Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 3 de setembro de 2011

Aos corações escolhidos

  
 O budismo penetrou na China e lhe assimilou as antigas crenças. Continuou as relações estabelecidas com os mortos.
   Aqui está um exemplo dessas evocações e da aparência que toma a alma para se tornar visível a olhos mortais.
   O Sr. Estanislau Julien, que traduziu do chinês a história de Hiuen-Thsang, que viveu pelo ano 650 da nossa era, narra assim a aparição do Buda, devida a uma prece daquela santa personagem.
   “Tendo penetrado na caverna onde, animado de fé profunda, vivera o grande iniciador, Hiuen-Thsang se acusou de seus pecados, com o coração transbordante de sinceridade. Recitou devotamente suas preces, prosternando-se a cada estrofe. Depois de fazer uma centena dessas reverências, viu surgir uma claridade na parede oriental da caverna.
   Tomado de alegria e de dor, recomeçou ele as suas saudações reverentes e viu brilhar e apagar-se qual relâmpago uma luz do tamanho de uma salva. Então, num transporte de júbilo e amor, jurou que não deixaria aquele sítio sem ter visto a sombra augusta do Buda. Continuou a prestar-lhe suas homenagens e, ao cabo de duzentas saudações, teve de súbito inundada de luz toda a gruta e o Buda, em deslumbrante brancura, apareceu, desenhando-se-lhe majestosamente a figura sobre a muralha. Ofuscante fulgor iluminava os contornos da sua face divina. Hiuen-Thsang contemplou em êxtase, durante largo tempo, o objecto sublime e incomparável de sua admiração. Prosternou-se respeitosamente, celebrou os louvores do Buda e espalhou flores e perfumes, depois do que a luz se extinguiu. O brâmane que o acompanhara ficou tão encantado quanto maravilhado daquele espectáculo. “Mestre – disse ele –, sem a sinceridade da tua fé e o fervor dos teus votos, não terias presenciado tal prodígio.”
   Essa aparição lembra a transfiguração de Jesus, quando se prostraram Moisés e Elias. Os Espíritos superiores têm um corpo de esplendor incomparável, por isso que a sua substância fluídica é mais luminosa do que as mais rápidas vibrações do éter, como poderemos verificar pelo que se segue.

A Pérsia

   No antigo Irã, depara-se com uma concepção toda especial acerca da alma. Zoroastro pode reivindicar a paternidade da invenção do que hoje é chamado o eu superior, a consciência subliminal e, doutro ponto de vista, a paternidade da teoria dos anjos guardiães.
   É conhecida a doutrina do grande legislador: abaixo do Ser Incriado, eterno, existem duas emanações opostas, tendo cada uma sua missão determinada: Ormuzd tem o encargo de criar e conservar o mundo; Arimã o de combater Ormuzd e destruir o mundo, se puder. Há, igualmente, dois génios celestes, emanados do Eterno, para ajudar a Ormuzd no trabalho da criação; mas, há também uma série de Espíritos, de “génios”, de ferúers, pelos quais pode o homem crer que tem em si algo de divino. O ferúer, inevitável para cada ser, dotado de inteligência, era, ao mesmo tempo, um inspirador e um vigia: inspirador, por insuflar o pensamento de Ormuzd no cérebro do homem; vigia, por ser guardião da criatura amada do deus. Parece que os ferúers imateriais existiam, por vontade divina, antes da criação do homem e que cada um deles sabia, de antemão, qual o corpo humano que lhe era destinado.
   A missão desse ferúer consistia em combater os maus génios produzidos por Arimã, em conservar a humanidade.
   Após a morte, o ferúer se conserva unido “à alma e à inteligência”, para sofrer um julgamento, receber a sua recompensa ou o seu castigo. Todo homem, todo Ized (génio celeste) e o próprio Ormuzd tinham o seu ferúer, o seu frawaski, que por eles velava, que se devotava à sua conservação.
   De certas passagens do Avestá se há podido deduzir que, depois da morte do homem, o ferúer voltava ao céu, para desfrutar aí de um poder independente, mais ou menos extenso, conforme fora mais ou menos pura e virtuosa a criatura que lhe estivera confiada. De todo independente do corpo humano e da alma humana, o ferúer é um génio imaterial, responsável e imortal. Todo ser teve ou terá o seu ferúer. Em tudo o que existe, há um ferúer certo, isto é, alguma coisa de divino. O Avestá invoca o ferúer dos santos, do fogo, da assembléia dos sacerdotes, de Ormuzd, dos amschaspands (anjos celestes), dos izeds, da “palavra excelente”, dos “seres puros”, da água, da terra, das árvores, dos rebanhos, do tourogérmen, de Zoroastro, “em quem, primeiro, Ormuzd pensou, a quem instruiu pelo ouvido e ao qual formou com grandeza, em meio das províncias do Irã”.
   Na Judéia, os hebreus, ao tempo de Moisés, desconheciam inteiramente qualquer ideia de alma.  Foi preciso o cativeiro de Babilónia, para que esse povo bebesse, entre os seus vencedores, a ideia da imortalidade, ao mesmo tempo que a da verdadeira composição do homem. Os cabalistas, intérpretes do esoterismo judeu, chamam Nephesh ao corpo fluídico do Princípio pensante.

A Grécia

   Os gregos, desde a mais alta antiguidade, estiveram na posse da verdade sobre o mundo espiritual. Em Homero, é frequente os moribundos profetizarem e a alma de Pátroclo vem visitar Aquiles na sua tenda.
   “Segundo a doutrina da maioria dos filósofos gregos, cada homem tem por guia um demónio particular (eles davam o nome de daimon aos Espíritos), que lhe personifica a individualidade moral.” 
   A generalidade dos humanos era guiada por Espíritos vulgares; os doutos mereciam visitados por Espíritos superiores (Id.). Thales, que viveu seis séculos e meio antes da nossa era, ensinava, tal qual na China, que o Universo era povoado de demónios e de génios, testemunhas secretas das nossas acções, mesmo dos nossos pensamentos, sendo também nossos guias espirituais.  Até, desse artigo, fazia um dos pontos capitais da sua moral, confessando que nada havia mais próprio a inspirar a cada homem a necessidade de exercer sobre si mesmo essa espécie de vigilância a que Pitágoras mais tarde chamou o sal da vida.
   Epimênides, contemporâneo de Sólon, era guiado pelos Espíritos e frequentemente recebia inspirações divinas. Sustentava fortemente o dogma da metempsicose e, para convencer o povo, dizia que ressuscitara muitas vezes e que, particularmente, fora Éaco.
   Sócrates   e, sobretudo, Platão, como achassem excessivamente grande a distância entre Deus e o homem, enchiam-na de Espíritos, considerando-os génios tutelares dos povos e dos indivíduos e os inspiradores dos oráculos. A alma preexistia ao corpo e chegava ao mundo dotada do conhecimento das ideias eternas. Semelhante à criança, que no dia seguinte há esquecido as coisas da véspera, esse conhecimento ficava nela amodorrado, pela sua união com o corpo, para despertar pouco a pouco, com o tempo, o trabalho, o uso da razão e dos sentidos. Aprender era lembrar-se; morrer era voltar ao ponto de partida e tornar ao primitivo estado: de felicidade, para os bons; de sofrimento, para os maus.
   Cada alma possui um demónio, um Espírito familiar, que a inspira, com ela se comunica, lhe fala à consciência e a adverte do que tem que fazer ou que evitar. Firmemente convencido de que, por intermédio desses Espíritos, uma comunicação podia estabelecer-se entre o mundo dos vivos e os a quem chamamos mortos, Sócrates tinha um demónio, um Espírito familiar, que constantemente lhe falava e o guiava em todas as circunstâncias.
   “Sim – diz Lamartine – ele é inspirado, segundo o afirma e repete. Por que nos negaríamos a crer na palavra do homem que dava a vida por amor da verdade? Haverá muitos testemunhos que tenham o valor da palavra de Sócrates prestes a morrer? Sim, ele era inspirado... A verdade e a sabedoria não emanam de nós; descem do céu aos corações escolhidos, que Deus suscita, de acordo com as necessidades do tempo.” 
   O claro génio dos gregos percebeu a necessidade de um intermediário entre a alma e o corpo. Para explicar a união da alma imaterial com o corpo terrestre, os filósofos da Hélade reconheceram a existência de uma substância mista, designada pelo nome de Ochema, que lhe servia de envoltório e que os oráculos denominavam o veículo leve, o corpo luminoso, o carro subtil. Falando daquilo que move a matéria, diz Hipócrates que o movimento é devido a uma força imortal, ignis, a que dá o nome de enormon, ou corpo fluídico.

GABRIEL DELANNE, A Alma é Imortal, Primeira parte A observação, Capítulo I Golpe de vista histórico – As crenças antigas (fragmento 1 de 3).
(imagem: Tête Divine, pintura de Edgard Maxence - 1907)

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