Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 12 de julho de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~

   Siena, a hospitaleira, mantém inscrito na Porta Camollia, que dá acesso à cidade através da Via Cassia: “Cor magis tibi Sena pandit” (Siena
f´apre un cuore più largo di questa porta, *| como traduzem os senenses), o que expressa a forma galharda com que ali sempre se recebem os hóspedes e visitantes, caracterizando a nobreza dos seus costumes e a cultura do seu povo.

   Antiga senhora da Toscana, sempre rival de Florença, a cidade conserva os hábitos das épocas passadas, fazendo lembrar os costumes longobardos e, ulteriormente, os dos cônsules-bispos, culminando pelas tradições religiosas, que constituíam sua mais expressiva glória. Pelas suas ruas ladeirosas, e em suas casas de fé, caminharam os pés de Catarina, a monja extática, que contribuiu vigorosamente para a transferência do papado de Avinhão para Roma, em 1377, quando Gregório XI com ela concordara que, canonizada, se tornaria a padroeira da Itália, no presente século (1939). Por ali também jornadearam outros homens dedicados a Cristo, no áspero período medieval, entre os quais São Bernardino, que colaborou eficazmente para o engrandecimento do povo, na sua devoção à Igreja da época.

   Alongando-se por sobre três colinas, e cercada por muralhas de mais de sete quilómetros de extensão, era, também, considerada a cidade inexpugnável, não fossem as rivalidades internas e as lutas intestinas que a fizeram perder a supremacia e o destaque, nos meados do século XV, até ser incorporada ao grão-ducado da Toscana, um século depois. O orgulho nacional encontrava campo para desdobramento, entrando em disputa nas festas do “Palio”, que eram corridas de cavalos celebradas na Praça do Campo, em dois dias distintos: 2 de Julho, recordando os milagres da Virgem de Provenzano, e 16 de Agosto, em homenagem à Assunção de Maria. A cidade, dividida em confrade (bairros), ainda hoje se apresenta com as cores locais e as próprias insígnias de cada distrito para a grande mossa ou largada dos animais, ante o público apaixonado e vibrante, em cuja oportunidade as rivalidades encontram terreno fértil para proliferarem, e o jogo das apostas dos diversos aficionados representa expressivas somas.

   A festa se inicia pela celebração da missa, na Capela da praça, e logo depois outra, na Igreja de Santa Maria, em Provenzano, para onde eram e são conduzidos as bandeiras e o pálio que se destina ao vitorioso, na corrida. À tarde, faz-se o tradicional cortejo, com todos os trajes evocativos, seguidos de músicos e autoridades, palafreneiros e pajens, alcaides, provedores da fazenda pública, capitão da justiça e outros, destacando-se a beleza e o colorido dos que constituem os bairros representados. O fascinante jogo das bandeiras, que destaca a habilidade e a alta acrobacia de cada porta-estandarte, e o ápice da solenidade que precede, na Praça do Campo, à grande largada. Toda a cidade e pessoas dos arredores acorrem à Praça, ávidos de prazeres.

   Naquele verão, a cidade preparava-se com mais entusiasmo para a festa central, que lhe fazia reviver as glórias do passado. Nas imediações da Fonte Gaia (alegre), os jovens dos festejos, procurando, no entanto, manter em segredo a mor parte dos projectos, para surpreenderem os rivais. As libações alcoólicas atingem estados superlativos, que descambam para as agressões físicas, disputas verbais de baixas expressões, badernas, anarquias. Outras vezes, os bandos alegres se espalham pela cidade, em festas andantes, levando às janelas das bem-amadas as músicas contemporâneas e os sons dos alaúdes, guitarras e pífaros, sob o céu tranquilo e estrelado das noites quentes, alongando-se madrugada adentro, para culminarem nos bordéis, onde se vendem ilusão e loucura em taças de perfumes…

   Enquanto empolgado pelas emoções novas do matrimónio, Girólamo, ludibriado pela opulência transitória, compartia alegrias e sorrisos no lar. Marcado, no entanto, por carácter venal e impetuoso, acostumado às sensações fortes, dificilmente poderia libertar-se do jugo dos hábitos longamente arreigados, que lhe constituíam uma segunda natureza. Além disso, por mais frio e calculista que fosse, carregava o fardo da culpa a dormir nos tecidos sensíveis da memória inconsciente, aguardando o despertar, que não tardaria.

   A princípio, nos dois primeiros anos do matrimónio, passava contínuos períodos com a esposa em Siena, no palácio dos sogros, principalmente na ocasião das festas na cidade.

   A presença espiritual do duque, que a seu turno se comprazia em processo violento de obsessão constrangedora sobre Assunta desencarnada, criava uma atmosfera psíquica densa na herdade, cujos efeitos paulatinamente se avolumavam na psicosfera do homicida sandeu.

   Apesar da abnegação da esposa, Beatriz, e os deveres administrativos na casa, o moço dissoluto não podia adaptar-se demoradamente à vida doméstica, onde não conseguia encontrar os fortes condimentos do prazer exacerbado capaz de fazê-lo vibrar até a exaustão.

   Assim, evadia-se frequentemente, viajando para Florença e Veneza, onde se poderia entregar, com todo o vigor, à libertinagem. Sentia, porém, saudades das rodas amigas senenses. Acalentava, em ânsia crescente, voltar às orgias antigas, entre os velhos amigos.

   O pretexto das festividades do “Palio” era motivação oportuna para nova evasão do lar, na direcção da cidade, que se engalanava para o primeiro período das celebrações festivas. À semelhança de ave prisioneira que reencontra a liberdade, – enquanto a sege o traz à alacridade das ruas, vencendo a Via Cassia, serpenteante entre outeiros nos quais a sega pôs o feno dourado a secar, recebendo as lufadas quentes da atmosfera carregada, sob um céu pardacento, tostando de sol forte –, o moço tem a imaginação em febre e sonha com o reencontro dos amigos. Para trás ficam os símbolos representativos da sua desmedida ambição, da vitória ardilosa sobre a vida e de todas as maquinações que se fizeram necessárias para que atingisse as metas perseguidas.

   Enquanto os animais fogosos ganham as distâncias que o separam da orgia por que anseia, volta-se inconscientemente para a colina e olha pelo rectângulo da janela o aclive em que repousa o velho solar vetusto, a alameda de ciprestes balouçando e, num átimo, voltam-se à mente as cenas que gostaria de olvidar, ali praticadas nos nefandos dias passados. O perdulário sente estranho arrepio percorrer-lhe o corpo, enquanto algo mais poderoso do que a sua vontade lhe dá ímpetos de correr mais do que os corcéis, para fugir, libertando-se da realidade. Imperiosamente necessita esquecer, afogar no prazer a sandice desesperadora.

   As nuvens de pó se erguem à passagem do veículo apressado e porque o calor seja asfixiante àquela hora do dia, ou porque a monotonia do trote dos animais produza uma melopeia hipnotizante, singular torpor invade o jovem, que se deixa conduzir pela modorra que lhe avassala as carnes, terminando por vencê-lo totalmente. Do lado de fora, a exuberância do dia ardente de Agosto, o ar morno, parado, os campos crestados e os montes, como contrafortes naturais em defesa da região. Dentro da sege, entre os estufados rubros, sacolejantes, com as janelas abertas e as cortinas afastadas, o cavaleiro Cherubini experimenta estranho mal-estar. Sofre a sensação de que o calor asfixiante domina o seu cérebro e, de repente, vê-se empurrado da carcaça fisiológica, que ressona, caída sobre o banco, e, ele mesmo, emplumado, de pé, defronta-se com Assunta, numa esfera de sonho. Instintivamente, deseja com sofreguidão fugir da mulher assassinada, mas imperioso comando, que o ata ao corpo, impede-o de consumar o anseio incontido. A sua vítima, que ressuscita dos meandros da morte, é antes uma megera que a arrebatadora filha de Chiusi, a apaixonada descendente dos nobres etruscos do passado. A boca, sedutora dantanho, é um traço ensanguentado na face amarfanhada, na qual se destacam os dois olhos congestionados a saltarem das órbitas. O rosto macerado perdeu toda a cor e vida; um filete de sangue lhe escorre pela fossa nasal; a cabeleira, basta e empastada à testa larga, coroa-a de horror, causando náuseas. De mãos crispadas e miraculosamente intumescida, é mais parecida a um monstro que se evadisse do Hades que à jovem de peregrina sedução, que lhe compartia o leito de perversão.

   Imóvel, vis-à-vis, a aparição o enfrenta, sardónica, como se desejasse fazer penetrar em sua memória, para sempre, a máscara do pavor que exibe. Fescenina e grotesca, ergue as mãos, que parecem garras de rapina, na direcção da garganta do antigo amante, avançando vagarosamente, com o impacto de inconcebível hediondez.
/…

*| “Siena te abre o coração mais que a sua porta.”



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 1 de 5) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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