Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 30 de julho de 2012

O Espiritismo na Arte~


Quinta lição, de O Esteta

– Projecção de quadros e formas esculturais no espaço

|10 de Janeiro de 1922|

“Em nossas últimas lições falamos dos diferentes graus de inspiração capazes de se exteriorizar e de formar pinturas, imagens espirituais tornadas concretas para os seres que habitam o vosso mundo, e sobre os diversos pontos do espaço celeste.

Com as lições preliminares tendo mostrado a ginástica cerebral que se realiza em cada ser organizado, de forma consciente ou inconsciente, vamos rever qual é o fenómeno que, na volta ao espaço, faz mover, por reflexo, esses mesmos feixes fluídicos, acumulados sob a forma de conhecimentos nos corpos carnais.

Um escultor regressa à vida do espaço. Ele revê todas as suas existências passadas e, geralmente, estas últimas tiveram como centro de trabalho (centro, no sentido absoluto do termo) lugares em que a própria natureza induz à beleza. No espaço, esse ser não poderá afastar do seu espírito os pensamentos, a visão das obras criadas por seus semelhantes ou por ele mesmo. Instintivamente, seu espírito ainda flutuará em torno dos monumentos, das estátuas que ele gostava de contemplar durante sua vida material. Se passou sua existência em um determinado país, a ele retornará; se passou uma existência anterior em um outro país, a ele será atraído, instintivamente, por suas lembranças.

Quando em repouso, no espaço, desfrutará de uma real beatitude, e projectará, em raios de todas as cores, quadros, formas esculturais do mais maravilhoso efeito. Poderá unir as artes gregas, romanas, latinas e gaulesas e reviver horas inesquecíveis para ele. Todas as épocas de sua arte serão representadas, segundo a duração e o género das evoluções realizadas.

Um dia, no meio astral em que se encontra, composto de moléculas especiais, ele desejará fazer os espíritos menos avançados tirarem proveito dessas mais belas projecções. Com a ajuda de alguns amigos, seu pensamento pedirá a Deus para atrair espíritos profanos que têm o desejo de se elevar, mas cujos conhecimentos artísticos são medíocres. Para empregar vossos termos, ele quererá vulgarizar sua arte e atrair para si um público de seres sem dúvida distintos, mas pouco eruditos. O espírito sempre inventivo dos nossos artistas criará pórticos, abóbadas, unindo a arte grega à arte romana, a arte romana à arte ogival, e que constituirão graciosos monumentos. Esses monumentos, erigidos fluidicamente, utilizam moléculas relativamente sólidas, não a ponto de se poder ir de encontro a elas, mas essas moléculas, à passagem dos espíritos, produzem neles uma impressão quase de êxtase.

Dessa forma, os seres fluídicos podem se encontrar em presença de arquitecturas cujos planos a vossa geometria, muito pobre, não me pode ajudar a explicar.

Essas obras de arte podem permanecer fixas no espaço o tempo que a vontade do artista desejar, no entanto ele sente que seu orgulho tem limites; em um determinado momento, sua vontade, instintivamente, projectará um outro quadro e o monumento precedente desaparecerá para dar ao azul celeste toda a sua limpidez, esperando que uma nova obra se produza e se sustente.

As moléculas que compõem esses trabalhos de arquitectura são, em si mesmas, maleáveis e obtidas na matéria astral; mas o pensamento do artista, como todos os outros sentimentos, irisam esses trabalhos de cores tais que todos os seres que contemplam essas obras experimentam sensações tão mais vivas quanto mais acentuada for a elevação de cada um.

Os modelos são obtidos tanto de lembranças que emanam da vossa Terra como de outros mundos mais ou menos avançados. Eu vos falarei desses mundos em último lugar.

Se a escultura é interessante, a pintura não o é menos. Existem gradações entre a escultura, a pintura, a música e a arte da palavra, ou da filosofia escrita ou falada.”
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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte III Quinta lição – Projecção de quadros e formas esculturais no espaço, 12º fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

O porquê da vida ~


Àqueles que sofrem |

   É a vocês, ó meus irmãos e irmãs em humanidade, a todos vocês a quem o fardo da vida tem curvado, a vocês a quem as ásperas lutas, os cuidados, as provas têm sobrecarregado, que dedico estas páginas. 

É à intenção de vocês, aflitos, deserdados deste mundo, que escrevo. 

Humilde pioneiro da verdade e do progresso, coloco nelas o fruto de minhas vigílias, de minhas reflexões, de minhas esperanças, de tudo que me tem consolado, sustentado na minha caminhada aqui em baixo.

   Possam vocês aí encontrar alguns ensinamentos úteis, um pouco de luz para aclarar os seus caminhos. Possa esta obra modesta ser para seus espíritos entristecidos aquilo que a sombra representa para o trabalhador queimado de sol, aquilo que representa, no deserto árido, a fonte límpida e refrescante se ofertando aos olhos do viajante sedento!
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Léon Denis, O Porquê da vida  Àqueles que sofrem, 1º fragmento da obra.
(imagem: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Inquietações Primaveris~

Os Meios de Fuga | |

A prova de que o homem sabe, intuitivamente, que a morte não é o fim do seu ser, da sua personalidade e nem mesmo da sua existência, está na procura desesperada dos meios de fuga a que se entrega de ouvidos fechados a todas as advertências. 

Ele não quer morrer, mesmo quando se atira do décimo andar de um edifício sobre a calçada. 

Quer apenas fugir, escapar de qualquer maneira à pressão de um mundo que nada mais lhe oferece do que opressão, crimes, atrocidades de toda a espécie. 

Mario Mariani, em A Casa do Homem, considerou a casa como uma jaula de que a fera humana luta por evadir-se. 

É lá dentro da jaula, na casa que devia ser um recanto de paz, que os atritos familiares e as preocupações da incerteza e da insegurança do mundo convulsionado, bem como as injustiças brutais da estrutura social, pesam esmagadoramente sobre ele. 

Seus nervos vão cedendo ao martelar incessante das preocupações, ao gemido longínquo dos torturados pelos carrascos, dessa lepra moral que se espalhou por todo o planeta após a última guerra mundial – a tortura. 

Por todos os lados ele sente a coação e as ameaças de novas coações em perspectiva e, como se as chamas de um incêndio o cercassem por todos os lados, atira-se pela janela. 

Mariani era um sonhador, um ideólogo da liberdade e da paz, da fraternidade humana completa, sem os limites odiosos das discriminações sociais e políticas. 

Escreveu duas séries de romances em que expôs o seu pensamento generoso sobre um mundo mais admirável e generoso que o de Huxley

Fugiu da Itália, sua pátria, com a família, para os Estados Unidos, quando o Fascismo a dominou. 

Na América livre sentiu-se prisioneiro da miséria, viu de perto e sentiu em sua própria carne os desníveis aviltantes de uma sociedade de nababos e miseráveis. 

Certa noite de fome e frio, em New York, resolveu suicidar-se e matar esposa e os filhos, para não deixá-los nas garras de um mundo cristão sem clemência. 

Um amigo o salvou arranjando-lhe um emprego. 

Na série Os Romances da Destruição ele pôs a nu toda a tragédia dos tempos modernos, e na série Os Romances da Reconstrução toda a beleza dos seus sonhos

Quixote italiano do amor e da liberdade, andou pelo mundo atacando moinhos de vento e veio morrer no Brasil, na década de 30. 

Seu nome se apagou na História, sob a invasão dos nomes de bandoleiros políticos consagrados como heróis. 

Mas os que o conheceram e os que o leram guardam no coração e na memória a imagem do verdadeiro herói, cavaleiro sem jaça da Causa da Humanidade. 

Ele denunciou, por toda parte, a exploração e a miséria que um poeta modernista italiano traduziu assim: “Itália, parola azzurra bisbilhata su l’Infinito.”

Mariani imaginava a Itália do futuro coberta de casas de vidro, de paredes transparentes (porque ninguém teria nada a esconder nem a temer) cercadas de rosais perfumados, em que suas filhas viveriam alegres e felizes, com namorados jovens como elas, livres do perigo do casamento interesseiro com velhotes endinheirados. Um mundo azul e livre, como Plotino sonhara estabelecer na Campanha Itálica, nos moldes da República de Platão. Foi o último cavaleiro errante do mundo das utopias.

Depois dele, desabou sobre o mundo real a tempestade da II Guerra Mundial, desencadeada pelos dragões funambulescos e sanguinários da opressão e da violência. E no rastro de cadáveres, sangue e maldição deixada pela guerra abriram-se as veredas da fuga: o suicídio de Stefan Zwaig no Rio, o assassinato de Gandhi na Índia, a enxurrada dos tóxicos, as revoltas de estudantes, as invasões e destruições vandálicas de Universidades em nome da ordem e da força contra o direito, as aberrações sexuais justificadas pela Psicologia da Libertinagem, a mentira oficializada no plano internacional, os assaltos universais, os sequestros ao serviço da política de extorsão e assim por diante, no rol das monstruosidades sem limites.

De tal maneira o mundo envilecido se desfigurou que teólogos desvairados proclamaram a Morte de Deus e anunciaram fanfarronescos o advento do Cristianismo Ateu nos sofismas de brilhareco escuso dos livros pensados e escritos na pauta do sem-sentido.

As bombas voadoras de Hitler transformaram-se nos foguetes espaciais da maior epopeia moderna: a conquista do Cosmos. E, por sua origem e seus objectivos suspeitos, a epopeia cósmica, nascida das cinzas quentes da guerra, no ninho de ovos explosivos das bombas atómicas e sub atómicas, integrou-se no campo dos meios de fuga. Era a fuga desesperada do homem para as estrelas, não para buscarem a paz e a harmonia, a Justiça e o Direito, a Verdade e a Dignidade, mas para permitirem a mais fácil e segura destruição do planeta através de foguetes criminosos que, em baterias celestes instaladas na Lua e nos planetas mais próximos, pudessem aniquilar a Terra em apenas alguns segundos de explosão nuclear. Já que a morte era o nada, a nadificação possível da vida, era também conveniente que os guerreiros da Era Cósmica dessem realidade efectiva e moderna aos raios de Júpiter disparados sobre o mundo. Não foi da mente supra liminar dos forjadores de foguetes, mas do inconsciente profundo, marcado pelas introspecções do terror, do desrespeito ao homem, do arbítrio e da força, do esmagamento mundial da liberdade, da coação extremada que surgiu e se impôs à consciência supra liminar o projecto da conquista diabólica dos espaços siderais. Na base e no fundo dessas maquinações gloriosas podemos detectar as raízes do desespero e da loucura, a que a simples idealização da morte como nadificação total – roubando ao homem suas esperanças e seus anseios –, desencadeou a corrida espacial ao lado da corrida armamentista das grandes potências mundiais.
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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 5 Os Meios de Fuga 1 de 2, 8º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


V
A Justiça Divina e a Actual Guerra

|14 de julho de 1915|

   Faz um ano que as provações de uma guerra sem precedentes desabam sobre a França.

   Estende-se sobre nossa pátria um véu de tristeza e de luto, e muitos de nossos irmãos choram por seus entes queridos.

   Diante de tantos sofrimentos, é necessário voltar nossos pensamentos para os princípios divinos que comandam as almas e as coisas.

   A solução dos inúmeros problemas que a actualidade apresenta só encontraremos na Doutrina Espírita; é nela que acharemos as consolações necessárias para diminuir nossa dor.

   Abalados pelos acontecimentos, vários amigos me indagaram: “Por que Deus permite tantos crimes e tantas calamidades?”

   Antes de tudo, Deus respeita o livre arbítrio humano, porque ele é o instrumento de todo o progresso e a condição fundamental de nossa responsabilidade moral. Sem liberdade e sem livre arbítrio não haveria bem nem mal e, consequentemente, não poderia existir progresso.

   Esse é o princípio de liberdade que forma, ao mesmo tempo, a prova e a grandeza do homem, conferindo-lhe o poder de escolher e de agir; é a fonte dos esplendores morais para quem decide progredir.

   Na presente guerra não se tem visto algumas pessoas descerem abaixo da animalidade e outras, pela dedicação e sacrifício, alcançarem as alturas do sublime?

   Sabemos que, para os espíritos inferiores, como o são a maior parte dos que povoam a Terra, o mal é o resultado inevitável da liberdade. Porém, do mal cometido, Deus sabe, em sua profunda e infinita sabedoria, extrair um bem para a humanidade. Colocado acima do tempo ele domina o correr dos séculos, enquanto nós, em nossa transitória existência, temos dificuldades em apreender o entrosamento das causas e seus efeitos.

   Mais cedo ou mais tarde, entretanto, a hora da eterna justiça soará inevitavelmente.

   Acontece que, muitas vezes, os homens se esquecem das leis divinas, do objecto da vida, resvalam na ladeira do sensualismo e se atolam na matéria. Então, tudo o que constituía a beleza da sua alma se encobre e desaparece, dando lugar ao egoísmo, à corrupção e aos desregramentos em todas as suas formas. Era o que acontecia entre nós, desde muito tempo; a maior parte dos nossos contemporâneos já não possuía outro ideal que a riqueza e os prazeres.

   O alcoolismo e a devassidão tinham secado os mananciais da vida e, para tantos excessos, sobrava apenas um remédio: o sofrimento! Sabemos que as más paixões emanam fluidos que se acumulam, paulatinamente, e terminam se transformando em catástrofes e calamidades: daí a guerra actual.

   Todavia, não faltaram avisos, mas os homens permaneceram insensíveis às vozes celestes.

   Deus permitiu que ela explodisse porque sabe que a dor é o único meio eficiente para reconduzir o homem às coisas mais sadias e os sentimentos mais generosos.

   Entretanto, a ira do inimigo foi contida e, não obstante o talento da sua organização e do meticuloso preparo, a Alemanha foi detida na realização dos seus planos. Sua crueldade feroz e sua ambição sem limites despertaram os poderes celestes contra ela.

   Após um trabalho lento de desagregação do antimilitarismo, a vitória do Marne e o entusiasmo de nossos soldados só se explicam pela interferência das forças invisíveis. Como, porém, essas forças sempre estão em actividade, apesar dos sombrios prognósticos actuais, conservamos intacta a nossa confiança no porvir.
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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, V – A Justiça Divina e a Actual Guerra, 1 de 4 14º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sábado, 21 de julho de 2012

pensamento crítico ~


Um gesto de fraternidade

   A explicação do fenómeno religioso como simples “humanização da natureza”, como a “projecção do homem ao infinito”, é mais literária do que filosófica, não tendo absolutamente nada de científica. O próprio Marx quase o reconheceu quando acrescentou à tese contemplativa de Feuerbach os seus princípios dinâmicos. Perdoa-se como um dos muitos equívocos, através dos quais se elabora dialecticamente o conhecimento. Admitir-se, porém, a sua perpetuação no mundo filosófico seria um crime de lesa-cultura.

   Primeiro, por que não há nenhuma base positiva, experimental ou de observação, para comprovar essa teoria de emergência; depois, porque há uma infinidade de provas em contrário, suficientemente documentadas, com base na mais rigorosa investigação científica, feita por cientistas insuspeitos, tão materialistas e descrentes como Feuerbach, Marx, Engels e os seus continuadores.

   Ora, parece evidente que uma teoria, contraditada pelos factos, mormente através da investigação científica, não apenas uma, mas milhares de vezes, está irremediavelmente falida. Por outro lado, a afirmação de que “a sociedade burguesa tem interesse na explicação religiosa, teológica, dos fenómenos sociais” (Tcheskiss) nada tem a ver com a realidade do fenómeno religioso em si, como a realidade das alterações fisiológicas não se invalida nem se obscurece em virtude da exploração dos charlatães da medicina. Além disso, é preciso notar que a filosofia espírita é tão contrária à teologia e às explicações teológicas da natureza quanto as próprias ciências naturais, não correspondendo, por isso mesmo, aos interesses de classe da burguesia.

   No seu trabalho Dialéctica e Metapsíquica, afirma Humberto Mariotti: “A simples análise de um único caso de materialização deita por terra o raciocínio filosófico, e queiram ou não, uma nova ideia do ser e do mundo começará a mover-se na mente do pensador.” Com isto, sim, temos uma afirmação científica, devidamente comprovada pelos factos, de que nos dão exemplo os casos clássicos de Richet, Myers, Lodge, Lombroso, materialistas convertidos ao espiritualismo, diante da realidade incontrovertível da fenomenologia espírita. Quando, pois, o materialismo dialéctico reduz à mesma pauta da superstição primitiva a religião ancestral, com as suas formas de exploração social, e os modernos trabalhos de pesquisa científica no terreno da sobrevivência, comete uma heresia filosófica de proporções catastróficas. Em outras palavras, reduz a tese dialéctica à antítese do dogma-de-fé, traindo a síntese ou fechando a porta.

   Não há, ao mesmo tempo, nenhuma justificativa para os homens que, “bem situados” no mundo capitalista, deturpam os factos históricos e a própria realidade presente, para sustentar a velha tese superada do materialismo científico, graças ao costumeiro processo da exclusão, ainda agora repetido pelos behavioristas e pavlovistas. Nessa categoria de irremissíveis estão o Dr. Emilio Troise, com o seu Materialismo Dialéctico, e entre nós os drs. Murilo de Campos, Leonídio Ribeiro, Henrique Roxo, – o humorista científico do “delírio espírita episódico” – e, ultimamente, como a mais recente contribuição da “cultura” indígena à luta contra o Espiritismo, o professor Silva Mello, com o seu Mistérios e Realidades Deste e do Outro Mundo. Homens de ciência, que preferem negar as experimentações rigorosamente científicas de personalidades como Crookes e Richet, ou desnaturá-las e deformá-las, para sustentar uma teoria sem base, ou melhor, cuja suposta base se esvai aos olhos de todos, com a própria evaporação da matéria, na era da física nuclear.

   O livro de Mariotti não é, por isso mesmo, apenas um esforço no sentido de colocar a verdade filosófica e científica da sobrevivência no seu devido lugar. Mais do que isso, é um gesto de fraternidade, um apelo do coração a esses transviados do conhecimento, na esperança de salvá-los, ainda, do implacável naufrágio da história.
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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico – Um gesto de fraternidade, 4º fragmento da obra.
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

a pedra e o joio~


O método 
de Kardec |

   Kardec nasceu no início do século XIX, numa fase de crescimento do processo cultural no mundo. Formou-se na cultura do século, sob a orientação de Pestalozzi, o mestre por excelência. Especializou-se em Pedagogia, que podemos chamar de Ciência da Cultura, e até aos cinquenta anos de idade exerceu intensas actividades pedagógicas, tornando-se o sucessor de Pestalozzi na Europa. Não se fez padre nem pastor, mas cientista e filósofo, na despretensão e na humildade de quem não procurava elevadas posições, mas aprimorar os seus conhecimentos. Adquiriu no estudo, nas actividades teóricas e na prática, o mais amplo conhecimento dos problemas culturais do seu tempo.

   Vivendo em Paris, considerada então como o cérebro do mundo, impôs-se ao consenso geral como homem de elevada cultura, um intelectual por excelência. Colocado num momento fundamental da evolução terrena, viu e viveu o drama cultural da época. E só aos 50 anos de idade, maduro e culto, deparou com o problema crucial do tempo e procurou solucioná-lo em termos culturais. Esse problema se resumia no seguinte: a cultura clássica, religiosa e filosófica, desabava ao impacto do desenvolvimento das Ciências, sem a menor capacidade para enfrentar o realismo científico e salvar os seus próprios valores fundamentais.

   Formado na tradição cultural do Século XVIII, herdeiro de Francis Bacon, René Descartes e Rousseau, compreendeu claramente que o problema do seu tempo repousava na questão do método. Os fenómenos espíritas se verificavam com intensidade, como uma espécie de reacção natural aos excessos do empirismo, no bom sentido do termo, que era a aplicação do método experimental a todo o conhecimento. A tradição espiritual rejeitava esses excessos, mas não dispunha de armas para combatê-los. Kardec resolveu aplicar o método experimental ao estudo dos fenómenos espíritas.
Logo aos primeiros resultados verificou que o nó do problema estava no seguinte: o método experimental se aplicava apenas à matéria, excluindo-se o espírito que era considerado como imaterial e portanto inverificável.

   Mas se havia fenómenos espíritas era evidente que o espírito, manifestando-se na matéria, tornava-se acessível à pesquisa. Tudo dependia, pois, do método. Era necessário descobrir um método de investigação experimental dos fenómenos espíritas. Era claro que esse método não podia ser o mesmo aplicado à pesquisa dos fenómenos materiais, considerados como os únicos naturais. Mas por que os únicos? Porque as manifestações do espírito eram consideradas como sobrenaturais, regidas por leis divinas.

   Já Descartes, no Século XVII, lutando contra o dogmatismo escolástico, mostrara a unidade de alma e corpo na manifestação do ser humano e advertira contra o perigo de confusão entre esses dois elementos constitutivos do homem. Kardec se sentia bem amparado na tradição metodológica e conseguiu provar que os fenómenos espíritas eram tão naturais como os fenómenos materiais. Ambos estavam na Natureza, espírito e matéria correspondiam a força e matéria, os dois elementos fundamentais de tudo quanto existe.

   Daí sua conclusão, até hoje não excedida, e confirmada na época pelas manifestações dos próprios Espíritos que o assistiam: a Ciência do Espírito correspondia às exigências da época. Mas era necessário desenvolvê-la segundo a orientação metodológica da Ciência da Matéria, pois essa orientação provara a sua eficiência. A questão era simples: na investigação dos problemas espirituais o método dedutivo teria de ser substituído pelo método indutivo. Mas essa questão se tornava complexa porque a tradição espiritualista, cristalizada nos dogmas das igrejas, repelia como herética e profana a aplicação da pesquisa científica aos problemas espirituais.

   Kardec enfrentou a questão com extraordinária coragem. Enfrentou sozinho, sem o apoio de nenhum poder terreno, todo o poderio religioso da época. Teve então de colocar-se entre os fogos cruzados da Religião, da Filosofia e da Ciência. Os teólogos o atacavam na defesa de seus dogmas, a Filosofia o considerava um intruso e a Ciência o condenava como um ressuscitador de superstições que ela já havia praticamente destruído. A vitória de Kardec definiu-se bem cedo. A Ciência Psíquica inglesa, a Parapsicologia alemã e a Metapsíquica francesa nasceram da sua coragem e das suas pesquisas. Mais de cem anos depois, Rhine e Mac Dougal fundariam nos Estados Unidos a Parapsicologia moderna, seguindo a mesma orientação metodológica de Kardec. E a sua vitória se confirmou plenamente em nossos dias, quando as pesquisas parapsicológicas endossaram as conclusões de Kardec e logo mais a própria Física e a Biologia fizeram o mesmo. A palavra paranormal, criada por Fredrich Myers e hoje adoptada na Parapsicologia, substituiu em definitivo, no campo científico, a classificação errónea de sobrenatural dada aos fenómenos espirituais.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. O método de Kardec, 8º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

| o grande enigma ~


Ao Leitor

Nunca, talvez, no decurso de sua história, a França sentiu mais profundamente a oportunidade de uma nova orientação moral. 

As religiões, dissemos, perderam muito de seu prestígio, e os frutos envenenados do materialismo se mostram por toda a parte. 

Já tinham feito nascer entre as nações esse conflito sangrento que nos aproveitou tão pouco. A obra nefasta prossegue na hora presente. 

Ao lado do egoísmo e da sensualidade de uns, pompeiam a brutalidade e a avidez de outros. Os actos de violência, os assassínios e os suicídios se multiplicam. 

As greves revestem carácter cada vez mais grave. É a luta das classes, o desencadeamento dos apetites e dos furores. 

A voz popular sobe e retumba; o ódio dos pequenos, contra aqueles que possuem e gozam, tende a passar do domínio das teorias para o dos factos. 

As práticas bárbaras, destruidoras de toda a civilização, penetram nos costumes do operariado. Esse estado de coisas, agravando-se, nos levaria directamente à guerra civil e à selvageria.

Tais são os resultados de uma falsa educação nacional. Desde séculos, nem a escola nem a Igreja têm ensinado ao povo aquilo de que ele tem mais necessidade de conhecer:

o porquê da existência, a lei do destino com o verdadeiro sentido dos deveres e responsabilidades que a ele se ligam.

Daí, em toda parte, o desarrazoar das inteligências e das consciências, a confusão, a desmoralização, a anarquia. Estamos ameaçados de falência social.

Será necessário descer até ao fundo do pélago das misérias públicas, para ver o erro cometido e compreender que se deve buscar, acima de tudo, o raio que esclareça a grande marcha humana em sua estrada sinuosa, através dos precipícios e das rochas que desabam?
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Léon Denis, O Grande Enigma, Ao Leitor 3 de 3, 3º fragmento da obra.
(imagem: Salvador Dali, 1950)

terça-feira, 17 de julho de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


CAPÍTULO IV

A Bretagne francesa. Lembranças druídicas |

Nossa Bretagne sempre foi muito descrita, dispensando que eu me detenha em evocar suas paisagens. 

Terra de granito, com suas florestas extensas, suas regiões imensas, suas costas recortadas que as ondas desgastam sem cessar, a Armorique foi durante longo tempo, na Gália, o refúgio dos druidas, a cidadela do Celtismo independente. 

Depois, o Cristianismo aí penetrou, mas assim como as camadas geológicas se sobrepõem sem se destruírem, assim o fundo primitivo persistiu sob o apoio do culto novo. A tradição étnica reapareceu em mil formas sob os véus de uma religião importada do oriente.

Pois, nessa terra de eleição, nas épocas mais diversas e sob as formas mais variadas, é sempre o mesmo pensamento importante e solene que se desenvolve.

Desde as pedras megalíticas de Carnac, menires e dolmens, até aos ossários e calvários, igrejas góticas e campanários de nossos dias, é sempre o mesmo símbolo de imortalidade que se afirma, a mesma aspiração de quem passa para quem fica, em uma palavra, da alma humana até ao infinito.

Mais do que em qualquer parte da antiga Gália, a Bretagne conservou a firme crença no Além, na sua vida invisível, na presença e nas manifestações dos mortos. Se o cepticismo e o espírito crítico existiram em certas cidades, o interior e as ilhas guardaram o sentimento de uma intensa espiritualidade. Quando o rumor do oceano aparece e estronda nas dobras da costa, quando o vento passa gemendo sobre a região, agitando as giestas e as ramagens, a alma bretã, no fundo das choupanas, crê ouvir a voz dos mortos chorando sobre seu passado.

Na época em que percorria, como turista, os campos de Finistère, tomei como guia um homem da região, que me serviu de intérprete, pois eu não conhecia perfeitamente o dialecto que estava muito em uso nessa paragem distante. Ora, um dia, chegando a Kergreven, entrei num caminho cavado, cercado de carvalhos anões, tido como o mais curto, conforme o mapa do estado-maior que eu tinha sempre comigo. Mas meu guia me parou de repente e me disse, com uma espécie de pavor, que há dois anos não se passava mais por esse caminho, que era preciso dar uma grande volta. Tive muita dificuldade para obter dele as explicações claras, mas, enfim, ele acabou por me confessar que um sapateiro de Lampaul se enforcara nesse caminho e seu espírito assombrava ainda os transeuntes, e por isso não utilizavam mais essa rota.

Não levei isso em consideração e lhe pedi para me indicar a árvore do suicida; ele o fez com vigorosos sinais da cruz e gestos de inquietude.

O Sr. Le Braz, no seu livro La Légende de la Mort Chez les Bretons Armoricains, cita o caso de um coveiro que, tendo violado, por ordem do Cura de Penvéman, a sepultura de um morto antes do prazo legal, recebeu a visita nocturna e as censuras do espírito do morto, que só cessou de o assombrar com o benefício de orações pronunciadas em sua intenção. Apesar dessa reparação, o Cura morreu alguns dias depois, e a opinião pública atribuiu a causa da morte à vingança do morto.

Outro facto anotado pelo mesmo autor: Marie Gouriou, da vila de Min-Guenn, perto de Paimpol, deitou-se uma noite, após ter colocado perto de seu leito o berço em que dormia seu filho. Acordada por choros durante a noite, ela viu seu quarto iluminado por uma luz estranha e um homem, inclinado sobre a criança, que a balançava levemente, cantando, em voz baixa, um refrão de marujo.

Ela reconheceu seu marido, que partira há um mês para pescaria na Islândia, e notou que de suas roupas escorria água do mar.

“Como! – exclamou ela –, tu já estás de volta? Toma cuidado, pois vais molhar a criança... Espera, eu vou me levantar para acender o fogo.” Mas a luz se esvaeceu e, quando ela acendeu o fogo, verificou que seu marido havia desaparecido.

Ela não deveria mais revê-lo. O primeiro navio que voltou da Islândia comunicou que o barco em que ele tinha embarcado naufragara, com perda de corpos e bens, na mesma noite em que Gouriou apareceu debruçado sobre o berço de seu filho.

Encontram-se nas diferentes obras do Sr. Le Braz, professor da Faculdade de Letras de Rennes, vários fenómenos da mesma ordem. Eis como ele se exprime, sobre esse assunto, no prefácio do livro acima citado:

“A distinção entre o natural e o sobrenatural não existe para os bretões. Os vivos e os mortos são, do mesmo modo, habitantes do mundo e vivem em perpétua relação uns com os outros. Não se espantam mais de ouvir o sussurrar das almas nos juncos, assim como ouvem os pássaros canoros cantarem, nas cercas, seus chamados de amor.”

É verdade que as narrações desse género são muito comuns na Bretagne, mas é preciso acrescentar que muitas vezes a imaginação popular mistura as criações fantásticas ao mundo real dos espíritos. São as almas dos mortos e também dos duendes, Korigans, Folliked, etc., que frequentam as moradas dos homens e também as planícies, praias e bosques, de tal maneira que, às vezes, é muito difícil saber-se onde está a verdade nessas narrações que se permutam no serão, no canto da lareira.

Não é somente na expressão dos modos de ver e dos sentimentos populares, mesclados de verdades e ilusões, que se deve pesquisar o pensamento principal da Bretagne. É, sobretudo, nas obras de seus escritores, de seus poetas e de seus bardos. Ele vibra nos seus cantos, ele agita, palpita nas páginas que foram escritas.

Com efeito, sob a variedade dos caracteres, dos talentos e das diferenças de pontos de vista encontra-se o mesmo fundo comum, o respeito de uma tradição que se perpetua, de tempo em tempo, e que é comum à alma própria da raça.

Acrescentai entre os grandes escritores como Chateaubriand, Lamennais, Renan, Brizeux e alguns outros, o tormento dos grandes problemas, a ansiedade dos enigmas do destino, a aspiração em direcção ao infinito e ao absoluto. Eles carregam consigo, sobre sua cabeça, o signo augusto de todos aqueles que procuraram sondar o mistério da vida universal.

Abaixo dos grandes autores que acima citamos, os bardos ocupam ainda um lugar honroso, porque sua raça não está extinta na região da Bretagne, onde ainda se encontram exemplos notáveis. Sem dúvida, eles não pretendem igualar os bardos antigos pelo seu talento ou pelo seu génio, mas se inspiram em seu ideal; eles têm os mesmos motivos: o patriotismo e a fé. Essa fé, é bem verdade, parece mais católica do que céltica, mas, sob suas opiniões religiosas vivazes, a centelha céltica adormece e bastaria um apelo, uma recordação, para reanimá-la.
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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES 
CÉLTICOS, CAPÍTULO IV A Bretagne francesa. Lembranças druídicas 1 de 3, 13º fragmento.
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O peregrino sobre o mar de névoa~


Natureza Moral da Terapia Espírita

Kardec adverte quanto às relações da moralidade do médium com a sua mediunidade. 

Considerada em si mesma como um campo de produção de fenómenos, a mediunidade não depende da moralidade. 

Mas considerada como instrumento cognitivo, ou seja, como meio de conhecimento, a mediunidade depende estritamente da moralidade. 

Sacerdotes e religiosos de várias seitas aproveitaram-se dessa declaração de Kardec para acusar o Espiritismo de doutrina sem moral. Revelavam com isso apoucada inteligência e falta de moral. 

Essa observação de Kardec comprovou-se amplamente nas pesquisas espíritas e nas sociedades de pesquisa psíquicas da Europa e da América. A tese é límpida e precisa. Os fenómenos mediúnicos, como os fenómenos físicos, não dependem da moral do médium ou do físico. 

O químico de vida moral mais condenável produz as suas reacções químicas em laboratório sem pensar na moral. Mas quando se trata da busca da verdade ou de processos de cura, a mediunidade divorciada da moralidade não serve, tornando-se mesmo perigosa. A eficácia da terapia espírita depende da integridade moral do médium que lhe serve de instrumento. Esse é um problema de relações humanas no plano das sintonias espirituais.

Desejando acelerar os trabalhos de ordenação da doutrina, na Codificação – no qual trabalhava apenas com as meninas Boudin – Kardec pensou em utilizar-se da boa-vontade de um médium seu conhecido, mas o seu orientador espiritual o advertiu de que esse médium não tinha condições morais para o trabalho, acrescentando: “A verdade não pode falar pela boca da mentira.” Desse episódio, bem como dos princípios morais da doutrina, ampla e minuciosamente explanados na Codificação, nunca se lembraram nem se lembram os clérigos e materialistas acusadores da suposta amoralidade espírita. Bastaria isso para mostrar a debilidade moral desses acusadores.

Na terapêutica espírita, como nas investigações científicas da mediunidade, a exigência da moral é de importância básica. As constantes denúncias de fraudes mediúnicas nas pesquisas decorrem da falta de escrúpulo dos pesquisadores na escolha de seus instrumentos mediúnicos, no tocante às exigências morais.

No caso de médiuns realmente moralizados as denúncias de fraude são geralmente falsas. Costuma citar-se o caso do médium escocês Daniel Douglas Home, que produzia os fenómenos mais espantosos, como a sua própria levitação e materializações sucessivas e contra o qual só houve acusações sem base nem sentido. A famosa médium Ana Prado, no Pará, cruelmente combatida e caluniada por um clérigo fanático, saiu ilesa de todas as invencionices como Anésio Siqueira, Urbano de Assis Xavier, Luiz Parigot de Souza e tantos outros mantiveram-se sempre incólumes de acusações dessa espécie, defendidos por seu comportamento moral, que lhes garantia permanente protecção das entidades espirituais superiores. A moral do médium é o seu escudo em todas as circunstâncias. Não a moral social, que pode ser avaliada de fora e não raro de maneiras contraditórias, mas a moral íntima, pessoal, endógena, ou seja, que nasce da sua própria consciência e não precisa de sanções externas. Essa moral legítima, vivencial, garante a sintonia espiritual do médium com os espíritos elevados – única verdadeira garantia da eficácia de sua terapia. É do próprio Evangelho de Jesus que ressalta esse princípio da moral espírita.

Fala-se muito da importância da fé nas curas espirituais de qualquer sector religioso. A fé se revela, nesses casos, mais como um anseio ardente de cura do que propriamente como fé. O conceito vulgar de fé tem por fundamento a crença. Quem não crê, não tem fé. Mas, como explicou Kardec, a fé verdadeira não prescinde da razão, que a fundamenta no conhecimento e no saber. A fé espírita é racional. A crença é apenas uma aceitação emotiva de um princípio ou de um mito. Herbert Bradley, depois de suas experiências espíritas, sustentava: “Eu não creio, eu sei.” Na terapia espírita a fé representa apenas um estímulo moral ao paciente, para que ele se predisponha melhor, emocionalmente, à acção dos elementos curadores. Kardec acentuou a existência de dois campos da fé, assim divididos: fé humana e fé divina. O homem que confia em si mesmo para as suas realizações fortalece-se na fé humana. Mas aquele que possui a fé divina, resultante do seu conhecimento dos poderes da divindade, dispõe da máxima firmeza na busca dos seus intentos. Na terapia espírita essa fé não se funda nos elementos rituais das religiões, concentrando-se na sintonia do seu pensamento e dos seus sentimentos com as entidades espirituais socorristas.
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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, 3 
Natureza Moral da Terapia Espírita 1 de 3, 8º fragmento da obra
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

sábado, 14 de julho de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Segunda narrativa – I

Refluum temporis
(a
maré
vazante
do
tempo)
…/


   Quœrens – Perdoai minha interrupção, mestre, mas aguardei com empenho a ocasião de vos solicitar um esclarecimento sobre ponto particular do ditador. Uma vez que revistes Júlio César, dizei-me, eu vos rogo, se a sua figura se assemelha em verdade à que o imperador Napoleão III, que reina actualmente sobre a Gália, nos dá na grande obra que escreveu sobre a vida do famoso capitão. É verdade que o ditador romano e o general corso têm a mesma cabeça, a mesma fisionomia?

   Lúmen – Sim. A semelhança é notável, tanto quanto a semelhança moral, a ponto de me haver perguntado a mim mesmo se Júlio César e Napoleão Bonaparte não constituem uma só e única personalidade em duas reencarnações diferentes.

   De qualquer modo que seja, retrocedi de Júlio César aos cônsules e aos reis do Lácio, para me deter um instante no rapto das Sabinas, com o que fiquei bastante satisfeito por poder observar directamente esse tipo de costume antigo. A História aformoseou muitas coisas e reconheço que a maior parte dos factos históricos foram totalmente diferentes do que se nos apresentou. Nesse mesmo momento apercebi o rei Candaulo, em Lídia, na cena do banho, que vós conheceis; a invasão do Egipto pelos Etíopes; a república oligárquica de Corinto; a oitava olimpíada da Grécia; e Isaías profetizando na Judéia. Vi construir as pirâmides por levas de escravos, dirigidos por chefes montados em dromedários. As grandes dinastias da Bactriana e da Índia, eu as vi, e a China me mostrou as artes maravilhosas que já possuía antes mesmo do nascimento do mundo ocidental. Tive oportunidade de perquirir a respeito da Atlântida de Platão e constatei efectivamente que as opiniões de Bailly sobre esse continente desaparecido não são destituídas de fundamento. Na Gália só se distinguiam vastas florestas e pântanos; os próprios druidas haviam desaparecido e os selvagens dali muito se pareciam aos que ainda hoje habitam a Oceânia. Era bem a idade da pedra reconstituída pelos arqueólogos modernos. Mais tarde ainda, vi que o número de homens diminuía pouco a pouco e que o domínio da natureza parecia pertencer a uma grande raça de símios, ao urso das cavernas, ao leão, à hiena, ao rinoceronte. Chegou o momento em que me foi impossível distinguir sequer um único homem na superfície do mundo, nem mesmo o menor vestígio da raça humana. Tudo havia desaparecido. Os tremores de terra, os vulcões e os dilúvios pareciam assenhoreados da superfície planetária, não permitindo a presença do homem em meio de tais ruínas.

   Quœrens – Confessar-vos-ei, ó Lúmen, aguardar com impaciência o momento de vossa chegada ao Paraíso terrestre, a fim de saber de que forma se apresenta a criação da raça humana sobre a Terra. Estou até surpreso de não haverdes parecido cogitar de tão importante observação.

   Lúmen – Eu vos relato unicamente quanto vi, meu curioso amigo, e guardar-me-ei bem de substituir os testemunhos dos meus olhos pelas fantasias da imaginação. Ora, não vislumbrei qualquer remoto traço desse Éden tão poeticamente descrito pelas teogonias primitivas. Além disso, seria bem extraordinário que a semelhança do mundo que eu tinha sob os olhos e a Terra chegasse até elas, tanto mais quanto, se o paraíso terrestre tem sua razão de ser no berço da Humanidade, nas graciosas lendas orientais, não vejo em que ele possa ter a mesma razão nos fins da sociedade humana.

   Quœrens – Creio, ao contrário, que seria mais justo supô-lo ligado aos fins do que ao começo, em resultado e recompensa, do que em forma de prelúdio incompreendido, de uma vida de sofrimento. Mas, de vez que não vistes o Éden, não insisto no assunto.

   Lúmen – Chegou, enfim, ao término da observação desse mundo singular, cuja história era precisamente o inverso da vossa, a ocasião de ver animais fantásticos de monstruosidade combatendo-se nas praias de vastos mares. Serpentes gigantes, armadas de patas formidáveis; crocodilos que voavam nos ares, agitando asas orgânicas mais longas que o seu próprio corpo, peixes disformes, cuja goela teria deglutido um touro; aves de rapina travando terríveis batalhas nas ilhas devastadas. Continentes inteiros, cobertos de vastas florestas; árvores de folhagem enorme cresciam umas sobre as outras, vegetais sombrios e severos, porque o reino vegetal ainda não possuía então nem flores, nem frutos. As montanhas vomitavam cascatas inflamadas; os rios tombavam em cataratas; o solo dos campos abria-se em forma de fauces profundas, deglutindo colinas, bosques, ribeiros, árvores, animais. Bem depressa, impossível se me tornou distinguir mesmo a superfície do Globo; um mar universal parecia cobri-lo e o reino vegetal, e assim também o animal, se apagaram lentamente para dar posto a monótonas verduras lavradas de brilhos e fumaças brancas. Era, desde então, um mundo agonizante. Assisti às derradeiras pulsações do seu coração, reveladas por fulvos clarões intermitentes. Pareceu-me depois que chovia simultaneamente sobre a superfície inteira, pois o Sol não iluminava mais que nuvens e goteiras de chuva. O hemisfério oposto ao Sol pareceu-me menos sombrio do que antes e apagadas claridades se deixavam aperceber através das tempestades. Esses clarões ganharam intensidade e se propagaram sobre a esfera total. Amplas fendas apareciam vermelhas, lembrando o ferro em brasa das forjas. E porque o ferro sucessivamente queimado na ardente fornalha se torna vermelho-claro, depois alaranjado, em seguida amarelo, passando a branco e incandescente, assim o mundo passou por todas as fases do aquecimento progressivo. Seu volume aumentou; o movimento de rotação foi mais lento. O globo misterioso ficou semelhante a uma esfera imensa de metal fundido, envolta de vapores minerais. Sob a acção incessante da sua fornalha interior e dos combates elementares dessa estranha química, adquiriu proporções enormes e a esfera de fogo passou a esfera de fumaça. Desde então, iria desenvolvendo-se sem cessar e perdendo a personalidade. O Sol, que primitivamente a iluminava, não a ultrapassava mais em brilho e ela própria aumentou a sua circunferência de tal modo que se tornou evidente, para mim, estar o planeta vaporoso destinado a perder a sua existência mesma por efeito de reabsorção na atmosfera crescente do Sol.

   Assistir a um fim de mundo é ocorrência rara. Por isso, em meu entusiasmo, pensava comigo mesmo, com uma espécie de vaidade: Eis, pois, um fim de mundo, ó Deus, e eis o destino reservado às inumeráveis terras habitadas!

   – Não é o fim – respondeu uma voz à minha ideia íntima –; é o começo.

   – Quê? É o começo? pensei eu em seguida.

   – O princípio da Terra mesma – respondeu a mesma voz –. Tu reviste toda a história da Terra, distanciando-te dela com velocidade superior à da luz.

   Tal afirmação não me surpreendeu mais do que o primeiro episódio da minha vida ultraterrestre, pois, já familiarizado com os efeitos chocantes das leis da luz, estava desde então preparado para toda a nova surpresa. Eu havia duvidado do facto por certos detalhes que não vos pude narrar, para não perturbar a unidade da minha exposição, porém, sem embargo, incomparavelmente mais extraordinárias ainda do que a sucessão geral dos acontecimentos.

   Quœrens – Mas, se se tratava realmente da Terra, como se explica que a vossa observação astronómica, feita antes para reconhecimento na constelação do Altar, vos haja indicado, ao contrario, que o mundo por vós examinado não era a Terra, nem uma estrelinha do Altar?

   Lúmen – É que essa constelação, em consequência da minha viagem no Espaço, havia mudado de posição. Em lugar das estrelas de terceira grandeza e das de quarta que constituem essa figura (vista da Terra), meu distanciamento rumo da nebulosa havia reduzido tais astros a pequenos pontos imperceptíveis. Estavam lá outras estrelas brilhantes, sem dúvida alguma do Cocheiro, estrelas diametralmente opostas às precedentes, quando se observa da Terra, mas que se interpuseram quando foram por mim transpostas. As perspectivas celestes haviam mudado, já, e impossível quase se tornava determinar a posição do nosso Sol.

   Quœrens – Não tinha pensado nessa inevitável mudança de perspectivas para além de Capela. Assim sendo, tratava-se mesmo da Terra à vossa vista. Ademais, sua história se desenrolou em sentido inverso da realidade. Vistes os velhos acontecimentos chegando depois dos factos modernos. Por que processos pôde a luz fazer-vos assim subir o rio do Tempo?

   Além disso, ó Lúmen, dissestes haver observado particularidades curiosas relativas à própria Terra. Desejaria particularmente formular algumas questões a respeito de tais detalhes. Ouvirei, pois, com interesse, as histórias extraordinárias que devem completar esta narrativa, persuadido de que, tal qual ocorreu anteriormente, elas responderão antecipadamente à minha curiosidade.
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CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Segunda narrativa – I (3 de 3) fragmento global 13º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Seres Radiantes do espaço ~

Capítulo I

Desde Galvani, a atenção do homem se encaminhou para a electricidade, mas é somente a partir dos trabalhos de William Crookes sobre os estados subtis da matéria que começamos a perceber a extensão, a calcular a potência das forças invisíveis.

Sabe-se que as experiências desse ilustre sábio, com os médiuns HomeFlorence Cook, foram o ponto inicial de grandes descobertas que se sucederam e revolucionaram a Física.

Certamente, antes dele, Allan kardec e a Escola Espírita tinham estabelecido a existência do mundo dos fluidos, mas foi Crookes o primeiro que conseguiu captar as forças radioactivas e armazená-las, de modo a torná-las úteis para a Ciência humana.

As suas análises subtis da força psíquica estão descritas no seu livro Recherches sur le Spiritualisme (Pesquisas dos Fenómenos Espíritas).

Talvez observem que não se deve confundir as radiações do Espaço com o fluido humano. Mas sabemos que uma relação íntima os religa e que todas as forças terrestres, celestes e humanas se relacionam a um princípio comum.

A matéria, sob seus diversos aspectos, constitui um imenso reservatório de energia. Na realidade, ela é apenas força condensada: os sólidos se transformam em líquidos, os líquidos em gases, os gases em fluidos, e estes, à medida que se tornam mais subtis, mais quintessenciados, recuperam as suas propriedades primitivas e parecem se impregnar de inteligência. Pelo menos é o que parece resultar de certas manifestações do raio. Num grau superior, a força parece se identificar com o espírito e se torna um de seus atributos.

Toda matéria concreta é apenas, portanto, a energia capturada. O químico Fabre calculou que um quilo de carvão concentra 23 biliões de calorias, que libertadas, bastariam, diz ele, para accionar uma rede de linhas de caminhos-de-ferro, durante dois anos. Ora, apenas libertamos, actualmente, um número proporcionalmente insignificante. No dia em que se souber desintegrar, libertar todas as partículas da matéria, estaremos de posse de uma força incalculável.

Mas, tais progressos, nos dizem os espíritos, são medidos pelo valor moral da Humanidade. Deus não permite que certas revelações ou descobertas se realizem antes que o homem tenha atingido uma consciência mais completa de seus deveres e de suas responsabilidades. Vimos, na recente guerra, o uso que os alemães fizeram dos progressos da Química. Que farão eles, em uma outra guerra, das energias formidáveis que adormecem no íntimo da matéria.

Ao menos, a Ciência chegou a reconhecer a harmonia que liga as teorias da electricidade à lei universal da gravidade. Essa não regula somente a marcha dos corpos celestes, sobre seus dois aspectos, atracção e repulsão; ela regula todos os movimentos da matéria, desde as suas mais ínfimas partículas até aos astros gigantescos do Espaço. Todas as moléculas químicas, todas as parcelas da força eléctrica, como os iões e electrões, representam sistemas completos, análogos aos sistemas estelares. As mesmas radiações as penetram e as mesmas correntes as animam. A Natureza vibra, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande.

A formação de um astro, diz Max Frank, é idêntica, sob o ponto de vista do mecanismo das forças activas, à formação de uma molécula simples. Pode-se constatar, desde agora, por escalonamento das forças conhecidas, que o abismo intransponível, que outrora parecia separar a matéria do espírito, acha-se ultrapassado. A cadeia de vida se desenvolve grandiosamente, sem solução de continuidade, desde o átomo até ao astro, do homem, em todos os graus da hierarquia espiritual, até Deus.
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Léon Denis, O Espiritismo e as Forças Radiantes, Capítulo I, 2 de 3, 2º fragmento da obra.
(imagem: Ascensão de Cristo, pintura de Salvador Dali, 1958)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~

   Siena, a hospitaleira, mantém inscrito na Porta Camollia, que dá acesso à cidade através da Via Cassia: “Cor magis tibi Sena pandit” (Siena
f´apre un cuore più largo di questa porta, *| como traduzem os senenses), o que expressa a forma galharda com que ali sempre se recebem os hóspedes e visitantes, caracterizando a nobreza dos seus costumes e a cultura do seu povo.

   Antiga senhora da Toscana, sempre rival de Florença, a cidade conserva os hábitos das épocas passadas, fazendo lembrar os costumes longobardos e, ulteriormente, os dos cônsules-bispos, culminando pelas tradições religiosas, que constituíam sua mais expressiva glória. Pelas suas ruas ladeirosas, e em suas casas de fé, caminharam os pés de Catarina, a monja extática, que contribuiu vigorosamente para a transferência do papado de Avinhão para Roma, em 1377, quando Gregório XI com ela concordara que, canonizada, se tornaria a padroeira da Itália, no presente século (1939). Por ali também jornadearam outros homens dedicados a Cristo, no áspero período medieval, entre os quais São Bernardino, que colaborou eficazmente para o engrandecimento do povo, na sua devoção à Igreja da época.

   Alongando-se por sobre três colinas, e cercada por muralhas de mais de sete quilómetros de extensão, era, também, considerada a cidade inexpugnável, não fossem as rivalidades internas e as lutas intestinas que a fizeram perder a supremacia e o destaque, nos meados do século XV, até ser incorporada ao grão-ducado da Toscana, um século depois. O orgulho nacional encontrava campo para desdobramento, entrando em disputa nas festas do “Palio”, que eram corridas de cavalos celebradas na Praça do Campo, em dois dias distintos: 2 de Julho, recordando os milagres da Virgem de Provenzano, e 16 de Agosto, em homenagem à Assunção de Maria. A cidade, dividida em confrade (bairros), ainda hoje se apresenta com as cores locais e as próprias insígnias de cada distrito para a grande mossa ou largada dos animais, ante o público apaixonado e vibrante, em cuja oportunidade as rivalidades encontram terreno fértil para proliferarem, e o jogo das apostas dos diversos aficionados representa expressivas somas.

   A festa se inicia pela celebração da missa, na Capela da praça, e logo depois outra, na Igreja de Santa Maria, em Provenzano, para onde eram e são conduzidos as bandeiras e o pálio que se destina ao vitorioso, na corrida. À tarde, faz-se o tradicional cortejo, com todos os trajes evocativos, seguidos de músicos e autoridades, palafreneiros e pajens, alcaides, provedores da fazenda pública, capitão da justiça e outros, destacando-se a beleza e o colorido dos que constituem os bairros representados. O fascinante jogo das bandeiras, que destaca a habilidade e a alta acrobacia de cada porta-estandarte, e o ápice da solenidade que precede, na Praça do Campo, à grande largada. Toda a cidade e pessoas dos arredores acorrem à Praça, ávidos de prazeres.

   Naquele verão, a cidade preparava-se com mais entusiasmo para a festa central, que lhe fazia reviver as glórias do passado. Nas imediações da Fonte Gaia (alegre), os jovens dos festejos, procurando, no entanto, manter em segredo a mor parte dos projectos, para surpreenderem os rivais. As libações alcoólicas atingem estados superlativos, que descambam para as agressões físicas, disputas verbais de baixas expressões, badernas, anarquias. Outras vezes, os bandos alegres se espalham pela cidade, em festas andantes, levando às janelas das bem-amadas as músicas contemporâneas e os sons dos alaúdes, guitarras e pífaros, sob o céu tranquilo e estrelado das noites quentes, alongando-se madrugada adentro, para culminarem nos bordéis, onde se vendem ilusão e loucura em taças de perfumes…

   Enquanto empolgado pelas emoções novas do matrimónio, Girólamo, ludibriado pela opulência transitória, compartia alegrias e sorrisos no lar. Marcado, no entanto, por carácter venal e impetuoso, acostumado às sensações fortes, dificilmente poderia libertar-se do jugo dos hábitos longamente arreigados, que lhe constituíam uma segunda natureza. Além disso, por mais frio e calculista que fosse, carregava o fardo da culpa a dormir nos tecidos sensíveis da memória inconsciente, aguardando o despertar, que não tardaria.

   A princípio, nos dois primeiros anos do matrimónio, passava contínuos períodos com a esposa em Siena, no palácio dos sogros, principalmente na ocasião das festas na cidade.

   A presença espiritual do duque, que a seu turno se comprazia em processo violento de obsessão constrangedora sobre Assunta desencarnada, criava uma atmosfera psíquica densa na herdade, cujos efeitos paulatinamente se avolumavam na psicosfera do homicida sandeu.

   Apesar da abnegação da esposa, Beatriz, e os deveres administrativos na casa, o moço dissoluto não podia adaptar-se demoradamente à vida doméstica, onde não conseguia encontrar os fortes condimentos do prazer exacerbado capaz de fazê-lo vibrar até a exaustão.

   Assim, evadia-se frequentemente, viajando para Florença e Veneza, onde se poderia entregar, com todo o vigor, à libertinagem. Sentia, porém, saudades das rodas amigas senenses. Acalentava, em ânsia crescente, voltar às orgias antigas, entre os velhos amigos.

   O pretexto das festividades do “Palio” era motivação oportuna para nova evasão do lar, na direcção da cidade, que se engalanava para o primeiro período das celebrações festivas. À semelhança de ave prisioneira que reencontra a liberdade, – enquanto a sege o traz à alacridade das ruas, vencendo a Via Cassia, serpenteante entre outeiros nos quais a sega pôs o feno dourado a secar, recebendo as lufadas quentes da atmosfera carregada, sob um céu pardacento, tostando de sol forte –, o moço tem a imaginação em febre e sonha com o reencontro dos amigos. Para trás ficam os símbolos representativos da sua desmedida ambição, da vitória ardilosa sobre a vida e de todas as maquinações que se fizeram necessárias para que atingisse as metas perseguidas.

   Enquanto os animais fogosos ganham as distâncias que o separam da orgia por que anseia, volta-se inconscientemente para a colina e olha pelo rectângulo da janela o aclive em que repousa o velho solar vetusto, a alameda de ciprestes balouçando e, num átimo, voltam-se à mente as cenas que gostaria de olvidar, ali praticadas nos nefandos dias passados. O perdulário sente estranho arrepio percorrer-lhe o corpo, enquanto algo mais poderoso do que a sua vontade lhe dá ímpetos de correr mais do que os corcéis, para fugir, libertando-se da realidade. Imperiosamente necessita esquecer, afogar no prazer a sandice desesperadora.

   As nuvens de pó se erguem à passagem do veículo apressado e porque o calor seja asfixiante àquela hora do dia, ou porque a monotonia do trote dos animais produza uma melopeia hipnotizante, singular torpor invade o jovem, que se deixa conduzir pela modorra que lhe avassala as carnes, terminando por vencê-lo totalmente. Do lado de fora, a exuberância do dia ardente de Agosto, o ar morno, parado, os campos crestados e os montes, como contrafortes naturais em defesa da região. Dentro da sege, entre os estufados rubros, sacolejantes, com as janelas abertas e as cortinas afastadas, o cavaleiro Cherubini experimenta estranho mal-estar. Sofre a sensação de que o calor asfixiante domina o seu cérebro e, de repente, vê-se empurrado da carcaça fisiológica, que ressona, caída sobre o banco, e, ele mesmo, emplumado, de pé, defronta-se com Assunta, numa esfera de sonho. Instintivamente, deseja com sofreguidão fugir da mulher assassinada, mas imperioso comando, que o ata ao corpo, impede-o de consumar o anseio incontido. A sua vítima, que ressuscita dos meandros da morte, é antes uma megera que a arrebatadora filha de Chiusi, a apaixonada descendente dos nobres etruscos do passado. A boca, sedutora dantanho, é um traço ensanguentado na face amarfanhada, na qual se destacam os dois olhos congestionados a saltarem das órbitas. O rosto macerado perdeu toda a cor e vida; um filete de sangue lhe escorre pela fossa nasal; a cabeleira, basta e empastada à testa larga, coroa-a de horror, causando náuseas. De mãos crispadas e miraculosamente intumescida, é mais parecida a um monstro que se evadisse do Hades que à jovem de peregrina sedução, que lhe compartia o leito de perversão.

   Imóvel, vis-à-vis, a aparição o enfrenta, sardónica, como se desejasse fazer penetrar em sua memória, para sempre, a máscara do pavor que exibe. Fescenina e grotesca, ergue as mãos, que parecem garras de rapina, na direcção da garganta do antigo amante, avançando vagarosamente, com o impacto de inconcebível hediondez.
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*| “Siena te abre o coração mais que a sua porta.”



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 1 de 5) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O Espiritismo na Arte~


Parte III

Senso artístico: constituição e evolução
– Fusão do bem com o belo: objectivo sublime da criação
|Março de 1922|

Em resumo, a lei eterna do Universo, o objectivo sublime da criação, é a fusão do bem com o belo. Esses dois princípios são inseparáveis, eles inspiram toda a obra divina e constituem a base essencial das harmonias do Cosmos.

O pensamento e a intenção divinos sendo o bem, a manifestação deles é o belo. Em sua ascensão, o ser deverá mais e mais compenetrar-se desse pensamento soberano, dessa vontade, e dedicar-se a realizá-los em si e à sua volta, sob formas sempre mais perfeitas. Sua felicidade consistirá em assimilar essa lei e em cumpri-la. As alegrias íntimas e profundas que resultarão disso são a demonstração evidente do objectivo do Universo, alegrias que toda a linguagem humana, dizem-nos os espíritos, é insuficiente para definir. Essas leis, esse objectivo essencial, o Espiritismo não somente os ensina; ele ainda nos indica os meios de alcançá-los, de praticá-los. Sob esse ponto de vista, seu papel é notável e sua intervenção, no actual momento da história, é providencial.

Há um século vimos assistindo ao colossal desenvolvimento da indústria e de suas invenções, à descoberta e à aplicação dos recursos físicos da Terra. Disso resultou, nas ideias, uma poderosa corrente materialista, que deu um novo impulso aos apetites, às necessidades imperiosas de bem-estar e de usufrutos. A necessidade de se opor uma contra-influência espiritualista a essa corrente cada vez mais se faz sentir.

A evolução material necessita de uma evolução filosófica e religiosa paralela, sem o que as forças intelectuais se voltariam, cada vez mais, em direcção ao mal e o mundo desabaria num grande cataclismo do qual a última guerra seria apenas o prelúdio e dele nos daria só a ideia.

Acima da vida presente, que é somente transitória, é preciso, entre outras coisas, fazer entrever a outra vida, que é o seu objectivo e a sua sanção. Unicamente pelo acordo final das ciências, das filosofias e das religiões mais evoluídas é que o pensamento atingirá os altos cumes e que a humanidade encontrará a confiança e a paz, com conhecimento das verdades essenciais, sob suas diversas faces.
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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte III – Senso artístico: constituição e evolução – Fusão do bem com o belo: objectivo sublime da criação, 11º fragmento da obra
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Inquietações Primaveris~


A Extinção 
da Vida |

Vivemos até agora num torniquete de contradições alimentadas por grosseiros e desumanos interesses imediatistas. 

O mundo se apresenta em fase de renovação cultural, política e social, povoado por gerações novas que anseiam pelo futuro e se encontram oprimidas e marginalizadas pelo domínio arbitrário dos velhos, dolorosamente apegados a vícios insanáveis de um passado em escombros. 

A prudência medrosa dos velhos e o anacronismo fatal de suas ideias, de suas superstições e de seu apego desesperado à vida como ela foi e não como ela é, esmagam sob a pressão de mentalidade antiquada apoiada no domínio das estruturas tradicionalmente montadas dos dispositivos de segurança. Essa situação negativa é transitória, em virtude da morte, que renova as gerações, mas prolongando-se nesses dispositivos garante o prolongamento indefinido da situação, ao mesmo tempo em que as novas gerações, marginalizadas politicamente, não dispõem de experiências e conhecimentos para enfrentar os dominadores, caindo em apatia e desinteresse pela vida pública. Essa situação se agrava com a ocorrência de tentativas geralmente ingénuas e inconsequentes de jovens explorados por grupos violentos, o que provoca o desencadeamento de pressão oficial, geralmente seguida de revides terroristas. É o que se vê, principalmente, nos países europeus arrasados material e espiritualmente pela segunda guerra mundial.

Esse impasse internacional só pode ser rompido por medidas e atitudes válidas de governos das nações em que o choque de mentalidades antagónicas não chegou a produzir estragos materiais e morais irrecuperáveis. Muito podem contribuir para o restabelecimento de um estado normal nas instituições culturais, através de cursos e divulgações, pelos meios de comunicação organizados e dados por especialistas hábeis.

A Educação para a Morte, dada nas escolas de todos os graus, não como matéria independente, mas ligada a todas as matérias dos cursos, insistindo no estudo dos problemas existenciais, irá despertando as consciências, através de dados científicos positivos, para a compreensão mais clara e racional dos problemas da vida e da morte. Todo o empenho deve se concentrar na orientação ética da vida humana, baseada no direito à vida comunitária livre, em que todos os cidadãos podem gozar das franquias sociais, sem restrições de ordem social, política, cultural, racial ou de castas. O importante é mostrar, objectivamente, que a vida é o caminho da morte, mas que a morte não é o fim da existência humana, pois esta prossegue nas hipóstases espirituais do universo, nas quais o espírito se renova moralmente e se prepara com vistas a novas encarnações na linha da evolução ôntica da Humanidade.

Nascimento e morte são fenómenos biológicos interpenetrados. A vida e a morte constituem os elementos básicos de todas as vidas, que, por isso mesmo, são também mortais. O inferno mitológico dos pagãos devia ter desaparecido com o advento do Cristianismo, mas foi substituído pelo inferno cristão, mais cruel e feroz que o pagão. As carpideiras antigas deixaram de chorar profissionalmente nos velórios, mas os cerimoniais funerários da Igreja substituíram de maneira mais pungente e desesperadora, com pompas sombrias e latinório lastimante, prolongados em semanas e meses, o lamento por aqueles que apenas cumpriram uma lei natural da vida. A ideia trágica da morte sobrevive em nosso tempo, apesar do avanço das Ciências e do desenvolvimento geral da Cultura. Há milhões de anos morremos e ainda não aprendemos que vida e morte são ocorrências naturais. E as religiões da morte, que vampirescamente vivem dos gordos rendimentos das celebrações fúnebres e das rezas indefinidamente pagas pelos familiares e amigos dos mortos, empenham-se num combate contra os que pesquisam e revelam o verdadeiro sentido da morte. A ideia fixa de que a morte é o fim e o terror das condenações de após a morte sustentam esse comércio necrófilo em todo o mundo. Contra esse comércio simoníaco é necessário desenvolver-se a Educação para a Morte, que, restabelecendo a naturalidade do fenómeno, dará aos homens a visão consoladora e cheia de esperanças reais da continuidade natural da vida nas dimensões espirituais e a certeza dos retornos através do processo biológico da reencarnação, claramente ensinado nos próprios Evangelhos.

Conhecendo o mecanismo da vida, em que nascimento e morte se revezam incessantemente, os instintos de morte e seus impulsos criminosos irão se atenuando até desaparecerem por completo. Os desejos malsãos de extinção da vida, que originam os suicídios, os assassinatos e as guerras, tenderão a se transformar nos instintos da vida. A esperança e a confiança em Deus, bem como a confiança na vida e nas leis naturais, criarão um novo clima no planeta, hoje devastado pelo desespero humano. O medo e o desespero desaparecerão com o esclarecimento racional e científico do mistério da morte, esse enigma que a ressurreição de Jesus e os seus ensinos, bem como os do Apóstolo Paulo, já deviam ter esclarecido há dois mil anos.
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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 4 A Extinção da Vida 2 de 2, 7º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)