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terça-feira, 23 de abril de 2024

Léon Denis e o Cristianismo ~


Relações com os Espíritos dos Mortos

(I de II)

  Os primeiros cristãos comunicavam-se com os Espíritos dos mortos e deles recebiam ensinamentos. Não há nenhuma dúvida sobre este ponto, porque são abundantes os testemunhos. Resultam dos próprios textos dos livros canónicos, textos que conseguiram escapar às vicissitudes dos tempos e cuja autenticidade é indubitável. (ii)

  O Cristianismo repousa inteiramente em factos de aparição e manifestação dos mortos e fornece inúmeras provas da existência do mundo invisível e das almas que o povoam.

  Estas provas são igualmente abundantes no Antigo e no Novo Testamento. Num, como no outro, se encontram aparições de anjos (iii) dos Espíritos dos justos, avisos e revelações feitos pelas almas dos mortos, o dom de profecias (iv) e o dom de curar. (v) No Novo Testamento são referidas as aparições do próprio Jesus, depois do seu suplício e sepultura.

  A existência do Cristo havia sido uma constante comunhão com o mundo invisível. O filho de Maria era dotado de faculdades que lhe permitiam conversar com os Espíritos. Estes, muitas vezes, se tornavam visíveis a seu lado. Os seus discípulos viram-no, assombrados, conversar um dia no Tabor com Elias e Moisés. (vi)

  Nos momentos críticos, quando uma questão o embaraça, como no caso da mulher adúltera, ele evocava as almas superiores e com o dedo traçava na areia a resposta a dar, do mesmo modo que nos nossos dias o médium, movido por força estranha, traça caracteres na ardósia.

  Estes factos são conhecidos, relatados, mas muitos outros, relacionados com esta troca assídua com o invisível, permaneceram ignorados dos homens, mesmo daqueles que o cercavam.

  As relações do Cristo com o mundo dos Espíritos afirmam-se pelo amparo constante que do Além recebia o mensageiro divino.

  Por vezes, apesar da sua coragem, da abnegação que inspiram todos os seus actos, perturbado pela grandeza da tarefa, ele eleva a alma a Deus; ora, implora novas forças e é atendido. Um grandioso sopro lhe bafeja a mente. Sob um impulso irresistível, ele reproduz os pensamentos sugeridos; sente-se reconfortado, socorrido.

  Nas horas solitárias, os seus olhos distinguem letras de fogo que exprimem as vontades do céu; (vii) soam vozes aos seus ouvidos, trazendo-lhe resposta às suas ardentes preces. São a transmissão directa dos ensinos que deve divulgar, são preceitos regeneradores para cuja propagação baixara à Terra. As vibrações do pensamento supremo que animam o Universo lhe são perceptíveis e lhe incutem esses eternos princípios que espalhará e que jamais se hão de apagar da memória dos homens. Ele percebe melodias celestes e os seus lábios repetem as palavras escutadas, sublimes revelações, mistério ainda para muitos seres humanos, mas para ele a confirmação absoluta dessa constante protecção e das intuições que lhe provêm dos mundos superiores.

  E quando essa grande vida terminou, quando se consumou o sacrifício, depois que Jesus foi pregado na cruz e baixou ao túmulo, o seu Espírito continuou a afirmar-se através de novas manifestações. Essa alma poderosa, que em nenhum túmulo poderia ser aprisionada, aparece aos que na Terra havia deixado tristes, desanimados e abatidos. Vem dizer-lhes que a morte não é nada. Com a sua presença lhes restitui a energia, a força moral necessária para cumprirem a missão que lhes foi confiada.

  As aparições do Cristo são conhecidas e tiveram numerosos testemunhos. Apresentam analogias flagrantes com as que nos nossos dias são observadas em diversos graus, desde a forma etérea, sem consistência, com que aparece a Maria Madalena e que não suportaria o mínimo contacto, até à completa materialização, tal como a pôde verificar Tomé, que tocou com a sua própria mão as chagas do Cristo. (viii) Daí esse contraste nas palavras de Jesus: “Não me toques” – diz ele a Madalena – ao passo que convida Tomé a pôr um dedo nos buracos dos cravos: “Chega também a tua mão e mete-a em mim”.

  Jesus aparece e desaparece instantaneamente. Entra numa casa com as portas fechadas. Em Emaús conversa com dois dos discípulos, que não o reconhecem e, desaparece repentinamente. Encontra-se de posse desse corpo fluídico, etéreo, que há em todos nós, corpo subtil que é o invólucro inseparável de todas as almas e que um alto Espírito como o seu soube dirigir, modificar, condensar, rarefazer à vontade. (ix) E a tal ponto o condensa, que se torna visível e tangível aos assistentes.

  As aparições de Jesus depois da morte são mesmo a base, o ponto capital da doutrina cristã e foi por isso que São Paulo disse: “Se o Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé.” O Cristianismo não é uma esperança, é um facto natural, um facto apoiado no testemunho dos sentidos. Os apóstolos não acreditavam só na ressurreição; estavam convencidos dela.

  E é por esta razão que a sua prédica adquiria aqueles tons veementes e penetrantes, que incutia uma convicção robusta. Com o suplício de Jesus o Cristianismo era ferido em pleno coração. Os discípulos, consternados, estavam prestes a se dispersarem.

  O Cristo, porém, lhes apareceu e a sua fé tornou-se tão profunda que, para a confessar, afrontaram todos os suplícios. As aparições do Cristo depois da morte asseguraram a persistência da ideia cristã, oferecendo-lhe como base todo um conjunto de factos.

  A verdade é que os homens lançaram a confusão sobre estes fenómenos, atribuindo-lhes um carácter miraculosoO milagre é uma postergação das leis eternas fixadas por Deus, das obras que são da sua vontade e, seria pouco digno da suprema Potência exceder da sua própria natureza e variar nos seus decretos.

  Jesus, conforme a Igreja, teria ressuscitado com o seu corpo carnal. Isso é contrário ao texto primitivo do Evangelho. As aparições repentinas, com mudanças de forma, que se produzem em lugares fechados, não podem ser senão manifestações espíritas, fluídicas e naturais. Jesus ressuscitou, como ressuscitaremos todos, quando o nosso espírito abandonar a prisão de carne.

  Em Marcos e Mateus e, na descrição de Paulo (l Coríntios, XV), estas aparições são narradas do modo mais conciso. Segundo Paulo, o corpo do Cristo é incorruptível; não tem carne nem sangue. Esta opinião procede da mais antiga tradição. A materialidade só veio mais tarde, com Lucas. A narrativa complica-se então e é enfeitada com particularidades maravilhosas, no intuito evidente de impressionar o leitor. (x)

  Este modo de ver, como em geral toda a teoria do milagreresulta de uma falsa interpretação das leis do Universo. O mesmo acontece com a ideia do sobrenatural, que corresponde a uma concepção deficiente da ordem do mundo e das normas da vida. Na realidade, nada existe fora da Natureza, que é a obra divina na sua majestosíssima expansão. O erro do homem provém da acanhada ideia que ele faz da Natureza e das formas da vida, limitadas para ele à esfera traçada pelos seus sentidos. Ora, os nossos sentidos apenas abrangem uma porção muitíssimo restrita do domínio das coisas. Além destes limites que eles nos impõem, a vida desdobra-se sob aspectos ricos e variados, sob formas subtis, quintessências, que se graduam, se multiplicam e renovam até ao infinito.

  A este domínio do invisível pertence o mundo fluídico, povoado pelos Espíritos dos homens que viveram na Terra e se despojaram do seu invólucro grosseiro. Subsistem eles sob essa forma subtil de que acabamos de falar, forma ainda material posto que etérea, porque a matéria afecta muitos estados que não nos são familiares. Essa forma é a imagem, ou antes, o esboço dos corpos carnais que estes Espíritos animaram nas suas vidas sucessivas. Eles passam, mas a forma permanece, como a alma, de que é o organismo indestrutível.

  Os Espíritos ocupam posições diferentes em harmonia com a sua elevação moral. A sua irradiação, o brilho, o poder, são tanto maiores quanto mais alto houverem subido na escala das virtudes, das perfeições e, quanto maior tiver sido a sua dedicação em servir à causa do bem e da Humanidade. São estes seres, ou Espíritos, que se manifestam em todas as épocas da História e em todos os lugares, tendo como intermediários sensitivos especialmente dotados e que, conforme os tempos, se chamaram adivinhos, sibilas, profetas ou médiuns.

  As aparições que assinalam os primeiros tempos do Cristianismo, como as épocas bíblicas mais longínquas, não são fenómenos isolados, mas a manifestação de uma lei universal, eterna, que presidiu sempre às relações entre os habitantes dos dois mundos, o mundo da matéria grosseira, a que pertencemos e, o mundo fluídico invisível, povoado pelos Espíritos dos que denominamos, tão impropriamente, de mortos. (xi)

  Foi apenas em época recente que esta ordem de manifestações pôde ser estudada pela Ciência. Graças às observações de numerosos sábios, a existência do mundo dos Espíritos foi positivamente estabelecida e as leis que o regem foram determinadas com certa precisão.

  Conseguiu reconhecer-se a presença, em cada ser humano, de um duplo fluídico que sobrevive à morte, no qual foi reconhecido o envoltório imperecível do Espírito. Este duplo, que já se desprende durante o êxtase e o sono, que se transporta e opera à distância durante a vida, torna-se, depois da separação definitiva do corpo carnal e, de um modo mais completo, o instrumento fiel e o centro das energias activas do Espírito.

  Mediante este invólucro fluídico é que o Espírito preside a tais manifestações de além-túmulo, que já não são segredo para ninguém, desde que comissões científicas lhe estudaram os múltiplos aspectos, chegando a pesar e fotografar os Espíritos, como o fizeram W. Crookes com o Espírito de Katie KingRussell Wallace e Aksakof com os de Abdullah e John King. (xii)

  É provável que o dom das línguas, conferido aos apóstolos, oferecesse analogias com o fenómeno que, sob o nome de xenoglossia, actualmente conhecemos. A força ódica de Reichenbach e a matéria radiante explicam a auréola dos santos; as chamas ou “línguas de fogo”, que apareceram no dia de Pentecostes, reproduzem-se hoje em dia nos factos comunicados ao Congresso Espiritualista de 1900 pelo Doutor Bayol, senador pelo Distrito das Bocas do Ródano, (xiii) e finalmente as visões dos mártires são fenómenos da mesma ordem que os no nosso tempo observados no momento da morte de certas pessoas. (xiv) Assim, também, o desaparecimento do corpo de Jesus do sepulcro em que fora depositado, pode explicar-se pela desagregação da matéria, observada há alguns anos em sessões de experimentação psíquica. (xv)

  Durante muito tempo os homens não viram nisso senão factos miraculosos, provocados pelo próprio Deus ou pelos seus anjos, opinião cuidadosamente alimentada pelos padres, a fim de impressionar a imaginação das massas e torná-las mais submissas ao seu poder.

  Nas Escrituras encontramos exemplos frequentes dos erros de que foram objecto esses fenómenos. Em Patmos, João vê aparecer um génio que, a princípio, ele quer adorar, mas que lhe afirma ser o Espírito de um dos profetas seu irmão. (xvi) Neste caso, foi dissipado o erro; o Espírito deu a conhecer a sua personalidade; em quantos outros casos, porém, não foi ele mantido? É o mesmo que se dá com a intervenção, tão frequente, dos anjos da Bíblia. É preciso pormo-nos em guarda contra as tendências dos judeus e dos cristãos no sentido de atribuir a Deus e aos seus anjos fenómenos produzidos pelos Espíritos dos mortos e, a cujo respeito competia à nossa época fazer luz, restabelecendo-os na sua verdadeira categoria.

  Na época de Jesus, a crença na imortalidade estava enfraquecida. Os judeus encontravam-se divididos a respeito da vida futura. Os cépticos saduceus aumentavam em número e influência. Chegado Jesus. Torna mais amplas as vias de comunicação entre o mundo terrestre e o mundo espiritual. Aproxima a tal ponto os invisíveis dos humanos, que eles se podem corresponder novamente. Com mão possante levanta o véu da morte e surgem visões do âmago da sombra; no meio do silêncio fazem-se ouvir vozes; e essas visões e essas vozes vêm afirmar ao homem a imortalidade da vida.

  O Cristianismo primitivo afecta, pois, este carácter particular de ter aproximado as duas humanidades, a terrestre e a celeste; tornou mais intensas as relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Efectivamente, em cada grupo espírita, as pessoas se entregavam a evocações; havia médiuns falantes, inspirados, de efeitos físicos, como está escrito no capítulo XII da primeira epístola de Paulo aos Coríntios. Então, como hoje, certos sensitivos possuíam o dom da profecia, o dom de curar, o de expelir os maus Espíritos. (xvii)

  Na Epístola citada, S. Paulo fala também do corpo espiritual, imponderável, incorruptível:

  “O homem é colocado na terra como um corpo animal e, ressuscitará como um corpo espiritual; do mesmo modo que há um corpo animal, há um corpo espiritual.” (I Coríntios, XV, 44)

  Fora um fenómeno espírita, a aparição de Jesus no caminho de Damasco, o que havia feito de S. Paulo um cristão; (xviii) Paulo não conhecera o Cristo e, no momento dessa visão, que decidiu do seu destino, bem longe estava de se encontrar preparado para a sua ulterior tarefa. “Respirando sempre ameaças de morte contra os discípulos do Senhor”, munido contra eles de ordens de prisão, seguira para Damasco a fim de os perseguir. Neste caso, não cabe invocar, como a respeito dos apóstolos se poderia fazer, um fenómeno de alucinação, provocado pela constante recordação do Mestre. Esta visão, ao demais, não foi isolada; em todo o curso subsequente de sua vida, Paulo entreteve assíduas relações com o invisível, particularmente com o Cristo, de quem recebia as instruções indispensáveis à sua missão. Ele mesmo diz que haure inspirações nos colóquios secretos com o filho de Maria.

/…
(ii) Ver nota complementar nº 6 ( link para aceder à nota).
(iii) Em hebraico, o verdadeiro sentido da palavra anjo, melach, é de mensageiro.
(iv) O dom de profecia não consistia simplesmente em predizer o futuro, mas, de um modo mais extenso, em falar e transmitir ensinos sob a influência dos Espíritos.
(v) Ver, quanto ao conjunto desses fenómenos, a nota complementar n° 7 ( link para aceder à nota), sobre "Os factos espíritas na Bíblia".
(vi) Jesus tinha escolhido discípulos, não entre homens instruídos, mas entre sensitivos e videntes, dotados de faculdades mediúnicas.
(vii) Estes pormenores, que talvez surpreendam o leitor, não são o produto da nossa imaginação. Foram-nos comunicados por um alto Espírito, cuja vida esteve envolvida com a do Cristo. O mesmo se dá em muitas passagens deste livro.
(viii) João, XX, 15-17 e 24-28.
(ix) Ver a nota complementar nº 9 ( link para aceder à nota), sobre "O perispírito ou corpo fluídico".
(x) Clemente de Alexandria (i) refere uma tradição que circulava ainda no seu tempo, segundo a qual João enterrara a mão no corpo de Jesus e o atravessara sem encontrar resistência. ("Jesus de Nazareth", por Albert Réville, 2°- vol., nota à pág. 470).
(xi) Ver as minhas outras obras, especialmente, "Depois da Morte" e "No Invisível", "Espiritismo e Mediunidade".
(xii) W. Crookes, "Pesquisas sobre os fenómenos espíritas"; Russell Wallace, "O moderno espiritualismo"; Aksakof, "Animismo e Espiritismo". Relativamente a uma série de fenómenos análogos e mais recentes, ver também Léon Denis, "No Invisível", "Espiritismo e Mediunidade", cap. XX.
(xiii) Ver, "No Invisível", "Espiritismo e Mediunidade", pág. 332.
(xiv) Ver a morte de Estevão: Actos, VII, 55 e 56.
(xv) Ver, "No Invisível", pág. 346.
(xvi) Apocalipse, XIX, 10.
(xvii) Apocalipse, XIX, 10.
(xviii) Idem.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Relações com os Espíritos dos Mortos, 5 (I de II), 6º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

domingo, 24 de setembro de 2023

Léon Denis e o Cristianismo ~


A Doutrina Secreta ~

 Qual é a verdadeira doutrina do Cristo? Os seus princípios essenciais encontram-se claramente enunciados no Evangelho. É a paternidade universal de Deus e a fraternidade dos homens, com as consequências morais que daí resultam; é a vida imortal a todos franqueada e que a cada um permite em si próprio realizar “o reino de Deus”, isto é, a perfeição, pelo desprendimento dos bens materiais, pelo perdão das injúrias e o amor ao próximo.

 Para Jesus, numa só palavra, toda a religião, toda a filosofia consiste no amor:

 “Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam; para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus, o qual derrama o seu sol sobre os bons e os maus e, faz chover sobre os justos e os injustos. Porque, se não amais senão aos que vos amam, que recompensa deveis ter por isso?” (Mateus, V, 44 e seguintes.).

 Desse amor o próprio Deus nos dá o exemplo, porque os seus braços estão sempre abertos para o pecador:

 “Assim, o vosso Pai que está nos céus não quer que pereça um só desses pequeninos.”

 O sermão da montanha resume, em traços indeléveis, o ensino popular de Jesus. Nele está expressa a lei moral sob uma forma que nunca foi igualada.

 Os homens aí aprendem que não há mais seguros meios de elevação que as virtudes humildes e escondidas.

 “Bem-aventurados os pobres de espírito (isto é, os espíritos simples e rectos), porque deles é o reino dos céus. – Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. – Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. – Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. – Bem-aventurados os limpos de coração, porque esses virão a Deus.” (Mateus, V, 1 a 12; Lucas, VI, 20 a 25.)

 O que Jesus quer não é um culto faustoso, não são umas religiões sacerdotais, opulentas de cerimónias e práticas que sufocam o pensamento, não; é um culto simples e puro, todo de sentimento, consistindo na relação directa, sem intermediário, da consciência humana com Deus, que é o seu Pai:

 “É chegado o tempo em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, porque tal quer, também, sejam os que o adorem. Deus é espírito e, em espírito e verdade é que devem adorar os que o adoram.”

 O ascetismo é coisa vã. Jesus limita-se a orar e a meditar, nos sítios solitários, nos templos naturais que têm por colunas as montanhas, por cúpula a abóbada dos céus e, de onde o pensamento mais livremente se eleva ao Criador.

 Aos que imaginam salvar-se por meio do jejum e da abstinência, diz:

 “Não é o que entra pela boca o que macula o homem, mas o que por ela sai.”

 Aos rezadores de longas orações:

 “O Vosso Pai sabe do que careceis, antes de lho pedirdes.”

 Ele não exige senão a caridade, a bondade, a simplicidade: “Não julgueis e não sereis julgados. Perdoai e sereis perdoados. Sede misericordiosos como o vosso Pai celeste é misericordioso. Dar é mais doce do que receber”.

 “Aquele que se humilha será exaltado; o que se exalta será humilhado”.

 “Que a tua mão esquerda ignore o que faz a direita, a fim de que a tua esmola fique em segredo; e então o teu Pai que vê em segredo, te retribuirá.”

 E tudo se resume nestas palavras de eloquente concisão:

 “Amai o vosso próximo como a vós mesmos e sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. Nisso se encerram toda a lei e os profetas.

 Sob a suave e meiga palavra de Jesus, toda impregnada do sentimento da natureza, essa doutrina se reveste de um encanto irresistível, penetrante. Ela é saturada de terna solicitude pelos fracos e pelos deserdados. É a glorificação, a exaltação da pobreza e da simplicidade. Os bens materiais nos tornam escravos; agrilhoam o homem à Terra. A riqueza é um estorvo; impede o velo da alma e a retém longe do “reino de Deus”. A renúncia, a humildade, desatam esses laços e facilitam a ascensão para a luz.

 Por isso é que a doutrina evangélica permaneceu através dos séculos como a expressão máxima do espiritualismo, o supremo remédio aos males terrestres, a consolação das almas aflitas nesta travessia da vida, semeada de tantas lágrimas e angústias. É ainda ela que faz, a despeito dos elementos estranhos que lhe vieram misturar, toda a grandeza, todo o poder moral do Cristianismo.

 A doutrina secreta ia mais longe. Sob o véu das parábolas e das ficções, ocultava concepções profundas. No que se refere a essa imortalidade prometida a todos, definia-lhe as formas afirmando a sucessão das existências terrestres, nas quais a alma, reencarnada em novos corpos, sofreria as consequências de suas vidas anteriores e prepararia as condições do seu destino futuro. Ensinava a pluralidade dos mundos habitados, as alternâncias de vida de cada ser: no mundo terrestre, em que ele reaparece pelo nascimento, no mundo espiritual, ao qual regressa pela morte, colhendo num e noutro desses meios os frutos bons ou maus do seu passado. Ensinava a íntima ligação e a solidariedade desses dois mundos e, por conseguinte, a comunicação possível do homem com os espíritos dos mortos que povoam o espaço ilimitado.

 Daí o amor activo, não somente pelos que sofrem na esfera da existência terrestre, mas também pelas almas que em volta de nós vagueiam atormentadas por dolorosas recordações. Daí a dedicação que se devem às duas humanidades, a visível e a invisível, a lei de fraternidade na vida e na morte e a celebração do que chamavam “os mistérios”, a comunhão pelo pensamento e pelo coração com os que, Espíritos bons ou medíocres, inferiores ou elevados, compõem esse mundo invisível que nos rodeia e, sobre o qual se abrem esses dois pórticos por onde todos os seres alternativamente passam: o berço e o túmulo.

 A lei da reencarnação é indicada em muitas passagens do Evangelho e deve ser considerada sob dois aspectos diferentes: a volta à carne, para os Espíritos em via de aperfeiçoamento; a reencarnação dos Espíritos enviados em missão à Terra.

 No seu diálogo com Nicodemos, Jesus assim se exprime:

 “Em verdade te digo que, se alguém não renascer de novo, não poderá ver o reino de Deus.” Objecta-lhe Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo já velho?” Jesus responde: “Em verdade te digo que, se um homem não renasce da água e do espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne e, o que é nascido do espírito é espírito. Não te maravilhes de te dizer: importa-vos nascer outra vez. O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do espírito.” (João, III, 3 a 8.)

 Jesus acrescenta estas palavras significativas: “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?”

 O que demonstra que não se tratava do baptismo, que era conhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas precisamente da reencarnação já ensinada no “Zohar”, livro sagrado dos hebreus. (ii)

 Esse vento, ou esse espírito que sopra onde lhe apraz, é a alma que escolhe o novo corpo, a nova morada, sem que os homens saibam de onde vem, nem para onde vai. É a única explicação satisfatória.

 Na Cabala hebraica, a água era a matéria primordial, o elemento frutificado. Quanto à expressão Espírito Santo, que se encontra no texto e que o torna incompreensível, é preciso notar que a palavra santo nele não está na sua origem e que foi aí introduzida muito tempo depois, como se deu em vários outros casos. (iii) É preciso, por conseguinte, ler: renascer da matéria e do espírito.

 Noutra ocasião, a propósito de um cego de nascença, encontrado de passagem, os discípulos perguntam a Jesus:

 “Mestre, quem foi que pecou? Foi este homem, ou o seu pai, ou a sua mãe, para que ele tenha nascido cego?” (João, IX, 1 e 2).

 A pergunta indica, antes de tudo, que os discípulos atribuíam a enfermidade do cego a uma expiação (de uma vida anterior). No seu pensamento, a falta precedera a punição; tinha sido a sua causa primordial. É a lei da consequência dos actos, fixando as condições do destino. Trata-se aí de um cego de nascença; a falta não se pode explicar senão por uma existência anterior.

 Daí essa ideia da penitência, que reaparece a cada momento nas Escrituras: “Fazei penitência”, dizem elas constantemente, isto é, praticai a reparação, que é o fim da vossa nova existência; rectificai o vosso passado, espiritualizai-vos, porque não saireis do domínio terrestre, do círculo das provações, senão depois de “haverdes pagado até ao último ceitil.” (Mateus, V, 26).

 Em vão têm procurado os teólogos explicar doutro modo, que não é pela reencarnação, essa passagem do Evangelho. Chegaram a raciocínios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o sínodo de Amsterdão não pôde sair-se da dificuldade senão com este dizer: “o cego de nascença havia pecado no seio de sua mãe”. (iv)

 Era também opinião corrente, nessa época, que Espíritos eminentes vinham, em novas encarnações, continuar, concluir missões interrompidas pela morte. Elias, por exemplo, voltara à Terra na pessoa de João Baptista. Jesus afirma-o nestes termos, dirigindo-se à multidão:

 “Que saíste a ver? Um profeta? Sim, eu vo-lo declaro e, mais que um profeta. E, se o quereis compreender, ele é o próprio Elias que devia vir. – O que tem ouvidos para ouvir, ouça.” (Mateus, XI, 9, 14 e 15)

 Mais tarde, depois da decapitação de João Baptista, ele repete-o aos discípulos:

 “E os seus discípulos o interrogam, dizendo: Porque, pois, dizem os escribas que importa vir primeiramente Elias? – Ele, respondendo, lhes disse:”

 “Elias, certamente, devia vir e restabelecer todas as coisas. Mas eu vo-lo digo: Elias já veio e eles não o conheceram, antes lhe fizeram quanto quiseram. – Então, conheceram os seus discípulos que de João Baptista é que ele lhes falara.” (Mateus, XVII, 10, 11, 12 e 15).

 Assim, para Jesus, como para os discípulos, Elias e João Baptista eram a mesma e uma única individualidade. Ora, tendo essa individualidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante facto não se pode explicar senão pela lei da reencarnação.

 Numa circunstância memorável, Jesus pergunta aos seus discípulos: “Que dizem do filho do homem?”

 E eles lhe respondem:

 “Uns dizem: é João Baptista; outros, Elias; outros, Jeremias ou um dos profetas.” (Mateus, XVI, 13, 14; Marcos, VIII, 28)

 Jesus não protesta contra essa opinião como doutrina, do mesmo modo que não protestara no caso do cego de nascença. Ao demais, a ideia da pluralidade das vidas, dos sucessivos graus a percorrer para se elevar à perfeição, não se encontra implicitamente contida nestas palavras memoráveis: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” Como poderia a alma humana alcançar esse estado de perfeição em uma única existência?

 De novo encontramos a doutrina secreta, dissimulada sob os véus mais ou menos transparentes, nas obras dos apóstolos e dos padres da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes dela falar abertamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.

 Aos primeiros fiéis escrevia Barnabé:

 “Tanto quanto pude, acredito ter-me explicado com simplicidade e nada haver omitido do que pode contribuir para a vossa instrução e salvação, no que se refere às coisas presentes, porque, se vos escrevesse relativamente às coisas futuras, não compreenderíeis, porque elas se encontram expostas em parábolas.” (Epístola católica de São Barnabé, XVII, l, 5).

 Em observância a esta regra é que um discípulo de São PauloHermas, descreve a lei das reencarnações sob a figura de “pedras brancas, quadradas e lapidadas”, tiradas da água para servirem na construção de um edifício espiritual. (Livro do Pastor, III, XVI, 3, 5).

 “Porque foram essas pedras tiradas de um lugar profundo e em seguida empregadas na estrutura dessa torre, pois que já estavam animadas pelo espírito? – Era necessário, diz-me o senhor, que, antes de serem admitidas no edifício, fossem trabalhadas por meio da água. Não poderiam entrar no reino de Deus por outro modo que não fosse despojando-se da imperfeição da sua primeira vida.”

 Evidentemente essas pedras são as almas dos homens; as águas (v) são as regiões obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas de dor e provação, durante as quais as almas são lapidadas, polidas, lentamente preparadas, a fim de tomarem lugar um dia no edifício da vida superior, da vida celeste. Há nisso um símbolo perfeito da reencarnação, cuja ideia era ainda admitida no século III e divulgada entre os cristãos.

 Dentre os padres da Igreja, Orígenes é um dos que mais eloquentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das existências. Respeitável a sua autoridade. São Jerónimo considera-o, “depois dos apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade – diz ele – que só a ignorância poderia negar”. S. Jerónimo vota tal admiração a Orígenes que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele foi alvo, uma vez que, por esse preço, ele, Jerónimo, pudesse ter a sua profunda ciência das Escrituras.

 No seu livro célebre, “Dos Princípios”, Orígenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostram, na preexistência e sobrevivência das almas noutros corpos, numa palavra, na sucessão das vidas, o correctivo necessário à aparente desigualdade das condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao sofrimento moral que parece reinarem no mundo, se já não se admite uma única existência terrestre para cada alma. Orígenes erra, todavia, num ponto. É quando supõe que a união do espírito ao corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a necessidade da educação das almas e a laboriosa realização do progresso.

 Errónea opinião se introduziu em muitos centros, a respeito das doutrinas de Orígenes, em geral e, da pluralidade das existências em particular, que pretendem ter sido condenadas, primeiro pelo concílio de Calcedónia e mais tarde pelo quinto concílio de Constantinopla. Ora, se remontamos às fontes, (vi) reconhecemos que esses concílios repeliram, não a crença na pluralidade das existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensinava Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza angélica.

 Na realidade, a questão da pluralidade das existências da alma nunca foi resolvida pelos concílios. Permaneceu aberta às resoluções da Igreja no futuro e é esse um ponto que é necessário estabelecer.

 Como a lei dos renascimentos, a pluralidade dos mundos se encontra indicada no Evangelho, em forma de parábola:

 “Há muitas moradas na casa de meu Pai. Eu vou a preparar-vos o lugar e, depois que tiver ido e vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver, vós estejais também.” (João, XIV, 2 e 3)

 A casa do Pai é o céu infinito; as moradas prometidas são os mundos que percorrem o espaço, esferas de luz ao pé das quais a nossa pobre Terra não é mais que um mesquinho e obscuro planeta. É para esses mundos que Jesus guiará as almas que se ligarem a ele e à sua doutrina, mundos que lhe são familiares e onde nos saberá preparar um lugar, conforme os nossos méritos.

 Orígenes comenta essas palavras em termos positivos:

 “O Senhor faz alusão às diferentes estações que devem as almas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos actuais e se tiverem revestido de outros novos.”

/…
(ii) Ver a nota complementar nº 5. ( link para aceder à nota)
(iii) Ver Bellemare, "Espírita e Cristão", págs. 351 e seguintes.
(iv) Ver nota complementar n° 5. ( link para aceder...)
(v) Essa parábola adquire maior relevo pelo facto de ser a água, para os judeus cabalista, a representação da matéria, o elemento primitivo, o que chamaríamos hoje o éter cósmico.
(vi) Ver Pezzani, "A pluralidade das existências", páginas 187 e 190.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – A Doutrina Secreta, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

sábado, 19 de agosto de 2023

~ em torno do mestre


Humildes de espírito ~

  Jesus (i), no sermão da montanha — que bem se pode denominar a plataforma ou o programa de sua obra de redenção — começou proferindo a seguinte sentença: "Bem-aventurados os humildes de Espírito, porque deles é o reino dos céus". (Mateus, 5:3.)

  Porque humildes de Espírito? Bem-aventurados os humildes não seria o bastante? Porque a redundância — humildes de Espírito? Qual o motivo dessa superabundância de palavras? Simplesmente porque há várias formas de humildade; porém, só a de Espírito é que faz jus ao reino dos céus.

  Há pessoas humildes de aspecto, de posição social, de haveres, de profissão, de trajes, de fisionomia, mas que o não são de Espírito.

  Outras há cujas palavras e gestos, manifestando simplicidade e doçura, afecto e humildade, mal-escondem a soberba que domina os seus corações. A verdadeira humildade, como aliás todas as virtudes, vem do íntimo. O exterior nem sempre traduz o interior.

  Há um grande número de maltrapilhos e de mendigos orgulhosos. Existem, outrossim, embora excepcionalmente, exemplos de humildade entre pessoas abastadas, que ocupam posições de destaque. Há também sábios humildes, que constituem honrosas excepções à regra geral que impera entre os letrados e os eruditos. A ignorância petulante e enfatuada é coisa vulgar e corriqueira.

  Até entre os chamados ministros do Cristo se encontram orgulhosos impenitentes, compenetrados da ideia de supremacia e convencidos de que só a eles cabem determinados privilégios de ordem e carácter divinos.

  A moral cristã, em muita gente, não passa da esfera do entendimento, da região puramente mental; jamais atinge o círculo do sentimento, a zona do coração. É do coração, no entanto, que vêm o bem ou o mal, a virtude ou o vício.

  O orgulho, sob os seus aspectos multiformes, é a grande pedra de tropeço da Humanidade. É o pecado original, que os mortais trazem consigo, ao aportarem às plagas deste mundo. Daí a origem de todos os atritos, dissídios e odiosidades que mantêm os homens em atitude de mútuas hostilidades.

  A virtude, como alguém já disse, exclui os cálculos: é espontânea, natural. Os humildes de posição, de saber, ou de haveres estão sujeitos às circunstâncias que os cercam na presente existência. Não há mérito nem virtude por isso, além do modo como suportam e se submetem às inevitáveis condições de precariedade em que se encontram.

  A humildade de espírito, ao contrário, é fruto de uma conquista, de certo estado de elevação moral da alma. E, graças a essa virtude, o Espírito pode avançar com passo seguro na realização dos seus gloriosos destinos. O orgulho não só oblitera o entendimento, senão que impossibilita o Espírito de receber as inspirações e as graças emanadas do alto.

  Não é possível aprender sem possuir humildade de coração. Quem é humilde reconhece que ignora e está sempre pronto a assimilar os ensinamentos que o céu outorga aos mortais, por este ou aquele processo.

  A inibição mental é, as mais das vezes, consequência directa do orgulho. A senda da virtude, como o caminho da sabedoria, só podem ser perlustrados pelos humildes de espírito.

  O orgulho é um entrave do espírito em todos os sentidos. É o legítimo obstáculo às reconciliações, ao perdão, à unidade na fé e na ciência. Consequentemente é o factor da discórdia, desde o simples arrefecimento de afectos, até ao ódio que separa, persegue e mata; é a eterna cizânia, que mantém os homens separados, intranquilos, sobressaltados; é o dispersador de forças e de elementos prestáveis e úteis, que poderiam militar conjuntamente com grande eficiência, em prol das boas causas; é finalmente, o fermento que neutraliza as intenções e as aspirações elevadas de muitos, conservando-os na esterilidade.

  Razão, pois, de sobra assiste ao divino Instrutor da Humanidade, subordinando à humildade de espírito todas as bênçãos celestes, como também o acesso aos tabernáculos eternos.

Tentação ~

  1ª FORMA: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães, visto que tens fome.

  Resposta: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. (Lucas, 4:3 e 4)

  Moralidade: A fraqueza da carne é uma das portas abertas às tentações. Por ela o Diabo penetra, agindo com grande êxito. Essa porta denomina-se luxúria ou incontinência, gulodice ou intemperança e, tudo o mais que se relaciona com as sensações físicas, cuja sede é a matéria.

  É do domínio da carne sobre o espírito que se originam todos os vícios repugnantes, tais como o alcoolismo, a concupiscência, a gula, o tabagismo, a cocainomania.

  O corpo, quando não é dirigido pelo Espírito, destrói-se a si mesmo através das continuadas sensações e exaltações a que se submete. Daí o dizer profundamente sábio do Mestre: Aquele que muito quer gozar a vida, perdê-la-á; o que renunciar, porém, à vida, por amor de mim, ganhá-la-á.

  Todas as doenças têm origem nas fraquezas da carne, as quais levam o homem a transgredir constantemente as leis de higiene, leis naturais e, por isso mesmo, religiosas. A enfermidade é herança do pecado — reza o Evangelho.

  A matéria não raciocina, não tem inteligência nem discernimento. É sede, apenas, de sensações. Do abuso dessas sensações nascem as exigências caprichosas da animalidade, as quais arrastam o homem ao pélago dos vícios e à voragem do crime.

  Como sair de tal situação? como dominar a carne, fechando assim ao "Diabo" uma das portas por onde tantas vezes consegue levar a cabo os seus malévolos intentos?

  Vence-se a carne não lhe concedendo tanta atenção, não atendendo aos seus arrastamentos e caprichos; fortificando, enfim, o Espírito com o pão do céu, que é a palavra de Deus, a verdade eterna revelada ao mundo pelo seu Verbo humanado — Jesus-Cristo.

  Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (1), eis de que os homens se esquecem, embevecidos como geralmente andam com os cuidados do corpo. Os que só vivem da carne e para a carne, ficam sujeitos às fraquezas da carne.

  O remédio é a palavra de Deus — é o pão do Espírito, pois este, como o corpo, também tem fome e tem sede, necessidades estas que precisam ser satisfeitas. Fortalecer ao máximo o Espírito, dando ao corpo tão somente o necessário para sua conservação — eis a chave com que se cerra para sempre uma das portas por onde o "Diabo" costuma penetrar. Assim procedendo, curaremos também da matéria. Graças à direcção do Espírito, o corpo se embelezará, far-se-á forte, alcançando longevidade acentuada.

  2.ª FORMA: Galgando o pináculo do templo, disse-lhe o Diabo: Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque escrito está: Aos seus anjos ordenará a teu respeito e, eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares em alguma pedra.

  Resposta: Também escrito está: Não tentarás o Senhor teu Deus. (Lucas, 4:9 a 12.)

  Moralidade: O orgulho com as suas modalidades — presunção, arrogância, vaidade, soberba — constitui a segunda porta por onde o Diabo ingressa, arrastando o homem a quedas desastrosas.

  O orgulho é um desafio que o homem faz à Divindade. Desse acto de insânia ele sai sempre vencido e desapontado.

  Daí a justeza desta sentença evangélica: Aquele que se exalta será humilhado.

  Nenhuma paixão exerce tão nefasta influência sobre o homem como o orgulho, cujas raízes estão mergulhadas nas profundezas do egoísmo. Por esta razão é difícil vencê-lo, como também porque assume aspectos multiformes e enganadores.

  O orgulho não é peculiar somente à gentilidade. Ele invade a região da fé, penetra o coração do crente, chegando mesmo a alimentar-se da própria crença de suas vítimas.

  E de quantas formas se reveste! Ora é a cólera rubra que cega o entendimento, que enfurece ao ponto de nivelar o homem à fera bravia. Ora é a presunção arrogante que lhe oblitera a mente e calcina as fibras do coração. Ora é a confiança ilimitada em si mesmo, em pretensos dons e qualidades, na infalibilidade de seus juízos próprios, na superioridade excelsa de sua inteligência. Ora, ainda, na exagerada susceptibilidade de sentimentos, descobrindo por toda a parte desatenções, ofensas e desprezo à sua augusta personalidade. Ora, finalmente, na atitude de hostilidade ou desdém para com todos os empreendimentos e todos os feitos onde a actuação própria não foi exercida, onde o seu juízo não foi emitido nem consultado.

  E, assim, o orgulho envolve o homem numa trama perigosa e traiçoeira, chegando ao prodígio de fazer com que haja quem se orgulhe de ser bom, de possuir certas virtudes e até de ser humilde!

  Se és Filho de Deus, lança-te do pináculo abaixo, pois os anjos te ampararão: eis o desafio dirigido a Deus, às suas leis sábias e imutáveis. É como se dissesse: Homem, és santo e bom; és poderoso e sábio; não deves temer os males, sejam eles quais forem.

  Não te deves incomodar com coisa alguma; não é preciso providência, nem cautelas, nem prudência. Deixa o vigiar e orar para os fracos e pusilânimes; os anjos velarão por ti, impedindo que sejas vítima de mistificações, evitando, enfim, que qualquer dano possa alcançar-te. Arroja-te, sê ousado e intimorato; tens em ti mesmo todo o poder, todo o valor, toda a sabedoria! Assim fala o orgulho, desafiando as leis naturais e provocando a reacção que se não faz demorar: a humilhação do orgulhoso.

  Como nos livrarmos de inimigo que se mascara assim para nos vencer?

  Guardando na mente e no coração a advertência do Mestre: Não tentarás o Senhor teu Deus, isto é, serás sempre humilde, reconhecendo a tua ignorância e fraqueza, através do estudo constante que deves fazer de ti mesmo; agirás sempre com prudência e calma, prevenindo tudo o que estiver ao teu alcance e jamais abusando dos dons e faculdades de teu Espírito; orarás e vigiarás constantemente, pois assim estarás estabelecendo a tua comunhão com a fonte de todo o poder que é Deus, esse Deus a quem nunca desafiarás deixando-te possuir da louca pretensão de submetê-lo aos teus caprichos e veleidades. Dessa sorte, terás fechado outra porta por onde o "Diabo", a cada passo, penetra, invadindo os teus domínios.

  3.ª FORMA: De novo o Diabo o levou a um monte muito alto e, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e, disse-lhe: Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.

  Resposta: Vai-te Satã; pois está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e, só a ele darás culto. (Mateus, 4:8 a 10.)

  Moralidade: A cobiça, a ambição desmedida o apego às riquezas e à fascinação do poder e das glórias mundanas são, em conjunto, a terceira porta aberta às investidas do Diabo.

  Ser idólatra não importa somente no feiticismo que consiste em render culto às imagens. A idolatria mais perniciosa é aquela que se verifica na avareza, no apego às temporalidades, na sede de poder e de gloríolas do século; e, finalmente, na adoração de si mesmo ou egolatria.

  Indescritíveis e inumeráveis são os crimes perpetrados no mundo pela ambição aliada à cobiça. Crimes individuais e crimes colectivos. As guerras cruentas que ensoparam a Terra, por vezes, de sangue e de lágrimas, estendendo o negro véu da viuvez e da orfandade sobre milhares de mulheres e crianças, não têm outra origem, nem outra explicação além da cupidez de corações ávidos de ouro e de pruridos de hegemonia.

  As barreiras alfandegárias que encarecem e dificultam a vida das nações; o despotismo dos governos imperialistas; as tiranias oligárquicas e ditatoriais; todos os vexames e sacrifícios que se têm imposto impiedosamente aos povos, são legítimos frutos dessa insaciável sede de domínio, de glórias e de supremacias, sede maldita que oblitera a razão e destrói as fibras do sentimento humano.

  Por isso, dizia o Apóstolo das gentes:

  A raiz de todos os males é a cobiça.

  E aconselhava: Não vos fascineis com as grandezas: acomodai-vos às coisas humildes.

  Satã entronizou o bezerro de ouro e, com esse manipanso vai enlouquecendo homens e nações. Do alto do monte das ambições o "Diabo" tem precipitado indivíduos e povos, depois de lhes haver prometido o sempre cobiçado domínio da Terra. No que respeita ao passado, sabemos que a Babilónia, o Egipto, a Grécia e a Roma dos Césares se despenharam no abismo. Quanto ao presente, vimos os Impérios Centrais, qual nova Cafarnaum, querendo galgar as nuvens, cair no pó.

  Cumpre, portanto, fecharmos a terceira porta atendendo ao conselho do Mestre: Ao senhor teu Deus adorarás e, só a ele darás culto.

  Adorar a Deus e só a ele prestar culto significa amar o próximo como a si mesmo e viver segundo a justiça. Esta é a realidade da vida. O "Diabo" continua, hoje como ontem, iludindo o homem com falaciosas promessas. O mundo não é propriedade do Diabo nem o será jamais dos ambiciosos. O homem é apenas usufrutuário da Terra por tempo incerto e limitado. O melhor uso que ele pode fazer de sua estada, nesta estância da vida, é iluminar o Espírito e fortalecer a vontade, fechando ao Diabo as portas da fraqueza da carne, do orgulho e da cobiça.

  Desse modo proclamará a sua independência, adorando e servindo a Deus através do culto da justiça, do amor e da verdade.

Ressurreição ~

  Vivemos no mundo da ilusão. A verdade não está naquilo que vemos, mas precisamente no que não vemos. Atrás do que cai sob o domínio de nossos olhos é que ela se oculta. Jogando com as faculdades do Espírito e, não com os sentidos, é que se surpreende a realidade das coisas.

  Ainda hoje há muita gente que supõe a Terra fixa, porque não a vê mover-se. Outros há que imaginam as cores como propriedade dos corpos; e se lhes dissermos que as cores não existem, são aparências ou impressões particulares produzidas na retina pela luz, segundo a sua natureza própria ou segundo a maneira como é reflectida pelos corpos duvidarão da nossa integridade mental.

  São conhecidos os fenómenos denominados — miragem — que se observam nos desertos arenosos da África, onde o viandante, por ilusão de óptica, vê nitidamente na atmosfera a imagem de objectos distantes e, até mesmo cidades, oásis, lagos, etc. E assim somos enganados a cada instante pelos nossos sentidos a propósito daquilo que nos afecta como expressão de realidade e, não passa de ficções...

  Dentre todas as ilusões que nos cercam, a maior e a de mais sérias consequências é a morte. Nada nos parece mais real e verdadeiro do que ela. É o epílogo fatal da vida, segundo o juízo geral. A própria ciência oficializada, longe de combater esse funesto erro, é a primeira a fortalecê-lo, apresentando pretensas documentações em seu abono. Não lhe aproveitam, neste particular, os exemplos do passado com respeito às muitas quimeras e fantasias sustentadas e difundidas como dogmas intangíveis pelo ensino escolástico da época.

  E, por ser assim, a morte, no sentido em que é considerada, vem gozando foros de realidade inconteste, de facto inconfundível e inexorável, não passando, no entanto, da maior de todas as ilusões de que a Humanidade tem sido e continua sendo vítima.

  Já disse alguém, com bastante justeza, que a pior mentira é a que mais se parece com a verdade. A morte está exactamente nesta condição; parecendo, segundo todos os aspectos, a última palavra no cenário da existência humana, não é mais que simples dissimulação da vida.

  A vida — eis a realidade verdadeira. É ela que vence, é ela que triunfa sempre, sobrepondo-se a todas as metamorfoses, a todas as contingências a que se submete na sua maravilhosa trajectória pela senda da eternidade.

  A vida não é o que vemos: o que vemos são apenas as suas manifestações através das formas organizadas. Quereis saber o que é a alma? dizia Santo Agostinho, olhai um corpo sem ela, O corpo com todos os seus órgãos; o corpo intacto, completo e perfeito não passa de um cadáver se lhe escapa a alma, sede da vida. Sem que lhe falte coisa alguma do que se vê, falta-lhe tudo, porque lhe falta a vida que se não vê.

  A semente nos oferece outro exemplo edificante. Divida-se em algumas fracções uma semente em óptimas condições germinativas. Reunindo cuidadosamente essas partes, sem que das mesmas se perca a mais insignificante parcela, reconstitua-se a semente e, lance-se à terra: jamais germinará. Porquê? Porque ao fragmentá-la evolou-se aquilo que os nossos olhos não vêem e, que é tudo: a vida.

  A vida não é a forma organizada, por mais complexa que essa forma seja. Ora, como vemos a forma e não vemos a vida que a anima, tomamos, por isso, o efeito pela causa, concedendo à morte o império sobre a vida, quando, na verdade, é esta que fatalmente reina sobre aquela.

  Difícil, no entanto, tem sido convencer o homem deste facto. A ilusão da morte dominou-o de tal maneira que ele se obstina em considerá-la como flagrante realidade.

  Sendo a ressurreição, como é, um fenómeno natural que a cada instante se opera, no meio em que nos encontramos, é ainda considerada como utopia pela ciência mundana e, como milagre pela fé dogmática.

  A passagem do Homem-Deus pela Terra, assinalando o acontecimento mais extraordinário da História humana, teve por objecto, em síntese, revelar ao homem a imortalidade através de um testemunho positivo, palpável, categórico.

  Jesus (i) veio a este mundo exemplificar o poder da vida sobre a morte; morreu para que todos vissem como se morre; ressuscitou para que todos vissem como se ressuscita. O epílogo de sua existência terrena não foi a agonia do Calvário: foi a ascensão de Betânia. Da mesma sorte, o triunfo majestoso do seu ideal não se verificou no patíbulo da cruz, mas sim nas suas aparições a Madalena, aos dois peregrinos de Emaús e, finalmente, aos apóstolos no cenáculo de Jerusalém.

  O Cristianismo é, por excelência, a religião da vida em oposição às religiões da morte. "Deixai aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos. Deus, não é Deus de mortos: para Ele todos vivem" — assim predicava o Mestre divino. Não obstante, os seus discípulos, testemunhas oculares da imortalidade manifesta no seu Mestre, dificilmente se renderam à evidência dessa revelação, a maior certamente de todas que, na sua misericórdia, o céu tem outorgado à Terra.

  Paulo (i), o insigne pioneiro da nova fé, convertido pelo Cristo redivivo, insistia continuamente sobre a imortalidade, fazendo girar em torno desse assunto todas as suas prédicas e epístolas.

  Jesus (i) ressuscitou: eis a nova alvissareira para a Humanidade Eis a esperança — mais que a esperança — eis a fé; mais que a fé, eis a certeza, eis o facto positivo e palpável da continuidade da vida além do túmulo.

  É necessário, acentuava o Converso de Damasco, que este corpo corruptível se revista de incorruptibilidade; que esta forma mortal se revista de imortalidade. Semeia-se em vileza, ressuscita-se em glória. O derradeiro inimigo a vencer é a morte. Quando, pois, este nosso corpo perecível e mortal se revestir de glória e de imortalidade, então diremos: tragada foi a morte na vitória! Onde está, ó morte, o teu poder?

  São essas palavras de vida que as vozes do céu hoje rememoram, anunciando e testemunhando mais uma vez a eterna verdade; nada morre, nada se extingue, nada se aniquila na Natureza. É a vida e, não a morte, que domina a criação, entoando o cântico sublime da imortalidade. É o Espírito que vence a morte e, não a morte que vence o Espírito.

  A própria matéria não é destruída na mais pequenina parcela. O seu aniquilamento é aparente, é ilusório; as formas se desfazem para se organizarem em seguida sob aspectos novos e mais aperfeiçoados. A ressurreição é a aurora perenal que envolve o Universo; é o sol da vida, sol sem ocaso, pairando majestoso no Levante sempiterno.

  Hosanas a Jesus ressuscitado, imagem da vida eterna, testemunho vivo da imortalidade, símbolo da vitória do Espírito sobre as formas perecíveis!

  Tu és, como bem o disseste, a ressurreição e a vida; o que crê em ti, ainda que esteja morto, viverá; e todo o que vive e crê em ti, nunca morrerá!

/...
(1) Deus/Inteligência organizadora. Adenda desta publicação.

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra.”

                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i), "Em torno do Mestre", Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Humildes de espírito / Tentação / Ressurreição, 17º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)  

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Léon Denis e o Cristianismo ~


Sentido oculto dos Evangelhos ~ 

 Uma certa escola atribui ao Cristianismo em geral e, aos Evangelhos em particular, um sentido oculto e alegórico. Alguns pensadores e filósofos chegaram mesmo a negar a existência de Jesus, vendo nele, nas suas palavras, nos factos de sua vida, uma ideia filosófica, uma abstracção a que foi dado um corpo, para satisfazer a tradição que ao povo judeu anunciava um salvador, um Messias. 

 Na sua opinião, não passaria a história de Jesus de um drama poético, representando o nascimento, a morte e a ressurreição da ideia libertadora no seio do povo hebreu escravizado, ou ainda uma série de figuras imaginadas para tornar perceptível às massas o lado prático e social do Cristianismo, a associação dos tipos divino e humano num modelo de perfeição, oferecido à admiração dos homens. 

 Aceite semelhante tese, os Evangelhos deveriam ser considerados fábulas, invenções. O poderoso movimento do Cristianismo teria tido como ponto de partida uma impostura. Há nisso uma evidente exageração. Se a vida de Jesus não é mais que uma ficção, como pôde ser acolhida pelos seus contemporâneos, a princípio e, depois por uma longa série de gerações? 

 Quais seriam, pois, os verdadeiros fundadores do Cristianismo? Os apóstolos? Eram incapazes de tais concepções. Com excepção de Paulo, que encontrou uma doutrina já constituída, a incapacidade deles é evidente. A personalidade eminente de Jesus destaca-se, vigorosamente, do fundo da mediocridade dos seus discípulos. A menor comparação faz sobressair a impossibilidade de semelhante hipótese. 

 Não foi difícil, nos Evangelhos, distinguir as adições dos cristão-judeus, as quais denunciam claramente a sua origem e, formam contraste flagrante com as palavras e a doutrina de Jesus. (ii) Daí resulta um facto evidente, o de que autores imbuídos a, esse respeito, de ideias supersticiosas e acanhadas eram incapazes de inventar uma personalidade, uma doutrina, uma vida, uma morte como as de Jesus. 

 Nesse mundo judaico, sombrio e exclusivista, em que reinavam o ódio e o egoísmo, a doutrina do amor e da fraternidade só podia emanar de uma inteligência sobre-humana. 

 Se as Escrituras fossem, no seu conjunto, não mais que um amontoado de alegorias, uma obra de imaginação, a doutrina de Jesus não teria podido manter-se através dos séculos, no meio das correntes opostas que agitaram a sociedade cristã. A construção sem alicerce, ter-se-ia desagregado, desmoronado, batida pelo furacão dos tempos. Entretanto, ela ficou de pé e domina os séculos, a despeito das alterações sofridas, a despeito de tudo o que os homens fizeram para desfigurá-la, para submergi-la nas vagas de uma interpretação errónea. 

 A crença num mito não teria sido suficiente para inspirar aos primeiros cristãos o espírito de sacrifício, o heroísmo em face da morte; não lhes teria proporcionado os meios de fundar uma religião que dura há vinte séculos. Só a verdade pode desafiar a acção do tempo e conservar a sua força, a sua moral, a sua grandeza, não obstante os esforços de sapa que procuram arruiná-la. Jesus é, positivamente, a pedra angular do Cristianismo, a alma da nova revelação. Ele constitui toda a sua originalidade. 

 Além disso, não faltam testemunhos históricos da existência de Jesus, posto que em reduzido número. 

 Suetónio, na história dos primeiros Césares, fala do suplício de “Christus”. Tácito e ele mencionam a existência da seita cristã entre os judeus, antes da tomada de Jerusalém por Tito

 O Talmude (i) fala da morte de Jesus na cruz e todos os rabinos israelitas reconhecem o alto valor desse testemunho. (iii) 

 Em caso de necessidade, o próprio Evangelho, só por si, bastaria para fornecer a prova moral da existência e da elevada missão do Cristo. Se numerosos factos apócrifos nele foram mais tarde introduzidos, se as superstições judaicas ali se encontram sob a forma de narrativas fantasistas e teorias obsoletas, duas coisas nele subsistem, que não poderiam ser inventadas e apresentam um carácter de autenticidade que se impõe: – o drama sublime do Calvário e a doce e profunda doutrina de Jesus. 

 Essa doutrina era simples e clara nos seus princípios essenciais; dirigia-se à multidão, sobretudo aos deserdados e aos humildes. Tudo nela era feito para mover os corações, para arrebatar as almas até ao entusiasmo, iluminando, fortalecendo as consciências. Todavia, ela manifesta os sinais de um ensino oculto. Jesus fala muitas vezes por parábolas. O seu pensamento, de ordinário tão luminoso, mergulha por vezes na meia obscuridade. Não se percebem, então, mais que os vagos contornos de uma grande ideia dissimulada sob o símbolo. 

 É o que ele próprio explica por estas palavras, quando, citando Isaías (cap. VI, 9), acrescenta: 

 “Eu lhes falo por parábolas, porque a vós vos é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é concedido.” (Mateus, XIII, 10 e 11.) 

 É evidente que havia duas doutrinas no Cristianismo primitivo: a destinada ao vulgo, apresentada sob formas acessíveis a todos e, a outra oculta, reservada aos discípulos e iniciados. É o que, de resto, existia em todas as filosofias e religiões da antiguidade. (iv) 

 A prova da existência desse ensino secreto encontra-se nas palavras já citadas e nas que mencionamos a seguir. Logo depois da parábola do semeador, que se encontra nos três evangelhos sinópticos, os discípulos perguntam a Jesus o sentido dessa parábola e ele lhes responde: 

 “A vós é concedido saber o mistério do reino de Deus; mas, aos que são de fora, tudo se lhes propõe em parábolas; 

 “Para que, vendo, vejam e não vejam e ouvindo, ouçam e não entendam.” (Marcos, IV, 11 e 12; Lucas, VIII, 10.). 

 São Paulo (i) confirma-o na sua primeira Epístola aos Coríntios, capítulo III, quando distingue a linguagem a usar com homens carnais ou com homens espirituais, isto é, com profanos ou com iniciados. 

 A iniciação era indubitavelmente gradual. Os que a recebiam eram ungidos e, depois de haverem recebido a unção, entravam na comunhão dos santos. É o que torna compreensíveis estas palavras de João

 “Vós tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas. Eu não vos escrevi como se ignorásseis a verdade, mas como a quem a conhece.” (1ª Epístola de João, cap. II, 20, 21 e 27.). (v) 

 Ao tempo da sua controvérsia com CelsoOrígenes defendeu energicamente o Cristianismo. Na sua vigorosa apologia, fala muitas vezes dos ensinos secretos da nova religião. Tendo-a Celso arguído de possuir um cunho misterioso, Orígenes refuta essas críticas, provando que, se em certos assuntos especiais só os iniciados recebiam um ensino completo, a doutrina cristã, por outro lado, no seu sentido geral era acessível a todos. E a prova – disse ele – é que o mundo inteiro (ou pouco falta) está mais familiarizado com essa doutrina que com as opiniões predilectas dos filósofos. 

 Esse duplo método de ensino – prossegue ele, em síntese – é, ao demais, adoptado em todas as escolas. Por que fazer por isso uma censura unicamente à doutrina cristã? Os numerosos mistérios, por toda a parte celebrados na Grécia e noutros países, não são por todos geralmente admitidos? 

 O fundador do Cristianismo não separava a ideia religiosa da sua aplicação social. O “reino dos céus” era, para ele, essa perfeita sociedade dos espíritos, cuja imagem desejaria realizar na Terra. Mas ele devia ir ao encontro dos interesses estabelecidos e suscitar em torno de si mil obstáculos, mil perigos. Daí, um novo motivo para ocultar no mito, no milagre, na parábola, o que na sua doutrina ia ferir as ideias dominantes e ameaçar as instituições políticas ou religiosas. 

 As obscuridades do Evangelho são, pois, calculadas, intencionais. As verdades superiores nele se ocultam sob véus simbólicos. Aí se ensina ao homem o que lhe é necessário para se conduzir moralmente na prática da vida; mas o sentido profundo, o sentido filosófico da doutrina, esse é reservado à minoria. 

 Nisso consistia a “comunhão dos santos”, a comunhão dos pensamentos elevados, das altas e puras aspirações. Essa comunhão pouco durou. As paixões terrenas, as ambições, o egoísmo, bem cedo a destruíram. A política se introduziu no sacerdócio. Os bispos, de humildes adeptos, de modestos “vigilantes” que eram a princípio, se tornaram poderosos e autoritários. Constituiu-se a teocracia; a esta, pareceu de interesse colocar a luz debaixo do alqueire e a luz se extinguiu. O pensamento profundo desapareceu. Só ficaram os símbolos materiais. Essa obscuridade tornava mais fácil governar as multidões. Preferiram deixar as massas mergulhadas na ignorância a elevá-las às eminências intelectuais. Os mistérios cristãos cessaram de ser explicados aos membros da Igreja. Foram mesmo perseguidos como hereges os pensadores, os investigadores sinceros, que se esforçavam por adquirir novamente as verdades perdidas. Fez-se noite cada vez mais espessa sobre o mundo, depois da dissolução do Império Romano. A crença em Satanás e no inferno adquiriu lugar preponderante na fé cristã. Em vez da religião de amor pregada por Jesus, o que prevaleceu foi a religião do terror. 

 A invasão dos bárbaros havia poderosamente contribuído para fazer surgir esse estado de coisas. Ele fez voltar a sociedade ao estado de infância, porque os bárbaros invasores, do ponto de vista da razão, não passavam de crianças. Do seio das vastas estepes e das extensas florestas, o mundo bárbaro se arremessava sobre a Civilização. Todas essas multidões, ignorantes e grosseiras, que o Cristianismo aliciou, produziram no mundo pagão em decadência e no novo meio, em que penetravam, uma depressão intelectual. 

 O Cristianismo conseguiu dominá-las, submetê-las, mas em seu próprio detrimento. Velou-se o ideal divino; o culto se tornou material. Para impressionar a imaginação das multidões, voltou-se às práticas idólatras, próprias das primeiras épocas da Humanidade. A fim de dominar essas almas e as dirigir pelo temor ou pela esperança, estranhos dogmas foram combinados. Já não se tratou de realizar no mundo o reino de Deus e de sua justiça, que fora o ideal dos primeiros cristãos. Depois, a profecia do fim do mundo e do juízo final, tomada à letra, as preocupações da salvação individual, exploradas pelos padres, mil causas em suma, desviaram o Cristianismo da sua verdadeira rota e submergiram o pensamento de Jesus numa torrente de superstições. 

 Ao lado, todavia, desses males, é justo recordar os serviços prestados pela Igreja à causa da Humanidade. Sem a sua hierarquia e sólida organização, sem o papado, que opôs o poder da ideia, posto que obscurecida e deturpada, ao poderio do gládio, tem-se o direito de perguntar no que se teria tornado a vida moral, a consciência da Humanidade. No meio desses séculos de violência e trevas, a fé cristã animou de novo ardor os povos bárbaros, ardor que os impeliu a obras gigantescas como as Cruzadas, à fundação da Cavalaria, à criação das artes na Idade Média. No silêncio e na obscuridade dos claustros o pensamento encontrou um refúgio. A vida moral, graças às instituições cristãs, não se extinguiu, a despeito dos costumes brutais da época. Aí estão serviços que é preciso agradecer à Igreja, não obstante os meios de que ela se utilizou para a si mesma assegurar o domínio das almas. 

 Em resumo, a doutrina do grande crucificado, nas suas formas populares, queria a obtenção da vida eterna mediante o sacrifício do presente. Religião de salvação, de elevação da alma pela subjugação da matéria, o Cristianismo constituía uma reacção necessária contra o politeísmo grego e romano, cheio de vida, de poesia e de luz, mas não passando de foco de sensualismo e corrupção. O Cristianismo tornava-se um estágio indispensável na marcha da Humanidade, cujo destino é elevar-se incessantemente de crença em crença, de concepção em concepção, a sínteses sempre e cada vez mais amplas e fecundas. 

 O Cristianismo, com os seus doze séculos de dores e trevas, não foi uma era de felicidade para a raça humana; mas o fim da vida terrestre não é a felicidade, é a elevação pelo trabalho, pelo estudo e pelo sofrimento; é, numa palavra, a educação da alma; e a via dolorosa conduz com muito mais segurança à perfeição, que a dos prazeres. 

 O Cristianismo representa, pois, uma fase da história da Humanidade, a qual lhe foi incontestavelmente proveitosa; ela, a Humanidade, não teria sido capaz de realizar as obras sociais que asseguram o seu futuro se não se tivesse impregnado do pensamento e da moral evangélicos. 

 A Igreja, entretanto, delinquiu, trabalhando por prolongar indefinidamente o estado de ignorância da sociedade. Depois de haver nutrido e amparado a criança, tem querido mantê-la em estado de submissão e servilismo intelectual. Não libertou a consciência senão para melhor a oprimir. 

 A Igreja de Roma não soube conservar o farol divino de que era portadora e, por um castigo do céu, ou antes, por uma justa retroacção das coisas, a noite que ela queria para os outros fez-se nela própria. Não cessou de opor obstáculos ao desenvolvimento das ciências e da filosofia, ao ponto de proscrever, do alto da cadeira de São Pedro, “o progresso – essa lei eterna – o liberalismo e a civilização moderna” (artigo 80 do Sílabus). 

 Foi, por isso, fora dela e mesmo contra ela, a partir de um certo momento da História, que se operou todo o movimento, toda a evolução do espírito humano. Foram necessários séculos de esforços para dissipar a obscuridade que pesava sobre o mundo, ao sair da Idade Média. Fizeram-se necessárias a Renascença das letras, a Reforma religiosa do século XVI, a filosofia, todas as conquistas da Ciência, para preparar o terreno destinado à nova revelação, a essas vozes de além-túmulo que vêm aos milhares e em todas as regiões da Terra, atrair os homens aos puros ensinamentos do Cristo, restabelecer a sua doutrina, tornar compreensíveis, a todos, as verdades superiores amortalhadas na sombra das idades. 

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(ii) Ver notas complementares nºs 2 e 3. (← links para aceder às notas) 
(iii) Ver "Os deicidas", por Cahen, membro do Consistório israelita. 
(iv) Ver a minha obra "Depois da Morte", págs. 9 a 100. 
(v) Ver também nota complementar nº 7. (← link para aceder à nota) 


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Sentido oculto dos Evangelhos, 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel