Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


1. O DUQUE DI BICCI DI M.
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   A enfermidade que vitimara o dono do palácio fora breve. Seu organismo, antes robusto, recusara-se a lutar, dominado que se encontrava pela insuportável saudade da esposa – espírito de rara e peregrina beleza, que viera ter à

Terra para alça-lo e aos seus a região superior da vida. Religiosa, fora Dona Ângela, antes tudo, piedosa, e suas mãos delicadas, raramente adereçadas de gemas, repartiam bênçãos aos que a buscavam, reservando também um dia por semana para visitar os pobres e enfermos, de alguns dos quais ela mesma cuidava, embora os servos que a seguiam nas suas romagens de misericórdia e socorro, conduzindo volumes com repasto e guloseimas, moedas e agasalhos, formassem um séquito prestimoso e dedicado.

   À sua chegada, enxugavam-se as lágrimas e a esperança refloria. Não foram poucos os que lhe receberam da bondade multiplicados pães e vestuários, unguentos e bálsamos. O médico e o sacerdote do palácio, por ordem sua, eram igualmente o esculápio e o pastor dos infelizes de todos aqueles sítios. As guerras contínuas ali haviam deixado várias gerações esfaimadas…

   Em torno do seu nome e da sua pessoa eram tecidos comentários elevados, quais grinaldas de luz, e os múltiplos beneficiários nela sabiam reconhecer a dama da caridade, a irmã da compaixão…

   O duque, a seu turno, rejubilava-se, apesar de, zeloso, preocupar-se com a sua guarda, nas excursões fora dos muros da propriedade.

   Pela estrada real, a Via Cassia, que conduzia de Siena a Florença, não eram poucos os bandoleiros em surtidas constantes, e as escaramuças contínuas com os salteadores exigiam que todos os senhores de terras mantivessem pequenos exércitos de mercenários, nos quais, no entanto, a abnegação e o dever estavam relacionados com o salário que o opositor lhes pudesse oferecer.

   Como o bem aureola e defende todo aquele que o esparze, jamais qualquer dificuldade obstara a nobre senhora de realizar o exercício santo do amor fraterno. Parecia que no ministério da Caridade suas forças se multiplicavam e os dons da alegria lhe refundiam ânimo e tranquilidade.

   Quando da extinção da “Casa Médici”, em 1737, que passara o poder do grão-ducado da Toscana a Francisco de Lorena, esposo de Maria Teresa da Áustria – Segunda Casa de Lorena –, a Senhora Ângela, ao invés de quebrantar o ânimo mais o aumentara, tornando-se o estimulo constante e o encorajamento do esposo, que resolvera reagir e preservar o património, evitando evadir-se da região, como ocorrera a outros membros da família.

   Antes da derrocada, todo o ducado readquirira com Cosme II o esplendor de outros tempos, embora o seu carácter fraco e pusilânime, sendo, pois, devedor de muitas das suas glórias de então à  tradicional família, descendente de Bonagiunta, o comerciante florentino que enriquecera nas transacções internacionais. De certo modo, o fausto e as extravagâncias de Cosme III, que sucedera, foram responsáveis pela decadência da Toscana, a vergonha e a quase miséria dele mesmo.

   Com a elevação moral da esposa e o seu carácter inquebrantável, o duque reconquistara, também, o prestígio em torno do nome, enquanto que, amado, prosseguia, nos domínios em que se erguia a vila palaciana, como um reduto remanescente de mentes esclarecidas dos dias idos, não porém, apaixonado.

   Desaparecida Ângela, as sombras da tristeza e do acabrunhamento desceram sobre o vetusto solar, cuja beleza somente se destacava através da alacridade infantil das três crianças, quando dos folguedos nos jardins ou nos corredores atapetados do majestoso edifício.

   A saudade e a melancolia, cultivadas, são também sementes venenosas que aniquilam a seiva da vida no seio em que se agasalham. Parasitas, nutrem-se matando. Assim, quando a enfermidade surpreendeu o duque di Bicci di M., as forças morais se recusaram a duelar e o corpo se permitiu deixar vencer.

   Especialmente convidado para as exéquias, o Bispo de Siena fez-se presente, acolitado por um séquito de ociosos, e o velório transformou-se em local em que sobressaíam o arrivismo e os seus sequazes, atendidos através de repasto abundante, tendo Lúcia no comando dos serviços, duramente vigiada por Girólamo, que maquinava planos sórdidos, e por Assunta, que se passava por sua amiga, enquanto os convidados se deixavam conduzir pelo vinho, consumindo os acepipes… A bulha era geral e o silêncio somente era feito pelo corpo desencarnado. As crianças adormeceram a custo, ajudadas por uma serva leal e da confiança de Lúcia. O solar mergulhava em dor, na alma de uns, e enchia de cobiça os espíritos infelizes de muitos.

   A longa madrugada começa a despertar sobre o burgo encharcado das chuvas contínuas, enquanto Girólamo, maquiavélico, encoraja os próprios programas inditosos.

   Enquanto Lúcia serve ao Bispo, que se locupleta em farta bandeja de doces e chá quente, Girólamo, se lhe acerca, simulando afectada gentileza, e da palestra incipiente, despropositada, sonda, maledicente, o ocioso religioso, quanto ao que consta sobre o testamento do tio.

   Um tanto estimulado pelo capitoso vinho, ingerido em contínuas libações ao longo da noite, o sacerdote se refere à tutela que Lúcia exercerá sobre as crianças, com plenos poderes ao património, até que aquelas alcancem a maioridade. Encorajado pelo moço venal, comenta da sua estranheza quanto à atitude generosa do senhor em referência a uma jovem sem linhagem nem fortuna. Lamenta a situação do rapaz, que continuará sob mesada, a ser distribuída pela testamentária, sob fiscalização do poder público, e diz-se revoltado por a Igreja não ter sido aquinhoada, recordando-se, enfático, de que algumas décadas entes os religiosos eram prestigiados em toda a Toscana, graças à família…

   Lisonjeado o moço, o representante religioso adianta que se este fora herdeiro tudo, certamente, seria diverso.

   Girólamo, em febre, sorri, corado, inquieto, e medita.

   O ódio lhe desperta as paixões subalternas, o ciúme o enceguece e o desespero o asfixia.

   Mentalmente, tem o plano definido: não poderá falhar. Tudo concorre para o seu êxito. Tem mesmo a impressão de que conta com o conivente apoio do prelado ambicioso.

   Intimamente gargalha. Entre dentes, murmura: “Pagar-me-ás, fera peçonhenta e espoliadora! Pagar-me-eis, tu e o vil Senhor di Bicci di M. Não suporto quase esperar! Pagar-me-eis logo mais. Paciência! Espera, Girólamo. Acalma-te!”.

   Raia o dia nevoento e demorado. O calendário assinala: 22 de Dezembro de 1745.  


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 1. O DUQUE DI BICCI DI M. (fragmento 3 de 3) psicografia de DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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