Uma certa escola atribui ao Cristianismo em geral e, aos
Evangelhos em particular, um sentido oculto e alegórico. Alguns pensadores e
filósofos chegaram mesmo a negar a existência de Jesus, vendo nele, nas suas
palavras, nos factos de sua vida, uma ideia filosófica, uma abstracção a que
foi dado um corpo, para satisfazer a tradição que ao povo judeu anunciava um
salvador, um Messias.
Na sua opinião, não passaria a história de Jesus de um drama
poético, representando o nascimento, a morte e a ressurreição da ideia
libertadora no seio do povo hebreu escravizado, ou ainda uma série de figuras
imaginadas para tornar perceptível às massas o lado prático e social do
Cristianismo, a associação dos tipos divino e humano num modelo de perfeição,
oferecido à admiração dos homens.
Aceite semelhante tese, os Evangelhos deveriam ser
considerados fábulas, invenções. O poderoso movimento do Cristianismo teria
tido como ponto de partida uma impostura. Há nisso uma evidente exageração. Se
a vida de Jesus não
é mais que uma ficção, como pôde ser acolhida pelos seus contemporâneos, a
princípio e, depois por uma longa série de gerações?
Quais seriam, pois, os verdadeiros fundadores do
Cristianismo? Os apóstolos? Eram incapazes de tais concepções. Com excepção
de Paulo,
que encontrou uma doutrina já constituída, a incapacidade deles é evidente. A
personalidade eminente de Jesus destaca-se, vigorosamente, do fundo da
mediocridade dos seus discípulos. A menor comparação faz sobressair a
impossibilidade de semelhante hipótese.
Não foi difícil, nos Evangelhos, distinguir as adições dos
cristão-judeus, as quais denunciam claramente a sua origem e, formam contraste
flagrante com as palavras e a doutrina de Jesus. (ii) Daí
resulta um facto evidente, o de que autores imbuídos a, esse respeito, de
ideias supersticiosas e acanhadas eram incapazes de inventar uma personalidade,
uma doutrina, uma vida, uma morte como as de Jesus.
Nesse mundo judaico, sombrio e exclusivista, em que reinavam
o ódio e o egoísmo, a doutrina do amor e da fraternidade só podia emanar de uma
inteligência sobre-humana.
Se as Escrituras fossem, no seu conjunto, não mais que um
amontoado de alegorias, uma obra de imaginação, a doutrina de Jesus não
teria podido manter-se através dos séculos, no meio das correntes opostas que
agitaram a sociedade cristã. A construção sem alicerce, ter-se-ia desagregado,
desmoronado, batida pelo furacão dos tempos. Entretanto, ela ficou de
pé e domina os séculos, a despeito das alterações sofridas, a despeito de tudo
o que os homens fizeram para desfigurá-la, para submergi-la nas vagas
de uma interpretação errónea.
A crença num mito não teria sido suficiente para inspirar
aos primeiros cristãos o espírito de sacrifício, o heroísmo em face da morte;
não lhes teria proporcionado os meios de fundar uma religião que dura há vinte
séculos. Só a verdade pode desafiar a acção do tempo e conservar a sua
força, a sua moral, a sua grandeza, não obstante os esforços de sapa que
procuram arruiná-la. Jesus é, positivamente, a pedra angular do
Cristianismo, a alma da nova revelação. Ele constitui toda a sua originalidade.
Além disso, não faltam testemunhos históricos da existência
de Jesus, posto que em reduzido número.
Suetónio, na história dos primeiros Césares, fala do
suplício de “Christus”. Tácito e ele mencionam a existência da seita cristã
entre os judeus, antes da tomada de Jerusalém por Tito.
O Talmude (i) fala da morte de
Jesus na cruz e todos os rabinos israelitas reconhecem o alto valor desse
testemunho. (iii)
Em caso de necessidade, o próprio Evangelho, só por si,
bastaria para fornecer a prova moral da existência e da elevada missão do
Cristo. Se numerosos factos apócrifos nele foram mais tarde introduzidos, se as
superstições judaicas ali se encontram sob a forma de narrativas fantasistas
e teorias obsoletas, duas coisas nele subsistem, que não poderiam ser
inventadas e apresentam um carácter de autenticidade que se impõe: – o
drama sublime do Calvário e a doce e profunda doutrina de Jesus.
Essa doutrina era simples e clara nos seus princípios
essenciais; dirigia-se à multidão, sobretudo aos deserdados e aos humildes.
Tudo nela era feito para mover os corações, para arrebatar as almas até ao
entusiasmo, iluminando, fortalecendo as consciências. Todavia, ela
manifesta os sinais de um ensino oculto. Jesus fala muitas vezes por parábolas.
O seu pensamento, de ordinário tão luminoso, mergulha por vezes na meia
obscuridade. Não se percebem, então, mais que os vagos contornos
de uma grande ideia dissimulada sob o símbolo.
É o que ele próprio explica por estas palavras, quando,
citando Isaías (cap.
VI, 9), acrescenta:
“Eu lhes falo por parábolas, porque a vós vos é dado
conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é concedido.” (Mateus,
XIII, 10 e 11.)
É evidente que havia duas doutrinas no Cristianismo
primitivo: a destinada ao vulgo, apresentada sob formas acessíveis a
todos e, a outra oculta, reservada aos discípulos e iniciados. É
o que, de resto, existia em todas as filosofias e religiões da
antiguidade. (iv)
A prova da existência desse ensino secreto encontra-se nas
palavras já citadas e nas que mencionamos a seguir. Logo depois da parábola do
semeador, que se encontra nos três evangelhos sinópticos, os discípulos
perguntam a Jesus o
sentido dessa parábola e ele lhes responde:
“A vós é concedido saber o mistério do reino de Deus; mas,
aos que são de fora, tudo se lhes propõe em parábolas;
“Para que, vendo, vejam e não vejam e ouvindo, ouçam e não
entendam.” (Marcos, IV, 11 e 12; Lucas,
VIII, 10.).
São Paulo (i) confirma-o
na sua primeira Epístola aos Coríntios, capítulo III, quando distingue a
linguagem a usar com homens carnais ou com homens espirituais,
isto é, com profanos ou com iniciados.
A iniciação era indubitavelmente gradual.
Os que a recebiam eram ungidos e, depois de haverem recebido a unção, entravam
na comunhão dos santos. É o que torna compreensíveis estas palavras de João:
“Vós tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas. Eu
não vos escrevi como se ignorásseis a verdade, mas como a quem a conhece.” (1ª
Epístola de João, cap. II, 20, 21 e 27.). (v)
Ao tempo da sua controvérsia com Celso, Orígenes defendeu
energicamente o Cristianismo. Na sua vigorosa apologia, fala muitas vezes
dos ensinos secretos da nova religião. Tendo-a Celso arguído de possuir um cunho misterioso, Orígenes refuta essas críticas, provando que, se em certos assuntos especiais só os iniciados
recebiam um ensino completo, a doutrina cristã, por outro lado, no seu sentido
geral era acessível a todos. E a prova – disse ele – é que o mundo inteiro (ou
pouco falta) está mais familiarizado com essa doutrina que com as opiniões
predilectas dos filósofos.
Esse duplo método de ensino – prossegue ele, em síntese – é,
ao demais, adoptado em todas as escolas. Por que fazer por isso uma censura
unicamente à doutrina cristã? Os numerosos mistérios, por toda a parte
celebrados na Grécia e noutros países, não são por todos geralmente admitidos?
O fundador do Cristianismo não separava a ideia
religiosa da sua aplicação social. O “reino dos céus” era, para ele, essa
perfeita sociedade dos espíritos, cuja imagem desejaria realizar na Terra. Mas
ele devia ir ao encontro dos interesses estabelecidos e suscitar em torno de si
mil obstáculos, mil perigos. Daí, um novo motivo para ocultar no mito,
no milagre, na parábola, o que na sua doutrina ia ferir
as ideias dominantes e ameaçar as instituições políticas ou religiosas.
As obscuridades do Evangelho são, pois, calculadas,
intencionais. As verdades superiores nele se ocultam sob véus simbólicos. Aí se
ensina ao homem o que lhe é necessário para se conduzir moralmente na prática
da vida; mas o sentido profundo, o sentido filosófico da
doutrina, esse é reservado à minoria.
Nisso consistia a “comunhão dos santos”, a comunhão dos
pensamentos elevados, das altas e puras aspirações. Essa comunhão pouco
durou. As paixões terrenas, as ambições, o egoísmo, bem cedo a
destruíram. A política se introduziu no sacerdócio. Os bispos, de humildes
adeptos, de modestos “vigilantes” que eram a princípio, se tornaram poderosos e
autoritários. Constituiu-se a teocracia; a esta, pareceu de interesse colocar a
luz debaixo do alqueire e a luz se extinguiu. O pensamento
profundo desapareceu. Só ficaram os símbolos materiais. Essa obscuridade
tornava mais fácil governar as multidões. Preferiram deixar as massas
mergulhadas na ignorância a elevá-las às eminências intelectuais. Os mistérios
cristãos cessaram de ser explicados aos membros da Igreja. Foram mesmo
perseguidos como hereges os pensadores, os investigadores sinceros, que se
esforçavam por adquirir novamente as verdades perdidas. Fez-se noite cada vez
mais espessa sobre o mundo, depois da dissolução do Império Romano. A crença em
Satanás e no inferno adquiriu lugar preponderante na fé cristã. Em vez da
religião de amor pregada por Jesus, o que prevaleceu foi a religião do terror.
A invasão dos bárbaros havia poderosamente contribuído para
fazer surgir esse estado de coisas. Ele fez voltar a sociedade ao estado
de infância,
porque os bárbaros invasores, do ponto de vista da razão, não passavam de
crianças. Do seio das vastas estepes e das extensas florestas, o mundo bárbaro
se arremessava sobre a Civilização. Todas essas multidões, ignorantes e
grosseiras, que o Cristianismo aliciou, produziram no mundo pagão em decadência
e no novo meio, em que penetravam, uma depressão intelectual.
O Cristianismo conseguiu dominá-las, submetê-las, mas em seu
próprio detrimento. Velou-se o ideal divino; o culto se tornou material. Para
impressionar a imaginação das multidões, voltou-se às práticas idólatras,
próprias das primeiras épocas da Humanidade. A fim de dominar essas almas e as
dirigir pelo temor ou pela esperança, estranhos dogmas foram combinados. Já não
se tratou de realizar no mundo o reino de Deus e de sua justiça, que fora o
ideal dos primeiros cristãos. Depois, a profecia do fim do mundo e do
juízo final, tomada à letra, as preocupações da salvação individual, exploradas
pelos padres, mil causas em suma, desviaram o Cristianismo da sua verdadeira
rota e submergiram o pensamento de Jesus numa
torrente de superstições.
Ao lado, todavia, desses males, é justo recordar os
serviços prestados pela Igreja à causa da Humanidade. Sem a sua hierarquia e sólida
organização, sem o papado, que opôs o poder da ideia, posto que obscurecida e
deturpada, ao poderio do gládio, tem-se o direito de perguntar no que se teria
tornado a vida moral, a consciência da Humanidade. No meio desses
séculos de violência e trevas, a fé cristã animou de novo ardor os povos
bárbaros, ardor que os impeliu a obras gigantescas como as Cruzadas, à fundação
da Cavalaria, à criação das artes na Idade Média. No silêncio e na obscuridade
dos claustros o pensamento encontrou um refúgio. A vida moral, graças às
instituições cristãs, não se extinguiu, a despeito dos costumes brutais da
época. Aí estão serviços que é preciso agradecer à Igreja, não
obstante os meios de que ela se utilizou para a si mesma assegurar o domínio
das almas.
Em resumo, a doutrina do grande crucificado, nas suas formas
populares, queria a obtenção da vida eterna mediante o sacrifício do presente.
Religião de salvação, de elevação da alma pela subjugação da matéria, o
Cristianismo constituía uma reacção necessária contra o politeísmo grego e
romano, cheio de vida, de poesia e de luz, mas não passando de foco de
sensualismo e corrupção. O Cristianismo tornava-se um estágio
indispensável na marcha da Humanidade, cujo destino é elevar-se incessantemente
de crença em crença, de concepção em concepção, a sínteses sempre e cada vez
mais amplas e fecundas.
O Cristianismo, com os seus doze séculos de dores e trevas,
não foi uma era de felicidade para a raça humana; mas o fim da vida
terrestre não é a felicidade, é a elevação pelo trabalho, pelo estudo e pelo
sofrimento; é, numa palavra, a educação da alma; e a via dolorosa
conduz com muito mais segurança à perfeição, que a dos prazeres.
O Cristianismo representa, pois, uma fase da história da
Humanidade, a qual lhe foi incontestavelmente proveitosa; ela, a Humanidade,
não teria sido capaz de realizar as obras sociais que asseguram o seu futuro se
não se tivesse impregnado do pensamento e da moral evangélicos.
A Igreja, entretanto, delinquiu, trabalhando por prolongar
indefinidamente o estado de ignorância da sociedade. Depois de haver nutrido e
amparado a criança, tem querido mantê-la em estado de submissão e servilismo
intelectual. Não libertou a consciência senão para melhor a oprimir.
A Igreja de Roma não soube conservar o farol divino de que
era portadora e, por um castigo do céu, ou antes, por uma justa retroacção das
coisas, a noite que ela queria para os outros fez-se nela própria. Não cessou
de opor obstáculos ao desenvolvimento das ciências e da filosofia, ao ponto
de proscrever,
do alto da cadeira de São Pedro, “o progresso – essa lei eterna – o liberalismo e
a civilização moderna” (artigo 80 do Sílabus).
Foi, por isso, fora dela e mesmo contra ela, a partir de um
certo momento da História, que se operou todo o movimento, toda a evolução do
espírito humano. Foram necessários séculos de esforços para dissipar a
obscuridade que pesava sobre o mundo, ao sair da Idade Média. Fizeram-se
necessárias a Renascença das letras, a Reforma religiosa do século XVI, a
filosofia, todas as conquistas da Ciência, para preparar o terreno destinado à
nova revelação, a essas vozes de além-túmulo que vêm aos
milhares e em todas as regiões da Terra, atrair os homens aos puros
ensinamentos do Cristo, restabelecer a sua doutrina, tornar compreensíveis, a
todos, as verdades superiores amortalhadas na sombra das idades.
/…
(iii) Ver "Os deicidas", por Cahen,
membro do Consistório israelita.
(iv) Ver a minha obra "Depois da
Morte", págs. 9 a 100.
(v) Ver também nota complementar nº 7. (← link para aceder à nota)
Léon Denis (1846-1927) (i), Cristianismo
e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et
Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Sentido
oculto dos Evangelhos, 4º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo
do Anjo, lápis e giz de Alexandre
Cabanel)
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