Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 4 de julho de 2012

pensamento crítico ~


Justificativa do equívoco marxista

   Sobram razões, entretanto, para esse equívoco. Não podemos condenar Marx e Engels, bem como Feuerbach, em última instância, se este último, rebelando-se contra a “divinização dos fenómenos naturais impressionantes” pelo homem primitivo, pela razão instintiva, quis apegar-se à raiz latina da palavra religião, o verbo “religare”, para construir uma religião humana de fraternidade terrena, sem compromissos transcendentes, como Comte o tentaria mais tarde. Os dois primeiros, pelo contrário, rejeitaram até mesmo a velha raiz, tomados de uma verbofobia que ainda hoje impregna os seus seguidores. E levantaram, no pó do planeta, a primeira grande revolução filosófica, política e social, contra a imensidade cósmica do Espírito.

   Foi, não um temporal num copo d’água, mas uma tormenta num grão de areia. Não obstante, como nesse grão de areia é que, segundo Kardec, nascemos, crescemos, vivemos, morremos, renascemos e progredimos sempre, pois “tal é a lei”, a revolta representa, para nós, toda uma época histórica, de importância igual à rebelião dos anjos, no princípio dos tempos.

   A esses novos lúciferes assistiam as razões poderosas da mistificação religiosa da época. A religião, distanciada da sua velha raiz, convertera-se em instrumento de opressão e da mais deslavada velhacaria. Nem foi por outro motivo que Kardec declarou, em A Gênese, com a clareza e a precisão que o caracterizavam: “As religiões, infelizmente, têm sido sempre instrumentos de dominação. O papel de profeta tem tentado as ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias que, favorecidos pelo prestígio desse nome, exploram a credulidade, em proveito do seu orgulho, da sua cupidez ou da sua preguiça, achando mais cómodo viver na dependência dos iludidos. A religião cristã não esteve ao abrigo desses parasitas.” 

   As igrejas haviam corporificado o princípio religioso, no terreno social, na forma de organizações político-financeiras, sedentas de dominação. Os sacerdotes nada mais eram do que os negociantes do culto. E este, como bem o definiram os materialistas dialécticos, “o suborno da divindade”. A corrupção capitalista invadira os céus, podendo acrescentar-se, por isso mesmo, com Tcheskiss: “O desenvolvimento da ciência provoca a morte da religião.” Já Kardec o dissera, no mesmo livro citado: “Se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avançará sozinha.”

   Querer que a capacidade de análise objectiva de Marx e Engels falhasse nesse terreno, despercebida do aspecto brutal da religião e ao seu verdadeiro papel na estrutura social, seria querer demasiado. Por outro lado, supor que esses anátemo-patologistas da sociedade capitalista pudessem agir, diante do corpo enfermo da sociedade da época, como psiquiatras, descobrindo a malversação dos elementos espirituais no desequilíbrio religioso, seria desconhecer o fenómeno das especializações no campo da ciência.

   Marx e Engels fizeram o que puderam. Pura e simplesmente. O que assombra, porém, é que um século depois os seus discípulos e continuadores ainda arrastem a mesma asa quebrada, sem compreenderem a necessidade de avançar na concepção do mundo, em obediência, pelo menos, ao “processus” da sua própria dialéctica.
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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico – Justificativa do equívoco marxista, 3º fragmento da obra.
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

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