Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 15 de março de 2021

~ em torno do mestre


A restauração do Inferno ~ 

(Paródia a Tolstoi *

Satanás, o príncipe dos demónios, encarando o Nazareno, cujo corpo pendia do madeiro erguido no topo do Calvário, exclamou: “Miserável! morreste, graças às insinuações que sugeri aos Pontífices e Fariseus, mas de que me serve este triunfo vão, se a tua Doutrina já foi compreendida e assimilada por muitos que a praticam e propagam? Maldição! O meu reino está destruído para sempre. Vinguei-me, é certo, arrastando-te ao patíbulo da cruz, porém, que te importa isso, uma vez que estavas disposto ao sacrifício?”. 

Balbuciando estas últimas apóstrofes em voz estentórica, Satanás encurvou as negras asas sobre o esguio arcabouço e desapareceu por entre larga fenda que se abriu no solo, qual suicida que se precipita na voragem de um abismo. 

Caindo nas profundezas do inferno, ali permaneceu perturbado, num ambiente silencioso e tétrico onde as trevas da noite seriam sóis, se dado fosse penetrar a luz em semelhante antro, sede do reinado diabólico. 

Um século, dois séculos, três séculos se passaram. Satanás permanecia imóvel, de chavelhos entre as garras, esforçando-se por esquecer o facto que lhe havia produzido a ruína; mas, mau grado seu, não pensava noutra coisa. 

De repente, num dado momento, após largo ciclo de tempo decorrido, ouviu certo movimento em volta de si. Perscrutou atentamente e distinguiu um ruído sinistro de correntes que se arrastavam, a par de gemidos lancinantes, gritos, pragas e o ranger de dentes. 

Ergueu-se, então, Satanás nas veludas patas mal acreditando no que ouvia. Agitou a cauda, distendeu as membranosas e luzidias asas, a fim de despertar completamente daquele longo torpor e, se pôs a escutar. Era tudo verdade! O inferno mantinha o seu comércio em franca actividade. Tudo em movimento e vida nas tenebrosas masmorras de Belzebu. 

Satanás discorria consigo mesmo: Como conseguiram restabelecer o meu reino depois da vitória do Crucificado, vitória que presenciei e cujos pormenores acompanhei até ao transe derradeiro? Que teriam feito os meus sequazes? Vejamos. 

Dito isto, soltou um silvo agudo e prolongado que se repercutiu, sibilante, nas abóbadas infernais. 

Imediatamente, se abriu sobre o alto daquele subterrâneo um buraco que deixava ver labaredas vivas de um fogo rubro-azulado, precipitando-se por ali uma turbamulta de diabos de toda a casta e feitio que se vieram agrupar em torno de Satanás, como bando de urubus à volta de um corpo em putrefacção. 

Dentre eles, havia um que se postou mesmo em frente ao Chefe das trevas, mostrando-se satisfeito em ter ocasião de relatar as suas façanhas. 

Satanás, sequioso de notícias, não se fez esperar e, dirigindo-se a ele, travou o seguinte diálogo: 

— Então o inferno foi restaurado? Que foi feito da Doutrina de Jesus-Cristo? 

— Saiba, respeitável Chefe, que o nosso reinado continua firme como dantes. Diariamente, se abrem as portas do inferno para dar entrada a centenares de pecadores. 

— Zombas comigo. Então, depois da Doutrina do Cristo de Deus cujo nome tremo em pronunciar, ainda caem almas no inferno às centenas? 

— Pois é como eu digo os ensinamentos do Divino Mestre não nos incomodam, porque logramos destruí-los. 

— Mentes, cão infame. Aquela Doutrina é indestrutível. 

— Expressei-me mal, eminente Chefe. Queira perdoar-me. Nós conseguimos adulterá-la, introduzindo-lhe falsos conceitos. 

— Conta-me como isso foi. 

— Sim, adulterámo-la de tal maneira e com tanta astúcia e habilidade, que os homens adoptam a nossa doutrina, supondo ser aquela que o Chefe tanto teme. 

— Estupendo! Como conseguiram semelhante proeza? 

— Aproveitámo-nos de certas circunstâncias, conforme passo a expor. 

Logo depois da destruição do nosso império, procurámos observar os homens que praticavam a temível Doutrina do Filho de Maria. Viviam felizes. Amavam-se uns aos outros, tinham as propriedades em comum. Não havia, nem podia haver ciúmes, nem contendas, nem rivalidades entre eles. Pagavam o mal com o bem, perdoavam sempre. As pessoas que a eles se chegavam tornavam-se logo adeptas daquela Fé, tal a força viva da exemplificação. Ora, em tais condições, eram inacessíveis às nossas influências, por mais esforços que empregássemos. 

Vi tudo perdido. Mas, as tais circunstâncias, a que antes me referi, vieram em nosso auxílio. Levantou-se entre eles uma ligeira divergência sobre meras questões de formalidades. 

Assim, diziam uns que a circuncisão era indispensável. Outros se reportavam às demais cerimónias de ritual judeu, opinando que não deviam desprezá-las de todo. Falavam sobre o jejum, as abluções, o baptismo da água, a hóstia, etc. Entramos, então, em acção, sugerindo a cada grupo que nada cedesse sobre o seu modo de ver àquelas questões importantíssimas para a salvação das almas. O veneno foi-se infiltrando. O egoísmo e o orgulho começaram a despertar. As discussões acaloravam-se. Deu-se o cisma. As figuras mais importantes e que se haviam distinguido nas controvérsias instituíram um forte partido, com sede em Roma, aliando-se ao poder civil e à força política do século. Criaram um tribunal de onde passaram a decretar os novos artigos de fé. 

O povo tinha que aceitar as deliberações dos concílios reunidos em Roma. Uma onda de sangue inundou a Terra. Milhares de vítimas foram sacrificadas por se haverem insurgido contra os dogmas estatuídos. 

— Dogma? Que vem a ser esse termo, para mim desconhecido? 

— Dogma é um processo que inventámos e inspirámos aos membros do tal tribunal e que consiste em impor à razão e à consciência de outrem um absurdo qualquer, que convenha à nossa obra. 

— Esplêndido! Continua a narrativa dos factos; sem nada omitires. 

— Uma vez os acontecimentos no estado já exposto, o nosso império ficou de novo estabelecido. O inferno foi restaurado e a terrível doutrina desapareceu dentre esses escombros de dogmas, fórmulas ritos e cerimónias que conseguimos inspirar aos homens, no momento em que, esquecidos da essência e da base do Cristianismo, se preocupavam com as aparências e as formas exteriores. Eis aí, valoroso Chefe, em ligeiros traços, a história da restauração dos nossos domínios. 

Satanás, cofiando a pêra com as aguçadas garras, permaneceu por algum tempo perplexo, depois de ouvir a narrativa do seu dedicado súbdito. Despertando daquela meditação, disse: 

— Muito bem. Agiste com sabedoria: hei de gratificar-te como mereces. Nesta altura, saltaram os demais demónios, pretendendo, cada um, fazer jus a propinas, pelos seus trabalhos particulares. 

— Afastem-se, bradou Satanás, em voz imperativa; não sejam idiotas. Uma vez que a Doutrina do Crucificado foi desnaturada nas suas bases e que os homens, por isso, não fazem um juízo verdadeiro do objecto da vida, temos completo ganho de causa. Os feitos isolados carecem de importância. A base é tudo e a base foi desvirtuada. Enquanto pudermos conservar esta situação, as portas do inferno não se fecharão. Esforcemo-nos, pois, pela estabilidade deste estado de coisas. Estou inteirado de tudo e declaro dissolvida a Assembleia. Cada um para o seu posto: marchem. 

E um novo e prolongado silvo dissolveu o congresso diabólico. 


O pecado e a atitude pecaminosa ~ 

"Tendes ouvido o que foi dito: Não adulterareis. Eu, porém, vos digo que todo o que põe os seus olhos em uma mulher, para a cobiçar, já no seu coração cometeu adultério... É necessário que haja escândalos, mas ai do homem por quem o escândalo vem." (Mateus, 5:27 e 28) 

A atitude pecaminosa e o pecado consumado são igualmente passíveis de condenação pela justiça soberana do céu. 

Há capacidade para o mal, como há para o bem. O estado pecaminoso está incurso na lei divina, ainda mesmo que, por esta ou aquela circunstância, não se objective o pecado. 

A justiça da Terra julga pelas aparências. A do céu julga segundo a recta equidade. Para o julgamento do mundo faz-se mister que o mal se concretize para que exista e seja condenado. Para o juízo divino, que penetra o âmago dos corações, isso não é necessário: ele constata o mal latente e o exprobra desde logo. 

E assim se explicam as palavras de Jesus: É preciso que haja escândalo; mas ai daquele por quem o escândalo vem. Sim, é preciso que a maldade humana, oculta nos pélagos insondáveis do Espírito, se manifeste, se mostre à luz do dia para que o delinquente se reconheça como tal, e, suportando as consequências dolorosas do delito, se corrija e se converta. Enquanto a sujidade permanece escondida, o homem se julga puro; quando, porém, extravasa a lama pútrida que jazia acamada no fundo de sua alma, ele desperta para a realidade e se reconhece pecador. É o que sucedeu com o Mancebo, cuja paixão pelas riquezas mundanas Jesus tornou patente. 

Sendo a confissão da culpa o início da redenção, é preciso que haja escândalo, uma vez que o homem só se curva à evidência dos seus pecados quando estes se tornam ostensivos, já não lhe sendo possível dissimulá-los. 

Que importa que o adultério não se haja consumado, se ele existe no coração? Que importa que o homem mau não haja tirado a vida a ninguém, se ele é homicida de pensamento, se alimenta ódio contra o seu próximo e se regozija com as desventuras alheias? 

Quem diria que Judas seria capaz de vender Jesus-Cristo por trinta dinheiros, senão o mesmo Jesus, que sabia existir na alma cúpida daquele discípulo a avareza, a sede insaciável de ouro que, no dizer de Paulo, é a raiz de todos os males? Neste caso, dir-se-á: porque, então, Jesus chamou Judas para o apostolado? Justamente porque era preciso que o escândalo se verificasse, já em proveito da missão que Jesus vinha desempenhar na Terra, já no do próprio Judas, cuja redenção teve início precisamente depois da prática daquele crime de traição. O tremendo remorso de que se viu possuído é o atestado certo do despertar de sua consciência até ali mergulhada na embriaguez de paixões bastardas. 

Noutro terreno menos grave, vemos Pedro, o apóstolo arrojado, cujo temperamento ardoroso tão bem se prestava a transmitir as mensagens do céu, negar três vezes o seu Mestre, mesmo a despeito de haver sido por ele prevenido dessa prova pela qual devia passar. A negação de Pedro foi, a seu turno, um escândalo; mas, era preciso que assim sucedesse para que Pedro se acautelasse contra uma ralha do seu bondoso carácter. 

Jesus estava certo de que Pedro podia negá-lo; porem Pedro, a parte mais interessada no caso, ignorava que de tal fosse capaz. Após a consumação do acto pecaminoso, ficou-se conhecendo melhor; e, como é sabido, do conhecimento próprio depende a obra do nosso aperfeiçoamento. Pedro, no conceito de Jesus, era o mesmo, antes e depois da negação. Esta falta, ou melhor, a capacidade de praticar ou incorrer em tal género de pecado, já Jesus o havia descortinado no interior daquele apóstolo. 

De todos estes comentos ressalta grande e proveitosíssima lição de humildade, que convém assinalar. Do exposto, é forçoso concluir que existe em todos nós grandes falhas de carácter, muitas e variadas capacidades de pecar. Esta convicção, do que na realidade somos, há de nos tornar mais benevolentes, menos insensíveis para com as quedas alheias. Veremos com olhos mais complacentes as vítimas do crime; e, — como os acusadores da mulher adúltera, aos quais Jesus forçou reconhecer as próprias culpas — não nos sentiremos com ânimo de lhes atirar a primeira pedra. 


O criminoso e o crime ~ 

No conceito que geralmente se faz do mal, sob os seus vários aspectos, confunde-se o mal, propriamente dito, com aquele que o pratica. Dessa lamentável confusão advêm não pequenos erros de apreciação, quanto à maneira eficiente de se combater o mal. 

Para bem agirmos em prol do saneamento moral, precisamos partir deste princípio: o crime não é o criminoso, o vício não é o viciado, o pecado não é o pecador, do mesmo modo e pelo mesmo critério que o doente não é a doença. Assim como se combatem as enfermidades e não os enfermos, assim também se devem combater o crime, o vício e o pecado e, não o criminoso, o viciado e o pecador. 

O mal não é intrínseco ao indivíduo, não faz parte da natureza íntima do Espírito; é, antes, uma anomalia, como o são as enfermidades. O bem, tal como a saúde, é o estado natural, é a condição visceralmente inerente ao espírito. Um corpo doente constitui um caso de desequilíbrio, precisamente como um espírito transviado, rebelde, viciado, ou criminoso. 

Há tantas variedades de distúrbios psíquicos quantos de distúrbios físicos, aos quais a medicina rubrica com variadíssimas denominações. A origem do mal, quer no corpo, quer no espírito, é a mesma: uma infracção das leis de higiene. 

O homem frauda essa lei por ignorância, por fraqueza e, finalmente, pelo impulso de certas paixões que o dominam. Não devemos votá-lo ao desprezo por isso, nem, muito menos, malsiná-lo como réprobo, pois em tal caso, se justificaria se tratarem de igual modo os enfermos. 

Aliás em épocas felizmente remotas, se procedeu assim com relação aos enfermos de doenças infectuosas. Esses infelizes eram tidos como vítimas da cólera divina e, por isso, perseguidos cruelmente pela sociedade. 

A ignorância torna os homens capazes de todas as banias. Pois é essa mesma ignorância, com refreia aos transviados da senda nobre da vida, que gera a repulsa e mesmo o ódio contra os delinquentes. Os velhos códigos humanos, assim civis como religiosos, foram vazados nos moldes dessa confusão entre o acto delituoso e o seu agente. 

Quando Jesus preconizou o — amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos fazem mal — não proclamou somente um preceito de alta humanidade; proferiu uma sentença profundamente pedagógica e sábia. A benevolência, contrastando com a agressão, é o único processo educativo capaz de corrigir e regenerar o pecador. 

Cumpre notar e, o dizemos com toda a ênfase, que esta doutrina nada tem de comum com o sentimentalismo piegas, estéril e, às vezes, prejudicial. Trata-se de repor as coisas nos seus lugares. 

Para se varrer o mal da face da Terra, é preciso que se apliquem métodos naturais, conducentes a esse objectivo. O método natural é a educação do espírito. Com o velho sistema de castigar, ou eliminar as vítimas do crime e do vício, nada se logrará de positivo, conforme os factos atestam eloquentemente. 

A medicina jamais pensou na eliminação dos enfermos; toda a sua preocupação está em curar as doenças. Pois o processo deve ser o mesmo, em se tratando dos distúrbios que afectam o moral dos indivíduos. 

Felizmente, os primeiros pródromos de uma reforma radical neste sentido já se observam nos meios mais avançados. O único castigo capaz de produzir efeito na regeneração dos culpados é o que se traduz pela consequência natural dolorosa do erro ou mal cometido, consequência que recai fatalmente sobre o culpado. É necessário fazer que o delinquente reconheça esse facto e, isso se consegue por meio de instrução moral. 

Toda a punição imposta de fora, como revide social, é contraproducente, conforme os factos, na sua irretorquível expressão, têm comprovado mil vezes. 

É muito fácil encarcerar ou electrocutar um criminoso. Educá-lo é mais difícil, mais trabalhoso, demanda esforço, tempo, saber e caridade. Por isso, os Estados mandam os criminosos para a forca e as religiões remetem os pecadores, que não são da sua grei, para o inferno. 

Mas, se aquele é o único processo eficaz, procuremos empregá-lo e, não este, anti-científico, imoral e cruel. 

A educação vence e previne o mal. O homem educado conhece o senso da vida, age conscienciosamente com critério, com discernimento: é um valor social. É pela educação que se hão de vencer os vícios repugnantes (haverá algum que o não seja?), que se hão de domar as paixões tumultuarias que obliteram a inteligência e a razão. E, de tal modo, sanear-se-á a sociedade. 

Retirem-se os delinquentes do convívio social, como se faz com o pestoso que ameaça a salubridade pública; mas, como a este, se preste àquele a assistência que lhe é devida: a educação. 

E não se suponha, outrossim, que só os criminosos devem ser educados. A obra de educação é obra de salvação, é obra religiosa na sua alta finalidade, é obra científica e social na sua expressão verdadeira. Eduquem-se a todos, cada um na sua esfera, até que a educação se transforme, em cada indivíduo, numa auto-educação contínua, ininterrupta. 

Na educação do espírito está o senso da vida, está a solução de todos os seus problemas. 


Os lírios e as aves ~ 

Considerai as aves, que não semeiam nem ceifam, não têm despensa nem celeiro; contudo, Deus as alimenta; quanto mais a vós que valeis mais do que as aves. Considerai os lírios, como não trabalham nem fiam; contudo, eu vos digo que nem Salomão com toda a sua glória se vestiu como um deles. (Mateus, 6:26 a 20.) 

Esplêndidas e sublimes palavras! Como o nosso espírito se sente bem ao meditá-las! Nada está esquecido na obra imensurável da criação infinita! 

O lírio esbelto e mimoso, de pétalas multicores, cuja vida efémera se esvai através de alguns dias, tem, todavia, uma finalidade, mais alta que o simples deleitar as retinas dos nossos olhos. Deus o criou como parte integrante da extraordinária orquestra da vida. Sim, o lírio, essa erva do campo, que hoje se ostenta garrida e bela, para amarelecer e finar-se amanhã, faz jus, ainda assim, ao mesmo destino reservado a todas as formas da vida: à evolução

Como a planta e, com mais razão, evolvem também os animais. Considerai — diz o Intérprete da Lei — as aves, que não semeiam nem ceifam, contudo, Deus as alimenta. 

Os lírios como as aves, estão contidos no pensamento da Divindade. 

Deus veste as flores com mais pompa do que Salomão, o mais rico monarca que o mundo já viu, conseguiu fazê-lo. Deus alimenta as aves que, descuidadas e alegres, fendem os ares sem jamais se preocuparem com o dia de amanhã. Tudo está disposto, na maravilhosa obra da criação, de maneira a assegurar o bem inigualável de viver e, de viver com alegria, porfiando na conquista de um destino glorioso, reservado a todos os seres. 

O indizível espectáculo das assombrosas produções com que a Natureza se engalana, ao lado da sapientíssima organização que tudo rege no cenário universal, fez aflorar aos lábios de Maeterlink esta magnífica exclamação: "Para a frente e para o alto! eis a legenda gravada em cada átomo do Universo." 

Esta sentença do grande pensador encerra uma empolgante verdade: na criação tudo evolve, tudo marcha, do infinitamente pequeno para o infinitamente grande. Nada jaz no esquecimento. O Pai amantíssimo traz no seu pensamento cada partícula da sua ilimitada criação. 

Deste conceito ressalta a ideia soberana da justiça. Imaginar Deus desacompanhado de indefectível justiça é heresia imperdoável. 

Por isso, quando o expoente da Lei passou pelo mundo, anunciando o reino divino, predicava assim aos homens: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça: tudo o mais vos será dado por acréscimo." Só podemos encontrar Deus através da justiça; fora dela jamais o descobriremos. O seu reino é o da justiça, justiça que em tudo se revela, que em tudo resplende, como a luz do primeiro dia da Génese. 

E que belo aspecto, que majestoso quadro é o do Universo, visto através do império da justiça! Nada de privilégios, nada de favoritismos. Nada esquecido, nem mesmo o verme que rasteja! Entre o grão de pó que volteia no ar e a estrela que refulge no azul do firmamento, uma relação qualquer existe. Os reinos da Natureza se entrelaçam num abraço fraterno de íntima solidariedade. 

Mesmo no nosso meio, recanto mesquinho da imensidade, vemos, por exemplo, o coral reunindo várias modalidades, que se conjugam no reinado tríplice da planta, do mineral e do animal. Existem, no terreno da microbiologia, certas variedades microbianas que os próprios bacteriologistas se sentem embaraçados em classificar, se pertencentes ao reino animal ou ao vegetal, pois são como que pontos de transição entre este e aquele. 

Ó maravilhosa manifestação do poder divino! Confundes os sábios com os teus prodígios, prodígios diante dos quais não sabemos que mais admirar — se a infinita diversidade da harmonia, se o esplendor da justiça que refulge, iluminando tão sublimes e inconcebíveis milagres! 

No conjunto geral, todos têm o seu lugar. Daí o dizer, profundamente sábio, de Amado Nervo: "Tão essencial é, talvez, no ritmo do mundo, o canto do rouxinol como o pensamento de Newton." 

Deus criou o rouxinol e criou Newton, criou as aves e criou os homens. Estes, como aquelas, são feituras de suas mãos. Portanto, é natural que a sua solicitude se estenda sobre todos os seres, da monera humílima ao génio mais refulgente. Todos, indistintamente, são objecto do amor divino. Animais, homens, anjos e deuses são criaturas de um só e único gerador da vida universal. 

Aquele Deus que, no dizer de seu Verbo humanado, "derrama chuvas sobre os bons e os maus e dardeja os raios benfazejos de seu sol sobre os justos e os injustos", é o mesmo Deus de amor e de justiça que veste os lírios e alimenta as aves do céu. 

Assim como não admitimos que haja seres criados especialmente para o desfrute de gozos infindos nos paramos celestiais, enquanto nós, unos da carne e do sangue, lutamos com todas as fraquezas da matéria e mais as contingências desfavoráveis de um meio onde imperam o mal e a dor, assim também não concebemos como possam os seres inferiores da escala zoológica permanecer eternamente nesse estado de inferioridade. 

Onde há vida, há movimento e crescimento. E as obras de Deus são vivas. 

Queremos ver e, de facto vemos, com os nossos “olhos de ver", a Lei bendita da evolução promovendo e determinando o progresso de todas as criaturas, num encadeamento majestoso e extraordinário, que nos empolga a mente e conforta o coração. 

A grandeza da fé espírita, que é a cristã, ressalta precisamente dessa solidariedade através da qual apresenta a infinita obra de Deus, congraçando, num magnífico e soberbo amplexo, todas as formas de vida. 

Cremos em Deus! Cremos na sua justiça! "Sursum corda" (**). Digamos com C. Wagner: E vós, mimosas flores que a cada primavera desabrochais, sede as mensageiras da boa nova reconfortante! Dizei aos lutadores abatidos que o êxito será feliz, que jamais terá fim o amor! Sede na sombra, perto de nós, as testemunhas das estrelas eternas! Levai às moradas e mesmo aos corações esse reflexo do azul do céu, prisioneiro das vossas corolas. 

/... 

(*) Leon Tolstói: “Durante a década de 1870, Tolstói experimentou uma profunda crise moral, seguida do que ele considerou um despertar espiritual igualmente profundo, conforme descrito no seu trabalho não-ficcional A Confissão (1882). A sua interpretação literal dos ensinamentos éticos de Jesus, centrada no Sermão da Montanha, fez com que ele se tornasse um fervoroso anarquista cristão e pacifista. As ideias de Tolstói sobre resistência não-violenta, expressadas em obras como O reino de deus esta em vós (1894), teriam um impacto profundo em figuras centrais do século 20 como WittgensteinWilliam Jennings Bryan e Gandhi.[1] Tolstói também se tornou um defensor dedicado do Georgismo, filosofia económica de Henry George, incorporada na sua obra intelectual, sobretudo no seu último romance Ressurreição (1899).” Fonte: Wikipédia / Wikiwand, a enciclopédia livre. Continuar a ler (i).
(**) Sursum corda – frase latina, que significa “elevai os corações”, cita-se como exortação a sentimentos elevados. Fonte: Léon Denis, in O Mundo Invisível e a Guerra. 

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra." 
                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius” 


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; A restauração do Inferno (Paródia a Tolstoi) / O pecado e a atitude pecaminosa / O criminoso e o crime / Os lírios e as aves, 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: A Arte da Pintura, óleo sobre tela (1666), de Johannes Vermeer)

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