Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 30 de março de 2021

agonia das religiões ~


Revolução Cósmica
 

Nos meados do Século XIX deu-se uma abertura cósmica para o homem em todos os sentidos. Três séculos depois da Revolução Copérnica, que começara a demolir o geocentrismo de Ptolemeu, Kardec rompia o organocentrismo da concepção científica do homem, que tinha em seu apoio a tradição religiosa judaico-cristã. Nicolau Copérnico escrevera em latim o seu tratado De Revolucionibus Orbium Celestium (Das Revoluções das Orbes Celestes) que só foi publicado em 1543, depois de sua morte e, condenado pelo Papa Paulo V. Kardec publicou “O Livro dos Espíritos”, em 1857, que também não escapou à dupla condenação da Igreja e da Ciência. 

A concepção da vida como inerente às estruturas orgânicas foi o último refúgio do geocentrismo. Já que a Terra não era o centro do Universo, o homem sustentava a sua vaidade e o seu orgulho considerando-se o centro da vida. Isso é evidente ainda hoje, transparecendo na luta desesperada das religiões contra a concepção espírita do homem e na desesperada resistência das Ciências à evidência resultante de suas próprias conquistas. Na América e na Europa de hoje as declarações positivas de Rhine, Soal, Carington e outros sobre a existência de um conteúdo extrafísico nos seres humanos e da sua sobrevivência à morte orgânica são combatidas ferozmente e classificadas como ridículas. É um curioso espectáculo da arena intelectual, em que vemos o homem a lutar, por orgulho, para sustentar que não é mais do que pó e cinzas. 

Podem os clérigos argumentar que nas religiões não se passa o mesmo, pois os princípios religiosos sustentam a concepção metafísica do homem. Entretanto, pode aplicar-se às religiões a advertência de Descartes quanto ao perigo de se fazer confusão entre a alma e o corpo. Enquanto para o Espiritismo a alma é o espírito que anima o corpo, havendo nítida distinção entre um e o outro, as religiões admitem a unidade substancial da alma e do corpo, de tal maneira que a ressurreição se verifica no próprio corpo. A complexa teoria de matéria e de forma, de Aristóteles, deu muito pano para mangas à teologia medieval, resultando na doutrina da forma substancial, em que forma é substância e substância é forma. Em consequência, a matéria e a forma misturam-se e não se sabe como explicar ao homem sem a sua estrutura orgânica da matéria, pois chega-se mesmo a sustentar que o homem é pó e em pó se reverterá com a morte. 

Opondo-se a esta posição restritiva, que reduz o homem á condição de bicho da terra, segundo a expressão camoniana, o Espiritismo reintegra-o na dignidade de sua natureza espiritual e reajusta-lhe a imagem no panorama cósmico. A manifestação dos mortos, demonstrando que continuam vivos e actuantes noutra dimensão da vida, e que continuam a ser o que eram apesar de já não possuírem o corpo material, não deixa nenhuma possibilidade de dúvida sobre a diferença entre conteúdo e continente, entre espírito e corpo. A confusão de forma e substância resolve-se com a demonstração da estrutura tríplice do homem: o espírito é a substância, a essência necessária, o ser do primado ôntico de Heideggar; o perispírito (corpo espiritual ou bioplásmico) é a forma da hipótese aristotélica, o padrão estrutural dos biólogos soviéticos; o corpo é a matéria que nos dá o ser existencial. Essa é a tese espírita dos dois seres do homem: o ser do espírito e o ser do corpo. 

E o não-ser, como queria Hegel, não é um ente especifico e autónomo, oposto ao ser, mas inerente ao ser de relação ou existencial, ligado a ele na existência como contrafacção, determinado pela oposição da existência do ser. É o que vemos no problema da relação entre Deus e o Diabo, em que a figura do Diabo só é tomada em sentido mitológico, nunca real, como personificação das forças do passado, que pesam sobre o ser existencial, atrapalhando-lhe o desenvolvimento. O não-ser é o que não quer ser, não quer actualizar-se na existência, mas permanecer o que era, apegado aos resíduos das fases anteriores ao ser. Uma das funções do ser é absorver o não-ser para levá-lo a ser, segundo a tese da passagem do inconsciente ao consciente, de Gustave Geley

É assim que o homem se reintegra, pela concepção espírita, na realidade cósmica. Já não é um ser isolado na Criação, privilegiado pela inteligência e amesquinhado pela morte, já não é aquela paixão inútil de Sartre que o tempo consome e reduz ao nada. O homem é a síntese superior produzida pela dialéctica da evolução criadora de Bergson nos reinos inferiores da Natureza, a partir das entranhas da Terra. No seu curso de milhões e milhões de anos, a partir da mónada oculta na matéria cósmica, impulsionado na ascensão filogenética das coisas e dos serespassando pelas metamorfoses de uma ontogenia assombrosa, ele atingiu a consciência e descobriu a marca de Deus em si mesmo. Herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, segundo a expressão do Apóstolo Paulo, o homem não está condenado à frustração da morte, mas destinado à vida em abundância na plenitude do espírito. 

Não é fácil a mentalidade necrófila desenvolvida pelas religiões da morte, sob o peso esmagador da escatologia judaica e da tragédia grega, compreender essa visão nova do homem como um ser cósmico. Por isso se acusa o Espiritismo de reactivar antigas superstições e voltar à concepção da metempsicose egípcia elaborada pelo génio de Pitágoras. Não percebe essa mentalidade que a teoria pitagórica da metempsicose se impunha ao sistema do filósofo por uma intuição do seu próprio génio e pela necessidade lógica. O homem pitagórico antecipou o homem do Espiritismo na medida possível das grandes antecipações históricas. Era um homem cósmico por antevisão, tão integrado e entranhado na realidade universal que não podia escapar ao círculo vicioso das formas se não despertassem no seu íntimo os poderes secretos da mónadaO conceito do homem em Pitágoras é infinitamente superior ao das religiões actuais e ao das filosofias do desespero e da morte no nosso século. 

Quando Pitágoras falava da música das esferas não se embrenhava nas superstições, mas abria a mente dos seus discípulos para a visão verdadeira do Cosmos, que só no nosso tempo se tornaria acessível a todos. Mais tarde, Jesus também anunciaria as muitas moradas do Infinito e ensinaria o princípio da ressurreição e das vidas sucessivas, estarrecendo um mestre em Israel que não sabia dessas coisas. Já numa fase mais avançada da evolução terrena, Jesus não se referia à metempsicose, mas à palingenesia do pensamento grego, à transformação constante dos seres e das coisas no desenvolvimento do plano divino. Nesse mesmo tempo, nas antigas Gálias, os celtas, que para Aristóteles eram um povo de filósofos, divulgavam esses princípios pela voz dos seus bardos, poetas-cantores das tríades sagradas. E entre eles, como druida, Kardec se preparava para a sua missão futura na França do Século XIX. 

Vemos assim duas linhas paralelas na filogénese humana: de um lado temos a evolução do princípio inteligente a partir dos reinos inferiores da Natureza, onde a mónada, a semente espiritual lançada pelo pensamento divino, desenvolve as suas potencialidades numa sequência natural em que podemos perceber as seguintes etapas: o poder estruturador no reino mineral, a sensibilidade no vegetal, a motilidade do animal e, o pensamento produtivo no homem. A este esquema linear temos de juntar a ideia do desenvolvimento simultâneo de todas essas potencialidades, num crescendo incessante, num processo dialéctico de dinamismo tão intenso e complexo que mal podemos imaginar. Foi isso que levou Gustave Geley, o grande sucessor de Richet, a considerar a existência de todas as coisas de um dinamismo-psíquico-inconsciente que rege toda a evolução. Que abismo vai entre essa concepção da génese universal que o Espiritismo oferece e a génese alegórica das religiões! E mesmo em relação à génese científica podemos notar a superioridade da concepção espírita, que não se restringe à ideia de um processo dinâmico de forças desencadeadas no plano superficial da matéria, mas penetra nas entranhas do fenómeno para descobrir o número, a essência determinante do processo e os objectivos graduais e conscientes que são acessíveis à nossa percepção e compreensão. A criação do homem, a sua natureza e o seu destino tornam-se inteligíveis. Édipo decifra os mistérios da Esfinge. 

Apesar disso, há criaturas que acusam o Espiritismo de doutrina simplória, de simples abecê da Espiritualidade, curso primário de iniciação nos conhecimentos superiores da realidade universal. Enganam-se com a linguagem simples da obra de Kardec, através da qual o mestre francês colocou ao alcance de todos, graças a um processo didáctico dificílimo de se atingir e aplicar, os mais graves problemas que os sábios do futuro teriam de enfrentar, como estão a enfrentá-lo neste momento. A simplicidade de Kardec é tão enganosa como a de Descartes. À maneira do Discurso do Método, “O Livro dos Espíritos” é um desafio permanente à argúcia e ao bom senso dos sábios do mundo. Esses dois livros lembram-nos a simplicidade enganosa dos ensinos de Jesus, que os teólogos enredaram em proposições confusas, não compreendendo o seu sentido profundo e impedindo os simples de compreendê-los. 

Mas voltemos às duas linhas paralelas da filogénese humana, para tratar da segunda. Na primeira tivemos o processo natural de desenvolvimento das potencialidades do princípio inteligente, que podemos comparar ao crescimento da criança e aos primeiros cuidados com a sua educação. Temos de aguardar o desenvolvimento orgânico da criança para que as suas possibilidades mentais se revelem. E temos então de orientar as suas disposições naturais para o aprendizado escolar. O que vimos na primeira paralela foi exactamente esse processo. Quando as potências da mónada atingiram o desenvolvimento necessário à sua individualização definitiva, como criatura humana e, a consciência se mostrou estruturada, começou então o processo da sua maturação e do seu aprendizado. O clã, a tribo, a horda, a família e as formas sucessivas de civilização representam as etapas da segunda linha paralela, em que se verifica o desenvolvimento cultural. A inteligência, já formada, vai ser cultivada ao longo do tempo, nas gerações sucessivas. As diferenciações monádicas intuídas por Leibniz, como as diferenciações na constituição atómica verificadas pela Física actual, respondem pelas características diversas e diversificadoras das criaturas humanas em substância e forma. Essas diferenciações não são apenas individuais, mas também grupais, determinando por afinidade os grupos familiais e raciais. Os elementos da natureza, do meio físico e, as miscigenações, as misturas raciais e culturais, contribuirão para acentuar as diversificações no decorrer do tempo. Nota-se a existência de um dispositivo protector das raças e culturas em desenvolvimento, nas primeiras fases do processo, com o isolamento dos grupos afins nos continentes. Mas esse dispositivo não é artificial, entrosa-se naturalmente no processo evolutivo, em que todas as condições necessárias decorrem das variantes evolutivas. São inerentes ao processo. 

Quando os vários grupos amadurecem suficientemente e conquistaram um grau relativamente elevado de civilização, inicia-se a fase das conquistas, da dominação dos grupos mais poderosos sobre os mais fracos, numa longa e penosa elaboração de novas condições de vida e cultura. Kerschensteiner coloca o problema da cultura subjectiva e da cultura objectiva, a primeira correspondendo ao plano das ideias, da elaboração intelectual, a segunda no plano da prática, do fazer, das realizações materiais. 

Ernst Cassirer mostra como a cultura objectiva conserva nas suas obras materiais, gravadas nos objectos, as conquistas subjectivas de uma civilização morta. A Renascença, por exemplo, revela como as conquistas espirituais do mundo clássico greco-romano foram arrancadas das ruínas e dos arquivos aparentemente perdidos e reelaboradas pelo mundo moderno. Dewey, por sua vez, acentua a importância da reelaboração da experiência nas gerações sucessivas. 

Mas quando chegamos ao ponto em que hoje estamos, prontos para um salto cultural de natureza qualitativa, ainda não nos podemos considerar como obra acabada. Como observou Oliver Lodge, o homem ainda não está acabado, mas em fase talvez de acabamento. Sim, talvez, porque o nosso optimismo e a nossa vaidade podem enganar-nos a respeito do nosso estágio actual de realização. A própria situação da Terra, isolada no espaço e só agora tentando a expansão cósmica, deve advertir-nos de que ainda não estamos preparados para ingressar na comunidade dos mundos superiores. Somos ainda um obscuro e grosseiro subúrbio da Cidade de Deus e só à distância podemos vislumbrar o esplendor da luminária celeste na imensidade cósmica. Os nossos próprios meios de penetração no espaço sideral são demasiado rudimentares e precários. Os nossos corpos animais não nos permitem viver em condições superiores às da Terra. O desenvolvimento dos nossos poderes psíquicos está ainda a começar e a nossa capacidade mental, condicionada por um cérebro de origem animal, não vai muito além dos processos indutivos e dedutivos, mal abrangendo o litoral esquivo do mundo da intuição. Como assinala Remy Chauvin, nem sequer conseguimos atingir uma organização social superior, permanecendo ainda num plano de barbárie, estruturado em princípios ilógicos decorrentes da selva, com o predomínio da força sobre o direito. 

Não obstante, estamos a avançar mais rapidamente do que nunca. E se a nossa vaidade e o nosso egoísmo não nos cegarem por completo, se formos capazes de reconhecer no Espiritismo a doutrina que integra o esquema do futuro; a plataforma espiritual, política e social do novo mundo que temos de construir no planeta – já não a ferro, fogo e sangue – mas a golpes de inteligência, compreensão e fraternidade, então poderemos atingir a maturidade humana. Caso contrário retornaremos à selva, recomeçaremos de novo o nosso aprendizado desde o princípio, reiniciaremos o curso desperdiçado das instruções superiores. E já não teremos na nossa companhia os que souberam vencer, pois cabe-lhes o direito de se transferirem para os cursos universitários da Cidade de Deus, em que o Pai certamente os matriculará. A escolha pertence-nos, a decisão é nossa. Deus no-la concedeu, com a consciência, o direito e o dever das opções. 

Kardec sabia o que fazia, quando evitava a confusão do Espiritismo com as religiões dogmáticas e formalistas, sem entretanto negar ao Espiritismo o seu aspecto religioso. Teve mesmo o cuidado de não cortar em excesso as ligações da doutrina com a tradição religiosa, pois sabia que a evolução não pode sofrer, sem graves perigos de solução de continuidade. O princípio espírita do encadeamento de todas as coisas no Universo estava presente na sua mente. Poucas obras revelam uma compreensão tão clara e profunda da natureza orgânica do Universo, como a Codificação. É por isso e, não por sectarismo ou fanatismo, que não podemos fazer concessões ao passado no campo das actividades doutrinárias. Avançamos para um novo mundo que só o Espiritismo pode modelar, pois só ele revela condições para isso na sua estrutura doutrinária. Mas se não procurarmos compreendê-lo em toda a sua grandeza, certamente que o reduziremos a uma seita fanática de crentes obscurantistas. Evitemos essa queda no passado, a nós e ao mundo. Tenhamos a coragem de avançar sem muletas e sem medo para a Civilização do Espírito. 

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 13 – Revolução Cósmica, 13º fragmento desta obra
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

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