LÚMEN
Segunda
narrativa – I
Refluum temporis
(a
maré
vazante
do
tempo)
…/
Quœrens – Perdoai
minha interrupção, mestre, mas aguardei com empenho a ocasião de vos solicitar
um esclarecimento sobre ponto particular do ditador. Uma vez que revistes Júlio César, dizei-me, eu vos rogo, se a sua figura se assemelha em verdade à que o
imperador Napoleão III, que reina actualmente sobre a Gália, nos dá na grande
obra que escreveu sobre a vida do famoso capitão. É verdade que o ditador
romano e o general corso têm a mesma cabeça, a mesma fisionomia?
Lúmen – Sim. A
semelhança é notável, tanto quanto a semelhança moral, a ponto de me haver
perguntado a mim mesmo se Júlio César e Napoleão Bonaparte não constituem uma
só e única personalidade em duas reencarnações diferentes.
De qualquer modo que seja, retrocedi de Júlio César aos
cônsules e aos reis do Lácio, para me deter um instante no rapto das Sabinas,
com o que fiquei bastante satisfeito por poder observar directamente esse tipo
de costume antigo. A História aformoseou muitas coisas e reconheço que a maior
parte dos factos históricos foram totalmente diferentes do que se nos
apresentou. Nesse mesmo momento apercebi o rei Candaulo, em Lídia, na cena do
banho, que vós conheceis; a invasão do Egipto pelos Etíopes; a república
oligárquica de Corinto; a oitava olimpíada da Grécia; e Isaías profetizando na
Judéia. Vi construir as pirâmides por levas de escravos, dirigidos por chefes
montados em dromedários. As grandes dinastias da Bactriana e da Índia, eu as
vi, e a China me mostrou as artes maravilhosas que já possuía antes mesmo do
nascimento do mundo ocidental. Tive oportunidade de perquirir a respeito da
Atlântida de Platão e constatei efectivamente que as opiniões de Bailly sobre
esse continente desaparecido não são destituídas de fundamento. Na Gália só se
distinguiam vastas florestas e pântanos; os próprios druidas haviam
desaparecido e os selvagens dali muito se pareciam aos que ainda hoje habitam a
Oceânia. Era bem a idade da pedra reconstituída pelos arqueólogos modernos.
Mais tarde ainda, vi que o número de homens diminuía pouco a pouco e que o
domínio da natureza parecia pertencer a uma grande raça de símios, ao urso das
cavernas, ao leão, à hiena, ao rinoceronte. Chegou o momento em que me foi
impossível distinguir sequer um único homem na superfície do mundo, nem mesmo o
menor vestígio da raça humana. Tudo havia desaparecido. Os tremores de terra,
os vulcões e os dilúvios pareciam assenhoreados da superfície planetária, não
permitindo a presença do homem em meio de tais ruínas.
Quœrens –
Confessar-vos-ei, ó Lúmen, aguardar com impaciência o momento de vossa chegada
ao Paraíso terrestre, a fim de saber de que forma se apresenta a criação da
raça humana sobre a Terra. Estou até surpreso de não haverdes parecido cogitar
de tão importante observação.
Lúmen – Eu vos
relato unicamente quanto vi, meu curioso amigo, e guardar-me-ei bem de
substituir os testemunhos dos meus olhos pelas fantasias da imaginação. Ora,
não vislumbrei qualquer remoto traço desse Éden tão poeticamente descrito pelas
teogonias primitivas. Além disso, seria bem extraordinário que a semelhança do
mundo que eu tinha sob os olhos e a Terra chegasse até elas, tanto mais quanto,
se o paraíso terrestre tem sua razão de ser no berço da Humanidade, nas
graciosas lendas orientais, não vejo em que ele possa ter a mesma razão nos
fins da sociedade humana.
Quœrens – Creio,
ao contrário, que seria mais justo supô-lo ligado aos fins do que ao começo, em
resultado e recompensa, do que em forma de prelúdio incompreendido, de uma vida
de sofrimento. Mas, de vez que não vistes o Éden, não insisto no assunto.
Lúmen – Chegou,
enfim, ao término da observação desse mundo singular, cuja história era
precisamente o inverso da vossa, a ocasião de ver animais fantásticos de
monstruosidade combatendo-se nas praias de vastos mares. Serpentes gigantes,
armadas de patas formidáveis; crocodilos que voavam nos ares, agitando asas
orgânicas mais longas que o seu próprio corpo, peixes disformes, cuja goela
teria deglutido um touro; aves de rapina travando terríveis batalhas nas ilhas
devastadas. Continentes inteiros, cobertos de vastas florestas; árvores de
folhagem enorme cresciam umas sobre as outras, vegetais sombrios e severos,
porque o reino vegetal ainda não possuía então nem flores, nem frutos. As
montanhas vomitavam cascatas inflamadas; os rios tombavam em cataratas; o solo
dos campos abria-se em forma de fauces profundas, deglutindo colinas, bosques,
ribeiros, árvores, animais. Bem depressa, impossível se me tornou distinguir
mesmo a superfície do Globo; um mar universal parecia cobri-lo e o reino
vegetal, e assim também o animal, se apagaram lentamente para dar posto a
monótonas verduras lavradas de brilhos e fumaças brancas. Era, desde então, um
mundo agonizante. Assisti às derradeiras pulsações do seu coração, reveladas
por fulvos clarões intermitentes. Pareceu-me depois que chovia simultaneamente
sobre a superfície inteira, pois o Sol não iluminava mais que nuvens e goteiras
de chuva. O hemisfério oposto ao Sol pareceu-me menos sombrio do que antes e
apagadas claridades se deixavam aperceber através das tempestades. Esses
clarões ganharam intensidade e se propagaram sobre a esfera total. Amplas
fendas apareciam vermelhas, lembrando o ferro em brasa das forjas. E porque o
ferro sucessivamente queimado na ardente fornalha se torna vermelho-claro,
depois alaranjado, em seguida amarelo, passando a branco e incandescente, assim
o mundo passou por todas as fases do aquecimento progressivo. Seu volume
aumentou; o movimento de rotação foi mais lento. O globo misterioso ficou
semelhante a uma esfera imensa de metal fundido, envolta de vapores minerais.
Sob a acção incessante da sua fornalha interior e dos combates elementares
dessa estranha química, adquiriu proporções enormes e a esfera de fogo passou a
esfera de fumaça. Desde então, iria desenvolvendo-se sem cessar e perdendo a
personalidade. O Sol, que primitivamente a iluminava, não a ultrapassava mais
em brilho e ela própria aumentou a sua circunferência de tal modo que se tornou
evidente, para mim, estar o planeta vaporoso destinado a perder a sua
existência mesma por efeito de reabsorção na atmosfera crescente do Sol.
Assistir a um fim de mundo é ocorrência rara. Por isso, em
meu entusiasmo, pensava comigo mesmo, com uma espécie de vaidade: Eis, pois, um
fim de mundo, ó Deus, e eis o destino reservado às inumeráveis terras
habitadas!
– Não é o fim – respondeu uma voz à minha ideia íntima –; é
o começo.
– Quê? É o começo? pensei eu em seguida.
– O princípio da Terra mesma – respondeu a mesma voz –. Tu
reviste toda a história da Terra, distanciando-te dela com velocidade superior
à da luz.
Tal afirmação não me surpreendeu mais do que o primeiro
episódio da minha vida ultraterrestre, pois, já familiarizado com os efeitos
chocantes das leis da luz, estava desde então preparado para toda a nova
surpresa. Eu havia duvidado do facto por certos detalhes que não vos pude
narrar, para não perturbar a unidade da minha exposição, porém, sem embargo,
incomparavelmente mais extraordinárias ainda do que a sucessão geral dos
acontecimentos.
Quœrens – Mas, se
se tratava realmente da Terra, como se explica que a vossa observação astronómica,
feita antes para reconhecimento na constelação do Altar, vos haja indicado, ao
contrario, que o mundo por vós examinado não era a Terra, nem uma estrelinha do
Altar?
Lúmen – É que essa
constelação, em consequência da minha viagem no Espaço, havia mudado de
posição. Em lugar das estrelas de terceira grandeza e das de quarta que
constituem essa figura (vista da Terra), meu distanciamento rumo da nebulosa
havia reduzido tais astros a pequenos pontos imperceptíveis. Estavam lá outras
estrelas brilhantes, sem dúvida alguma do Cocheiro, estrelas diametralmente
opostas às precedentes, quando se observa da Terra, mas que se interpuseram
quando foram por mim transpostas. As perspectivas celestes haviam mudado, já, e
impossível quase se tornava determinar a posição do nosso Sol.
Quœrens – Não
tinha pensado nessa inevitável mudança de perspectivas para além de Capela.
Assim sendo, tratava-se mesmo da Terra à vossa vista. Ademais, sua história se
desenrolou em sentido inverso da realidade. Vistes os velhos acontecimentos
chegando depois dos factos modernos. Por que processos pôde a luz fazer-vos
assim subir o rio do Tempo?
Além disso, ó Lúmen, dissestes haver observado
particularidades curiosas relativas à própria Terra. Desejaria particularmente
formular algumas questões a respeito de tais detalhes. Ouvirei, pois, com
interesse, as histórias extraordinárias que devem completar esta narrativa,
persuadido de que, tal qual ocorreu anteriormente, elas responderão
antecipadamente à minha curiosidade.
/…
CAMILLE
FLAMMARION, Narrações do Infinito,
LÚMEN Segunda narrativa – I (3 de 3) fragmento global 13º (C. Flammarion faz
falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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