diálogo:
— Então o inferno foi restaurado? Que foi feito da Doutrina
de Jesus-Cristo?
— Saiba, respeitável Chefe, que o nosso reinado continua
firme como dantes. Diariamente, se abrem as portas do inferno para dar entrada
a centenares de
pecadores.
— Zombas comigo. Então, depois da Doutrina do Cristo de Deus
cujo nome tremo em pronunciar, ainda caem almas no inferno às centenas?
— Pois é como eu digo os ensinamentos do Divino Mestre não
nos incomodam, porque logramos destruí-los.
— Mentes, cão infame. Aquela Doutrina é indestrutível.
— Expressei-me mal, eminente Chefe. Queira perdoar-me. Nós
conseguimos adulterá-la, introduzindo-lhe falsos conceitos.
— Conta-me como isso foi.
— Sim, adulterámo-la de tal maneira e com tanta
astúcia e habilidade, que os homens adoptam a nossa doutrina, supondo ser
aquela que o Chefe tanto teme.
— Estupendo! Como conseguiram semelhante proeza?
— Aproveitámo-nos de certas circunstâncias, conforme passo a
expor.
Logo depois da destruição do nosso império, procurámos
observar os homens que praticavam a temível Doutrina do Filho de Maria. Viviam
felizes. Amavam-se uns aos outros, tinham as propriedades em comum. Não havia,
nem podia haver ciúmes, nem contendas, nem rivalidades entre eles. Pagavam o
mal com o bem, perdoavam sempre. As pessoas que a eles se chegavam tornavam-se
logo adeptas daquela Fé, tal a força viva da exemplificação. Ora, em tais
condições, eram inacessíveis às nossas influências, por mais esforços que
empregássemos.
Vi tudo perdido. Mas, as tais circunstâncias, a que antes me
referi, vieram em nosso auxílio. Levantou-se entre eles uma ligeira divergência
sobre meras questões de formalidades.
Assim, diziam uns que a circuncisão era indispensável.
Outros se reportavam às demais cerimónias de ritual judeu, opinando que não
deviam desprezá-las de todo. Falavam sobre o jejum, as abluções,
o baptismo da água, a hóstia, etc. Entramos, então, em acção, sugerindo
a cada grupo que nada cedesse sobre o seu modo de ver àquelas questões
importantíssimas para a salvação das almas. O veneno foi-se infiltrando. O
egoísmo e o orgulho começaram a despertar. As discussões acaloravam-se. Deu-se
o cisma. As figuras mais importantes e que se haviam distinguido nas
controvérsias instituíram um forte partido, com sede em Roma, aliando-se ao
poder civil e à força política do século. Criaram um tribunal de onde passaram
a decretar os novos artigos de fé.
O povo tinha que aceitar as deliberações dos concílios
reunidos em Roma. Uma onda de sangue inundou a Terra. Milhares de
vítimas foram sacrificadas por se haverem insurgido contra os dogmas estatuídos.
— Dogma? Que vem a ser esse termo, para mim desconhecido?
— Dogma é um processo que inventámos e inspirámos
aos membros do tal tribunal e que consiste em impor à razão e à consciência de
outrem um absurdo qualquer, que convenha à nossa obra.
— Esplêndido! Continua a narrativa dos factos; sem nada
omitires.
— Uma vez os acontecimentos no estado já exposto, o nosso
império ficou de novo estabelecido. O inferno foi restaurado e a terrível
doutrina desapareceu dentre esses escombros de dogmas, fórmulas ritos e
cerimónias que conseguimos inspirar aos homens, no momento em que,
esquecidos da essência e da base do Cristianismo, se preocupavam com as
aparências e as formas exteriores. Eis aí, valoroso Chefe, em ligeiros
traços, a história da restauração dos nossos domínios.
Satanás, cofiando a
pêra com as aguçadas garras, permaneceu por algum tempo perplexo, depois de
ouvir a narrativa do seu dedicado súbdito. Despertando daquela meditação,
disse:
— Muito bem. Agiste com sabedoria: hei de gratificar-te como
mereces. Nesta altura, saltaram os demais demónios, pretendendo, cada um, fazer
jus a propinas, pelos seus trabalhos particulares.
— Afastem-se, bradou Satanás, em voz imperativa; não sejam
idiotas. Uma vez que a Doutrina do Crucificado foi desnaturada nas suas bases e
que os homens, por isso, não fazem um juízo verdadeiro do objecto da vida,
temos completo ganho de causa. Os feitos isolados carecem de importância. A
base é tudo e a base foi desvirtuada. Enquanto pudermos conservar esta situação,
as portas do inferno não se fecharão. Esforcemo-nos, pois, pela
estabilidade deste estado de coisas. Estou inteirado de tudo e declaro dissolvida a
Assembleia. Cada um para o seu posto: marchem.
E um novo e prolongado silvo dissolveu o congresso
diabólico.
O pecado e a atitude pecaminosa ~
"Tendes ouvido o que foi dito: Não adulterareis. Eu,
porém, vos digo que todo o que põe os seus olhos em uma mulher, para a cobiçar,
já no seu coração cometeu adultério... É necessário que haja escândalos, mas ai
do homem por quem o escândalo vem." (Mateus, 5:27 e 28)
A atitude pecaminosa e o pecado consumado são igualmente
passíveis de condenação pela justiça soberana do céu.
Há capacidade para o mal, como há para o bem. O estado
pecaminoso está incurso na lei divina, ainda mesmo que, por esta ou
aquela circunstância, não se objective o pecado.
A justiça da Terra julga pelas aparências. A do céu julga
segundo a recta equidade. Para o julgamento do mundo faz-se mister que o mal se
concretize para que exista e seja condenado. Para o juízo divino, que penetra o
âmago dos corações, isso não é necessário: ele constata o mal latente e o exprobra desde
logo.
E assim se explicam as palavras de Jesus: É preciso
que haja escândalo; mas ai daquele por quem o escândalo vem. Sim, é preciso que
a maldade humana, oculta nos pélagos insondáveis
do Espírito, se manifeste, se mostre à luz do dia para que o delinquente se
reconheça como tal, e, suportando as consequências dolorosas do delito, se
corrija e se converta. Enquanto a sujidade permanece escondida, o homem se
julga puro; quando, porém, extravasa a lama pútrida que jazia acamada no fundo
de sua alma, ele desperta para a realidade e se reconhece pecador. É o que
sucedeu com o Mancebo, cuja paixão pelas riquezas mundanas Jesus tornou
patente.
Sendo a confissão da culpa o início da redenção, é preciso
que haja escândalo, uma vez que o homem só se curva à evidência dos seus
pecados quando estes se tornam ostensivos, já não lhe sendo possível
dissimulá-los.
Que importa que o adultério não se haja consumado, se ele
existe no coração? Que importa que o homem mau não haja tirado a vida a
ninguém, se ele é homicida de pensamento, se alimenta ódio contra o seu próximo
e se regozija com as desventuras alheias?
Quem diria que Judas seria
capaz de vender Jesus-Cristo por trinta dinheiros, senão o mesmo Jesus, que
sabia existir na alma cúpida daquele discípulo a avareza, a sede insaciável de
ouro que, no dizer de Paulo, é a raiz de todos os males? Neste caso, dir-se-á: porque,
então, Jesus chamou Judas para o apostolado? Justamente porque era preciso que
o escândalo se verificasse, já em proveito da missão que Jesus vinha
desempenhar na Terra, já no do próprio Judas, cuja redenção teve início
precisamente depois da prática daquele crime de traição. O tremendo remorso de
que se viu possuído é o atestado certo do despertar de sua consciência até ali
mergulhada na embriaguez de paixões bastardas.
Noutro terreno menos grave, vemos Pedro,
o apóstolo arrojado, cujo temperamento ardoroso tão bem se prestava a
transmitir as mensagens do céu, negar três vezes o seu Mestre, mesmo a despeito
de haver sido por ele prevenido dessa prova pela qual devia passar. A negação
de Pedro foi, a seu turno, um escândalo; mas, era preciso que assim sucedesse
para que Pedro se acautelasse contra uma ralha do seu bondoso carácter.
Jesus estava certo de que Pedro podia negá-lo; porem Pedro,
a parte mais interessada no caso, ignorava que de tal fosse capaz. Após a
consumação do acto pecaminoso, ficou-se conhecendo melhor; e, como é sabido, do
conhecimento próprio depende a obra do nosso aperfeiçoamento. Pedro, no
conceito de Jesus, era o mesmo, antes e depois da negação. Esta falta, ou
melhor, a capacidade de praticar ou incorrer em tal género de pecado, já Jesus
o havia descortinado no interior daquele apóstolo.
De todos estes comentos ressalta
grande e proveitosíssima lição de humildade, que convém assinalar. Do exposto,
é forçoso concluir que existe em todos nós grandes falhas de carácter, muitas e
variadas capacidades de pecar. Esta convicção, do que na realidade somos, há de
nos tornar mais benevolentes, menos insensíveis para com as quedas alheias.
Veremos com olhos mais complacentes as vítimas do crime; e, — como os
acusadores da mulher adúltera, aos quais Jesus forçou reconhecer as próprias
culpas — não nos sentiremos com ânimo de lhes atirar a primeira pedra.
O criminoso e o crime ~
No conceito que geralmente se faz do mal, sob os seus vários
aspectos, confunde-se o mal, propriamente dito, com aquele que o pratica. Dessa
lamentável confusão advêm não pequenos erros de apreciação, quanto à maneira
eficiente de se combater o mal.
Para bem agirmos em prol do saneamento moral, precisamos
partir deste princípio: o crime não é o criminoso, o vício não é o viciado, o
pecado não é o pecador, do mesmo modo e pelo mesmo critério que o doente não é
a doença. Assim como se combatem as enfermidades e não os enfermos, assim
também se devem combater o crime, o vício e o pecado e, não o criminoso, o
viciado e o pecador.
O mal não é intrínseco ao indivíduo, não faz parte da
natureza íntima do Espírito; é, antes, uma anomalia, como o são as enfermidades.
O bem, tal como a saúde, é o estado natural, é a condição visceralmente
inerente ao espírito. Um corpo doente constitui um caso de desequilíbrio,
precisamente como um espírito transviado, rebelde, viciado, ou criminoso.
Há tantas variedades de distúrbios psíquicos quantos de
distúrbios físicos, aos quais a medicina rubrica com variadíssimas
denominações. A origem do mal, quer no corpo, quer no espírito, é a mesma: uma
infracção das leis de higiene.
O homem frauda essa lei por ignorância, por fraqueza e,
finalmente, pelo impulso de certas paixões que o dominam. Não devemos votá-lo
ao desprezo por isso, nem, muito menos, malsiná-lo como réprobo,
pois em tal caso, se justificaria se tratarem de igual modo os enfermos.
Aliás em épocas felizmente remotas, se procedeu assim com
relação aos enfermos de doenças infectuosas. Esses infelizes eram tidos como
vítimas da cólera divina e, por isso, perseguidos cruelmente pela sociedade.
A ignorância torna os homens capazes de todas as banias. Pois
é essa mesma ignorância, com refreia aos transviados da senda nobre da vida,
que gera a repulsa e mesmo o ódio contra os delinquentes. Os velhos códigos
humanos, assim civis como religiosos, foram vazados nos moldes dessa confusão
entre o acto delituoso e o seu agente.
Quando Jesus preconizou o — amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos fazem mal — não proclamou somente um preceito de alta
humanidade; proferiu uma sentença profundamente pedagógica e sábia. A
benevolência, contrastando com a agressão, é o único processo educativo capaz
de corrigir e regenerar o pecador.
Cumpre notar e, o dizemos com toda a ênfase, que esta
doutrina nada tem de comum com o sentimentalismo piegas, estéril e, às vezes,
prejudicial. Trata-se de repor as coisas nos seus lugares.
Para se varrer o mal da face da Terra, é preciso que se
apliquem métodos naturais, conducentes a esse objectivo. O método natural é a
educação do espírito. Com o velho sistema de castigar, ou eliminar as
vítimas do crime e do vício, nada se logrará de positivo, conforme os factos
atestam eloquentemente.
A medicina jamais pensou na eliminação dos enfermos; toda a
sua preocupação está em curar as doenças. Pois o processo deve ser o mesmo, em
se tratando dos distúrbios que afectam o moral dos indivíduos.
Felizmente, os primeiros pródromos de uma reforma radical neste sentido já se
observam nos meios mais avançados. O único castigo capaz de produzir
efeito na regeneração dos culpados é o que se traduz pela consequência natural
dolorosa do erro ou mal cometido, consequência que recai fatalmente sobre o
culpado. É necessário fazer que o delinquente reconheça esse facto e,
isso se consegue por meio de instrução moral.
Toda a punição imposta de fora, como revide social, é
contraproducente, conforme os factos, na sua irretorquível expressão, têm
comprovado mil vezes.
É muito fácil encarcerar ou electrocutar um criminoso.
Educá-lo é mais difícil, mais trabalhoso, demanda esforço, tempo, saber e
caridade. Por isso, os Estados mandam os criminosos para a forca e as religiões
remetem os pecadores, que não são da sua grei, para o inferno.
Mas, se aquele é o único processo eficaz, procuremos
empregá-lo e, não este, anti-científico, imoral e cruel.
A educação vence e previne o mal. O homem educado conhece
o senso da vida, age conscienciosamente com critério, com discernimento: é um
valor social. É pela educação que se hão de vencer os vícios
repugnantes (haverá algum que o não seja?), que se hão de domar as paixões
tumultuarias que obliteram a inteligência e a razão. E, de tal modo,
sanear-se-á a sociedade.
Retirem-se os delinquentes do convívio social, como se faz
com o pestoso que
ameaça a salubridade pública; mas, como a este, se preste àquele a assistência
que lhe é devida: a educação.
E não se suponha, outrossim, que só os criminosos devem ser
educados. A obra de educação é obra de salvação, é obra religiosa na sua alta
finalidade, é obra científica e social na sua expressão verdadeira. Eduquem-se
a todos, cada um na sua esfera, até que a educação se transforme, em cada
indivíduo, numa auto-educação contínua, ininterrupta.
Na educação do espírito está o senso da vida, está a solução
de todos os seus problemas.
Os lírios e as aves ~
Considerai as aves, que não semeiam nem ceifam, não têm
despensa nem celeiro; contudo, Deus as alimenta; quanto mais a vós que valeis
mais do que as aves. Considerai os lírios, como não trabalham nem fiam;
contudo, eu vos digo que nem Salomão com toda a sua glória se vestiu como um
deles. (Mateus, 6:26 a 20.)
Esplêndidas e sublimes palavras! Como o nosso espírito se
sente bem ao meditá-las! Nada está esquecido na obra imensurável da criação
infinita!
O lírio esbelto e mimoso, de pétalas multicores, cuja
vida efémera se esvai através de alguns dias, tem, todavia, uma finalidade,
mais alta que o simples deleitar as retinas dos nossos olhos. Deus o criou como
parte integrante da extraordinária orquestra da vida. Sim, o lírio,
essa erva do campo, que hoje se ostenta garrida e bela, para amarelecer e
finar-se amanhã, faz jus, ainda assim, ao mesmo destino reservado a todas as
formas da vida: à evolução.
Como a planta e, com mais razão, evolvem também os animais.
Considerai — diz o Intérprete da Lei — as aves, que não semeiam nem ceifam,
contudo, Deus as alimenta.
Os lírios como as aves, estão contidos no pensamento da
Divindade.
Deus veste as flores com mais pompa do que Salomão, o mais
rico monarca que o mundo já viu, conseguiu fazê-lo. Deus alimenta as aves que,
descuidadas e alegres, fendem os ares sem jamais se preocuparem com o dia de
amanhã. Tudo está disposto, na maravilhosa obra da criação, de maneira
a assegurar o bem inigualável de viver e, de viver com alegria, porfiando na
conquista de um destino glorioso, reservado a todos os seres.
O indizível espectáculo das assombrosas produções com que a
Natureza se engalana, ao lado da sapientíssima organização que tudo rege no
cenário universal, fez aflorar aos lábios de Maeterlink esta
magnífica exclamação: "Para a frente e para o alto! eis a legenda gravada
em cada átomo do Universo."
Esta sentença do grande pensador encerra uma empolgante
verdade: na criação tudo evolve, tudo marcha, do infinitamente pequeno para o
infinitamente grande. Nada jaz no esquecimento. O Pai amantíssimo traz no seu
pensamento cada partícula da sua ilimitada criação.
Deste conceito ressalta a ideia soberana da justiça.
Imaginar Deus desacompanhado de indefectível justiça é heresia
imperdoável.
Por isso, quando o expoente da Lei passou pelo mundo,
anunciando o reino divino, predicava assim aos homens: "Buscai em
primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça: tudo o mais vos será dado por
acréscimo." Só podemos encontrar Deus através da justiça; fora
dela jamais o descobriremos. O seu reino é o da justiça, justiça que em tudo se
revela, que em tudo resplende, como a luz do primeiro dia da Génese.
E que belo aspecto, que majestoso quadro é o do Universo,
visto através do império da justiça! Nada de privilégios, nada de favoritismos.
Nada esquecido, nem mesmo o verme que rasteja! Entre o grão de pó que volteia
no ar e a estrela que refulge no azul do firmamento, uma relação qualquer
existe. Os reinos da Natureza se entrelaçam num abraço fraterno de íntima
solidariedade.
Mesmo no nosso meio, recanto mesquinho da imensidade,
vemos, por exemplo, o coral reunindo várias modalidades, que se conjugam no
reinado tríplice da planta, do mineral e do animal. Existem,
no terreno da microbiologia, certas variedades microbianas que os próprios
bacteriologistas se sentem embaraçados em classificar, se pertencentes ao reino
animal ou ao vegetal, pois são como que pontos de transição entre este e
aquele.
Ó maravilhosa manifestação do poder divino! Confundes os
sábios com os teus prodígios, prodígios diante dos quais não sabemos que mais
admirar — se a infinita diversidade da harmonia, se o esplendor da justiça que
refulge, iluminando tão sublimes e inconcebíveis milagres!
No conjunto geral, todos têm o seu lugar. Daí o dizer,
profundamente sábio, de Amado Nervo: "Tão essencial é, talvez, no ritmo do
mundo, o canto do rouxinol como o pensamento de Newton."
Deus criou o rouxinol e criou Newton, criou as aves e criou
os homens. Estes, como aquelas, são feituras de suas mãos. Portanto, é natural
que a sua solicitude se estenda sobre todos os seres, da monera humílima
ao génio mais refulgente. Todos, indistintamente, são objecto do amor divino.
Animais, homens, anjos e deuses são criaturas de um só e único gerador da vida
universal.
Aquele Deus que, no dizer de seu Verbo humanado, "derrama
chuvas sobre os bons e os maus e dardeja os raios benfazejos de seu sol sobre
os justos e os injustos", é o mesmo Deus de amor e de justiça que
veste os lírios e alimenta as aves do céu.
Assim como não admitimos que haja seres criados
especialmente para o desfrute de gozos infindos nos paramos celestiais,
enquanto nós, unos da carne e do sangue, lutamos com todas as fraquezas da
matéria e mais as contingências desfavoráveis de um meio onde imperam o mal e a
dor, assim também não concebemos como possam os seres inferiores da escala
zoológica permanecer eternamente nesse estado de inferioridade.
Onde há vida, há movimento e crescimento. E as obras de Deus
são vivas.
Queremos ver e, de facto vemos, com os nossos “olhos de
ver", a Lei bendita da evolução promovendo e determinando o progresso de
todas as criaturas, num encadeamento majestoso e extraordinário, que nos
empolga a mente e conforta o coração.
A grandeza da fé espírita, que é a cristã, ressalta
precisamente dessa solidariedade através da qual apresenta a infinita obra de
Deus, congraçando, num magnífico e soberbo amplexo, todas as formas
de vida.
Cremos em Deus! Cremos na sua justiça! "Sursum
corda" (**). Digamos com C. Wagner:
E vós, mimosas flores que a cada primavera desabrochais, sede as mensageiras da
boa nova reconfortante! Dizei aos lutadores abatidos que o êxito será feliz,
que jamais terá fim o amor! Sede na sombra, perto de nós, as testemunhas das
estrelas eternas! Levai às moradas e mesmo aos corações esse reflexo do azul do
céu, prisioneiro das vossas corolas.
/...
(*) Leon Tolstói: “Durante a década de 1870, Tolstói experimentou uma
profunda crise moral, seguida do que ele considerou um despertar espiritual
igualmente profundo, conforme descrito no seu trabalho não-ficcional A
Confissão (1882). A sua interpretação literal dos ensinamentos éticos
de Jesus, centrada no Sermão da Montanha, fez com que ele se tornasse
um fervoroso anarquista cristão e pacifista. As
ideias de Tolstói sobre resistência não-violenta, expressadas em obras como O reino de deus esta em vós (1894),
teriam um impacto profundo em figuras centrais do século 20 como Wittgenstein, William Jennings Bryan e Gandhi.[1] Tolstói também se tornou um defensor
dedicado do Georgismo, filosofia económica de Henry George, incorporada na sua
obra intelectual, sobretudo no seu último romance Ressurreição (1899).” Fonte:
Wikipédia / Wikiwand, a enciclopédia livre. Continuar a ler (i).
(**) Sursum corda – frase latina,
que significa “elevai os corações”, cita-se como exortação a sentimentos
elevados. Fonte: Léon Denis, in O Mundo Invisível e a Guerra.
"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua
doce e encantadora magia, dedico esta obra."
Pedro de Camargo
“Vinícius”
Pedro de Camargo “Vinícius” (i), Em
torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; A restauração do
Inferno (Paródia a Tolstoi) / O pecado e a atitude
pecaminosa / O criminoso e o crime / Os lírios e as aves, 10º
fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Arte da Pintura,
óleo sobre tela (1666), de Johannes Vermeer)
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