Justificativa do
equívoco marxista
Sobram razões, entretanto, para esse equívoco. Não podemos
condenar Marx e Engels, bem como Feuerbach, em última instância, se este
último, rebelando-se contra a “divinização dos fenómenos naturais
impressionantes” pelo homem primitivo, pela razão instintiva, quis apegar-se à
raiz latina da palavra religião, o verbo “religare”, para construir uma
religião humana de fraternidade terrena, sem compromissos transcendentes, como
Comte o tentaria mais tarde. Os dois primeiros, pelo contrário, rejeitaram até
mesmo a velha raiz, tomados de uma verbofobia que ainda hoje impregna os seus
seguidores. E levantaram, no pó do planeta, a primeira grande revolução
filosófica, política e social, contra a imensidade cósmica do Espírito.
Foi, não um temporal num copo d’água, mas uma tormenta num
grão de areia. Não obstante, como nesse grão de areia é que, segundo Kardec,
nascemos, crescemos, vivemos, morremos, renascemos e progredimos sempre, pois
“tal é a lei”, a revolta representa, para nós, toda uma época histórica, de
importância igual à rebelião dos anjos, no princípio dos tempos.
A esses novos lúciferes assistiam as razões poderosas da
mistificação religiosa da época. A religião, distanciada da sua velha raiz,
convertera-se em instrumento de opressão e da mais deslavada velhacaria. Nem
foi por outro motivo que Kardec declarou, em A Gênese, com a clareza e a precisão que o caracterizavam: “As
religiões, infelizmente, têm sido sempre instrumentos de dominação. O papel de
profeta tem tentado as ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão
de pretensos reveladores ou messias que, favorecidos pelo prestígio desse nome,
exploram a credulidade, em proveito do seu orgulho, da sua cupidez ou da sua
preguiça, achando mais cómodo viver na dependência dos iludidos. A religião
cristã não esteve ao abrigo desses parasitas.”
As igrejas haviam corporificado o princípio religioso, no
terreno social, na forma de organizações político-financeiras, sedentas de
dominação. Os sacerdotes nada mais eram do que os negociantes do culto. E este,
como bem o definiram os materialistas dialécticos, “o suborno da divindade”. A
corrupção capitalista invadira os céus, podendo acrescentar-se, por isso mesmo,
com Tcheskiss: “O desenvolvimento da ciência provoca a morte da religião.” Já
Kardec o dissera, no mesmo livro citado: “Se a religião se recusa a avançar com
a ciência, a ciência avançará sozinha.”
Querer que a capacidade de análise objectiva de Marx e
Engels falhasse nesse terreno, despercebida do aspecto brutal da religião e ao
seu verdadeiro papel na estrutura social, seria querer demasiado. Por outro
lado, supor que esses anátemo-patologistas da sociedade capitalista pudessem
agir, diante do corpo enfermo da sociedade da época, como psiquiatras,
descobrindo a malversação dos elementos espirituais no desequilíbrio religioso,
seria desconhecer o fenómeno das especializações no campo da ciência.
Marx e Engels fizeram o que puderam. Pura e simplesmente. O
que assombra, porém, é que um século depois os seus discípulos e continuadores
ainda arrastem a mesma asa quebrada, sem compreenderem a necessidade de avançar
na concepção do mundo, em obediência, pelo menos, ao “processus” da sua própria
dialéctica.
/…
José Herculano Pires, Espiritismo
Dialéctico – Justificativa do equívoco marxista, 3º fragmento da obra.
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)
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