ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~
Siena, a hospitaleira, mantém inscrito na Porta Camollia, que dá acesso à cidade
através da Via Cassia: “Cor magis tibi
Sena pandit” (Siena
f´apre un cuore più largo di questa porta, *| como
traduzem os senenses), o que expressa a forma galharda com que ali sempre se
recebem os hóspedes e visitantes, caracterizando a nobreza dos seus costumes e
a cultura do seu povo.
Antiga senhora da Toscana, sempre rival de Florença, a
cidade conserva os hábitos das épocas passadas, fazendo lembrar os costumes
longobardos e, ulteriormente, os dos cônsules-bispos, culminando pelas tradições
religiosas, que constituíam sua mais expressiva glória. Pelas suas ruas
ladeirosas, e em suas casas de fé, caminharam os pés de Catarina, a monja extática,
que contribuiu vigorosamente para a transferência do papado de Avinhão para
Roma, em 1377, quando Gregório XI com ela concordara que, canonizada, se
tornaria a padroeira da Itália, no presente século (1939). Por ali também jornadearam
outros homens dedicados a Cristo, no áspero período medieval, entre os quais São
Bernardino, que colaborou eficazmente para o engrandecimento do povo, na sua
devoção à Igreja da época.
Alongando-se por sobre três colinas, e cercada por muralhas
de mais de sete quilómetros de extensão, era, também, considerada a cidade
inexpugnável, não fossem as rivalidades internas e as lutas intestinas que a
fizeram perder a supremacia e o destaque, nos meados do século XV, até ser
incorporada ao grão-ducado da Toscana, um século depois. O orgulho nacional
encontrava campo para desdobramento, entrando em disputa nas festas do “Palio”,
que eram corridas de cavalos celebradas na Praça do Campo, em dois dias
distintos: 2 de Julho, recordando os milagres
da Virgem de Provenzano, e 16 de Agosto, em homenagem à Assunção de Maria. A cidade, dividida
em confrade (bairros), ainda hoje se
apresenta com as cores locais e as próprias insígnias de cada distrito para a
grande mossa ou largada dos animais,
ante o público apaixonado e vibrante, em cuja oportunidade as rivalidades
encontram terreno fértil para proliferarem, e o jogo das apostas dos diversos
aficionados representa expressivas somas.
A festa se inicia pela celebração da missa, na Capela da
praça, e logo depois outra, na Igreja de Santa Maria, em Provenzano, para onde
eram e são conduzidos as bandeiras e o pálio que se destina ao vitorioso, na
corrida. À tarde, faz-se o tradicional cortejo, com todos os trajes evocativos,
seguidos de músicos e autoridades, palafreneiros e pajens, alcaides, provedores
da fazenda pública, capitão da justiça e outros, destacando-se a beleza e o
colorido dos que constituem os bairros representados. O fascinante jogo das
bandeiras, que destaca a habilidade e a alta acrobacia de cada
porta-estandarte, e o ápice da solenidade que precede, na Praça do Campo, à
grande largada. Toda a cidade e pessoas dos arredores acorrem à Praça, ávidos
de prazeres.
Naquele verão, a cidade preparava-se com mais entusiasmo
para a festa central, que lhe fazia reviver as glórias do passado. Nas imediações
da Fonte Gaia (alegre), os jovens
dos festejos, procurando, no entanto, manter em segredo a mor parte dos
projectos, para surpreenderem os rivais. As libações alcoólicas atingem estados
superlativos, que descambam para as agressões físicas, disputas verbais de
baixas expressões, badernas, anarquias. Outras vezes, os bandos alegres se
espalham pela cidade, em festas andantes, levando às janelas das bem-amadas as
músicas contemporâneas e os sons dos alaúdes, guitarras e pífaros, sob o céu
tranquilo e estrelado das noites quentes, alongando-se madrugada adentro, para
culminarem nos bordéis, onde se vendem ilusão e loucura em taças de perfumes…
Enquanto empolgado pelas emoções novas do matrimónio, Girólamo,
ludibriado pela opulência transitória, compartia alegrias e sorrisos no lar. Marcado,
no entanto, por carácter venal e impetuoso, acostumado às sensações fortes,
dificilmente poderia libertar-se do jugo dos hábitos longamente arreigados, que
lhe constituíam uma segunda natureza. Além disso, por mais frio e calculista
que fosse, carregava o fardo da culpa a dormir nos tecidos sensíveis da memória
inconsciente, aguardando o despertar, que não tardaria.
A princípio, nos dois primeiros anos do matrimónio, passava
contínuos períodos com a esposa em Siena, no palácio dos sogros, principalmente
na ocasião das festas na cidade.
A presença espiritual do duque, que a seu turno se comprazia
em processo violento de obsessão constrangedora sobre Assunta desencarnada,
criava uma atmosfera psíquica densa na herdade, cujos efeitos paulatinamente se
avolumavam na psicosfera do homicida sandeu.
Apesar da abnegação da esposa, Beatriz, e os deveres
administrativos na casa, o moço dissoluto não podia adaptar-se demoradamente à vida doméstica, onde não conseguia encontrar os fortes
condimentos do prazer exacerbado capaz de fazê-lo vibrar até a exaustão.
Assim, evadia-se frequentemente, viajando para Florença e
Veneza, onde se poderia entregar, com todo o vigor, à libertinagem. Sentia, porém,
saudades das rodas amigas senenses. Acalentava, em ânsia crescente, voltar às
orgias antigas, entre os velhos amigos.
O pretexto das festividades do “Palio” era motivação
oportuna para nova evasão do lar, na direcção da cidade, que se engalanava para
o primeiro período das celebrações festivas. À semelhança de ave prisioneira
que reencontra a liberdade, – enquanto a sege o traz à alacridade das ruas, vencendo
a Via Cassia, serpenteante entre outeiros nos quais a sega pôs o feno dourado a
secar, recebendo as lufadas quentes da atmosfera carregada, sob um céu
pardacento, tostando de sol forte –, o moço tem a imaginação em febre e sonha
com o reencontro dos amigos. Para trás ficam os símbolos representativos da sua
desmedida ambição, da vitória ardilosa sobre a vida e de todas as maquinações
que se fizeram necessárias para que atingisse as metas perseguidas.
Enquanto os animais fogosos ganham as distâncias que o
separam da orgia por que anseia, volta-se inconscientemente para a colina e
olha pelo rectângulo da janela o aclive em que repousa o velho solar vetusto, a
alameda de ciprestes balouçando e, num átimo, voltam-se à mente as cenas que
gostaria de olvidar, ali praticadas nos nefandos dias passados. O perdulário
sente estranho arrepio percorrer-lhe o corpo, enquanto algo mais poderoso do
que a sua vontade lhe dá ímpetos de correr mais do que os corcéis, para fugir,
libertando-se da realidade. Imperiosamente necessita esquecer, afogar no prazer
a sandice desesperadora.
As nuvens de pó se erguem à passagem do veículo apressado e
porque o calor seja asfixiante àquela hora do dia, ou porque a monotonia do
trote dos animais produza uma melopeia hipnotizante, singular torpor invade o
jovem, que se deixa conduzir pela modorra que lhe avassala as carnes,
terminando por vencê-lo totalmente. Do lado de fora, a exuberância do dia
ardente de Agosto, o ar morno, parado, os campos crestados e os montes, como
contrafortes naturais em defesa da região. Dentro da sege, entre os estufados
rubros, sacolejantes, com as janelas abertas e as cortinas afastadas, o cavaleiro Cherubini experimenta
estranho mal-estar. Sofre a sensação de que o calor asfixiante domina o seu cérebro
e, de repente, vê-se empurrado da carcaça fisiológica, que ressona, caída sobre
o banco, e, ele mesmo, emplumado, de pé, defronta-se com Assunta, numa esfera
de sonho. Instintivamente, deseja com sofreguidão fugir da mulher assassinada,
mas imperioso comando, que o ata ao corpo, impede-o de consumar o anseio
incontido. A sua vítima, que ressuscita dos meandros da morte, é antes uma
megera que a arrebatadora filha de Chiusi, a apaixonada descendente dos nobres
etruscos do passado. A boca, sedutora dantanho, é um traço ensanguentado na
face amarfanhada, na qual se destacam os dois olhos congestionados a saltarem
das órbitas. O rosto macerado perdeu toda a cor e vida; um filete de sangue lhe
escorre pela fossa nasal; a cabeleira, basta e empastada à testa larga, coroa-a
de horror, causando náuseas. De mãos crispadas e miraculosamente intumescida, é
mais parecida a um monstro que se evadisse do Hades que à jovem de peregrina sedução, que lhe compartia o leito
de perversão.
Imóvel, vis-à-vis,
a aparição o enfrenta, sardónica, como se desejasse fazer penetrar em sua memória,
para sempre, a máscara do pavor que exibe. Fescenina e grotesca, ergue as mãos,
que parecem garras de rapina, na direcção da garganta do antigo amante, avançando
vagarosamente, com o impacto de inconcebível hediondez.
/…
*| “Siena te abre o
coração mais que a sua porta.”
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 1 de 5) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura
de Edgar Maxence)
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