Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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domingo, 6 de dezembro de 2020

Deus na Natureza ~


 ~ a 
origem dos seres ~ 
(III de III) 

  “O corpo humano – diz o naturalista inglês Wallace –, estava nu e desprotegido e foi o espírito que o aprovisionou de vestuário para o preservar das intempéries. O homem não teria podido competir em agilidade com o gamo, nem em força com o touro selvagem e, foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar esses animais. Ele era menos apto que os outros animais para alimentar-se de ervas e de frutos que a Natureza espontaneamente oferecia e foi essa faculdade admirável que o ensinou a governar e a adequar a Natureza aos seus fins, dela extraindo o alimento quando e onde quisesse. 

  “Desde o momento em que se utilizou da primeira pele para a sua indumentária, da primeira lança na caça, da primeira semente no plantio, da primeira vara na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução que não teve semelhança em qualquer fase da história do mundo, uma vez que um ser existia guarnecido para as mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à Natureza, possuía pois os meios para controlá-la, para regular-lhe as actividades e, podendo manter-se em harmonia com ela, não lhe modificando a sua forma corporal, porém, aperfeiçoando-lhe o espírito.” 

  É nisso, tão-só, que vemos a verdadeira grandeza e dignidade do homem. (ii) 

  O homem ocupa um grau anatomicamente superior, ao em que assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do negro e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do saju e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogloditas) vêm, na ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon (hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu Geoffroy Saint-Hilaire em polémica célebre com Cuvier, o homem é a primeira família da ordem dos primatas, estabelecida por Linnaeus no século passado. Cabe dizer que aqui falamos do ponto de vista anatómico, unicamente. Qualquer outro raciocínio invalidaria estas classificações. Somos, porém, de opinião que quando versamos anatomia, temos de fazer anatomia. 

  No capítulo seguinte, teremos oportunidade de prosseguir na comparação do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro. 

  O lugar geológico do homem remonta à origem da nossa espécie a época longínqua em que viviam as raças antediluvianas, hoje desaparecidas: o veado de grandes chifres, o urso das cavernas, o rinoceronte tricorne, o elefante primigéneo, o mamute, a rena fóssil, etc. A mais antiga data conhecida e que atesta a presença do homem, é muito posterior à fauna e à flora actuais. Entretanto, verifica-se não existirem já, nos nossos dias, umas tantas espécies contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos recifes coralíneos da Flórida, nas cavernas do Languedoc e da Bélgica, o esqueleto exumado nas redondezas de Dusseldorf, o crânio da caverna de Êngis, o de Barreby, na Dinamarca, o homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os restos humanos em Loes, indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de manifesta inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios antropóides. Hoje ninguém contesta que a existência do homem seja anterior ao período glaciário e desde o começo da época quaternária. 

  O lugar arqueológico do homem concorda com os precedentes, a favor da teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humanidade antes que inventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se encontram por toda a parte? Que ancianidade poderíamos atribuir a esses períodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia com o período da primeira vegetação, seja a dos pinheiros da Escócia e, em parte, com a segunda vegetação – a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o carvalho, que se encontraram espadas e escudos desse metal. Antes dele não havia faias. A idade do ferro, menos pristina, corresponde à bétula. Quanto tempo duraria a primeira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma indústria já não elementar. A fusão dos minerais, a decoração lenta dos objectos moldados, só poderiam ser conseguidas depois de longo tacteamento. 

  A que época devemos atribuir as cidades lacustres da Suíça e as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm revelado vinte povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel, dez no de Bienne, contemporâneas das idades da pedra e do bronze. 

  As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma época. Essas povoações castoreanas deviam oferecer alguma semelhança com as da Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os ossos encontrados por Lartet na caverna de Aurignac (i) são contemporâneos das hienas das cavernas e do rinoceronte de narinas separadas. 

  Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto e do baixo Egipto, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta pirâmides foram erigidas, tipificando uma civilização lentamente desenvolvida, com uma forma especial de culto, de cerimónias esplêndidas, um estilo singular de arquitectura e inscrições, barragens dos rios, etc. Essas glórias, entretanto, estavam desvanecidas muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz Lyell – para formação lenta e gradual de raças como a caucasiana, a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o possível para ser abrangido por qualquer sistema de cronologia popular.” 

  Ao problema cronológico do aparecimento do homem na Terra, a Ciência nada responde por enquanto. Ao demais, se o homem não apareceu espontaneamente, tal data não existe. Quanto aos vestígios de humanidade, ou do homem em si mesmo, as opiniões (pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e o Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do tempo necessário para formar o delta do Mississipi é de cem mil anos. 

  O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a cinco metros de profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, não contaria menos de cinquenta mil anos, na opinião do Dr. Dower (é um número exagerado, no nosso entender). Agassiz calculou que a formação dos recifes de coral da Flórida representam cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e recolhidos em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme, parece terem servido de armas a uma raça distanciada de cem séculos. 

  A Arqueologia concorda com os historiadores e os poetas da antiguidade, quais HeródotoDiodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes, Plínio, no concernente ao primitivismo bárbaro da raça humana e à sua predilecção pelas cavernas. Mas, esse estado nós o podemos considerar fora dos domínios históricos e a cronologia, que remonta à época já misteriosa das grandes migrações arianas, a mais de cem séculos passados, mergulha na noite profunda, quando tenta sondar a nossa verdadeira origem. 

  Tudo quanto podemos afirmar é que a Humanidade é muito mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores, até que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se nos fosse permitido remontar a essas épocas, não poderíamos reconhecer a civilização da nossa era na caligem das idades bárbaras, quando a inteligência nos seus primórdios se esforçava por desprender das possantes constrições da matéria. 

  Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças religiosas a propósito de tudo e, mesmo sem propósito. Constatamos os factos e a nossa ignorância, com sincera franqueza, persuadidos de que não se podendo antepor duas verdades entre si, a Ciência da Natureza não pode afectar a causa do Ser supremo. Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que daí lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra quão insignificante é o período do advento da existência humana, em relação com a idade do planeta. 

  A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do primeiro casal humano. Diz Charles Lyell que “se a fonte original da espécie humana tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de natureza perfectível, como a da sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que agora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na porção de leito do Mediterrâneo aflorada nas costas da Sardenha, ao contrário da mais grosseira cerâmica e dos sílex de feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos esculturas superiores às obras-primas de Fídias e Praxiteles, caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios aperfeiçoados como os não conhecemos na Europa e inúmeras outras provas, de perfeição artística e científica, que o nosso século XIX ainda não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a imaginação para adivinhar a utilidade de relíquias que tais. Talvez maquinaria de locomoção aérea ou destinada a cálculos aritméticos, aparelhos desproporcionados às necessidades quiçá à concepção dos matemáticos vivos.” 

  Esta explicação física da origem das espécies não arrebata o ceptro das mãos do Governador do mundo. Já assinalamos acima a declaração de Darwin a favor do sentimento religioso e parece-nos que, sobre as consequências imediatas de qualquer doutrina, devemos reportar-nos antes à opinião do mestre que à dos discípulos. Charles Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte declaração do geólogo Asa Grey, em que este evidencia claramente que a doutrina da variação e da selecção natural não tende a destruir os alicerces da Teologia natural e que a hipótese da derivação das espécies em nada contraria qualquer dos sãos princípios da História Natural. 

  “Podemos imaginar que os acontecimentos e em geral as operações da Natureza ocorrem, simplesmente, em virtude de forças comunicadas desde o início e sem qualquer ulterior intervenção, ou podemos admitir tenha havido, de tempos a tempos e, somente de tempos a tempos, uma intervenção da Divindade. E podemos, enfim, supor ainda que todas as mudanças produzidas resultem da acção metódica e constante, mas, infinitamente variada, da causa inteligente e criadora. 

  “Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um género, não se possa explicar senão por acto directo de uma causa criadora, podem, sem renunciar à teoria favorita, admitir a teoria da transmutação, que lhe não é incompatível. O conjunto e sucessão dos fenómenos naturais podem não ser mais do que a aplicação material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de factos pode explicar-se pela transmutação, a perpétua adaptação do mundo orgânico a condições novas deixa, mais valioso que nunca, o argumento de um plano e, consequentemente, de um arquitecto.” 

  Parece-nos, com efeito, que a obstinação nada de mais tem a ganhar com esta hipótese do que com qualquer outra teoria natural. 

  Quanto à pecha de materialismo imputada a todas as modalidades da teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria da gravitação e grande número de outras descobertas foram consideradas de subversivas da Religião. Mas, onde iríamos parar se houvéssemos de ouvir os lamentos de todos os teólogos sobressaltados? 

  Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese da intermissão na Terra, em épocas geológicas sucessivas, primeiramente da vida, depois da sensação, do instinto e da inteligência dos mamíferos superiores convizinhos da racionalidade e, finalmente, da razão perfectível do próprio Homem, parece-nos, ao contrário, o desdobramento de um plano grandioso, apresentando-nos o quadro de predominância crescente do espírito sobre a matéria. 

  Temos sido assaz prolixos em encarar as relações do homem com os animais que o precederam, sem embargo da névoa de mistério que ainda as envolve. É que acreditamos, com Pascal; essas comparações sempre têm algum valor. 

  “É perigoso – dizia o autor de Pensamento – demonstrar ao homem o quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a sua grandeza, sem lhe fazer sentir a sua baixeza. Mais perigoso, ainda, é deixá-lo na ignorância de ambas.” 

  Ainda que o problema da antiguidade e a origem da espécie humana varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo, nem por isso deixa de se averiguar que a Humanidade procede de época muito mais remota do que se pode crer. Ainda que esse mesmo problema se definisse divergente para a Zoologia ou para a Teologia, não é menos provável, tampouco, que os nossos antepassados fossem inferiores a nós e que o progresso se manifestou na Humanidade tal como na escala de toda a Criação. Perguntamos, então, aos espíritos de boa fé: – em que, a crença na ancianidade do homem e, mesmo na sua origem simiesca, colide com a crença num absoluto? Que a vida tenha surgido na Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que, do vegetal ao homem, a criação antidiluviana não tenha formado senão uma unidade, em que pode esta hipótese destruir a acção divina? Aqui, como no que precede, a matéria não obedeceu às suas forças? E a vida dos seres não é uma força especial, regente de átomos, directora de todos os movimentos? Particularmente, na teoria da selecção natural, não é a força vital que dirige a marcha do mundo? Aqui, como por toda a parte, a matéria não é a escrava e a força a soberana? 

  Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios na transformação dos órgãos, essa transformação não será, sempre, o efeito da vida e a vida regida pela inteligência e dotada de uma espécie de obediência activa à lei intelectual do progresso? 

  Abordando a tese da apropriação dos órgãos às funções que lhes incumbe executar, bem como da construção homogénea de cada espécie, dos dentes aos pés, segundo o seu papel no cenário do mundo, entramos nos domínios da destinação dos seres e das coisas. O nosso quarto livro objectivará este vasto problema. 

  Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto de vista da circulação na matéria dos seres vivos, seja no da origem e da perpetuidade da vida, esta se constitui de uma Força única e central para cada ser, que dispõe a matéria organizável segundo um plano, do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Nesta segunda, como na primeira parte, temos refutado todos os pontos dos nossos adversários. Eles já não sustentam a sua hipótese materialista e, com os seus exageros mais temerários, antes auxiliam a nossa tese, pois conceituando a matéria capaz de tudo fazer, mal se precatam que apenas substituem a ideia da força. Esperamos que esses inconsequentes negadores fiquem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de passar ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua vaidadezinha, que os gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à frente (*), visto que para eles as radicais força e vida eram sinónimos. O filósofo de Stagira já tinha sustentado que – “a alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivo”. 

  Não vale a pena fazer tão grande alarde de ciência, para ficar abaixo dos Gregos. 

/… 
(*) Dos conceitos da harmonia das esferas dos gregos... à avaliação de Dominique Proust, astrofísico e organista... Adenda desta publicação.
(ii) Grandes homens contemporâneos não compartilham destas ideias e consideram a Humanidade como uma raça degenerada. Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava essa opinião e o Sr. de Lamartine (i), a quem propusemos a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867), encara as raças arianas como tendo sido superiores à sociedade actual. O problema ainda está longe de solução, mas a verdade é que nem por isso a característica do homem deixa de consistir na sua inteligência progressiva. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (III de III), 24º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Deus na Natureza ~


~ a 
origem dos seres ~
(II de III)

 Dado o mistério que envolve ainda a origem da vida na Terra, não há ninguém com autoridade para declarar proscrita a acção do Criador. Suponhamos que os primeiros seres nascessem no estado de animalidade rudimentar e que as variedades sucessivas fossem como que a árvore das espécies hoje tão distintas; ou que os primeiros pais de cada família tivessem despertado à voz de comando de um grande mágico e, teremos, que estas conjecturas não afectam, de todo, a base da Teologia natural, do que se admitíssemos que essas espécies aqui aportassem trazidas de outros mundos nas asas de qualquer mensageiro celeste. Quanto à formação ou transformação das espécies, não é por sua vez melhor conhecida que a origem da vida, qual o confessa Charles Lyell: “O que sabemos da Paleontologia (i) não é nada em comparação com o que falta aprender.”

  Examinemos, agora, com este geólogo eminente (ii), quais os principais caracteres da teoria de Lanck e de Geoffroy Saint-Hilaire acerca da progressão e transformação das espécies. Os homens superficiais facilmente imaginam que a Ciência está organizada com regras absolutas e nenhuma dificuldade encontra na sua marcha ascendente. Nada menos exacto. Nem mesmo as grandes definições têm carácter absoluto. Os zoólogos, por exemplo, não se entendem sobre os vocábulos, espécie e raça. Sucedeu o que Lamarck predissera – disse Lyell –: quanto mais se multiplicam as novas formas, menos nos capacitamos de precisar o que seja uma variedade, ou uma espécie. De facto, zoólogos e botânicos se vêem, não só mais embaraçados que nunca para definir a espécie, como também para certificar se ela realmente existe na Natureza, ou se não passa de simples abstracção da inteligência humana. Pretendem uns que ela seja constante dentro de certos limites de variabilidade, restritos e intransponíveis; querem-na outros susceptível de modificações indefinidas e ilimitadas. Desde os tempos de Linnaeus até ao começo deste século, acreditava-se definir suficientemente a espécie, dizendo:

  “A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se de seres a eles semelhantes”.

 Lamarck, tendo reconhecido uma grande quantidade de espécies fósseis, das quais umas eram idênticas a espécies vivas, enquanto que outras não passavam de variedades, aditou o factor tempo à definição de espécie, assim formulando: “Compõe-se a espécie de indivíduos inteiramente semelhantes entre si e reproduzindo-se por seres semelhantes, desde que as condições de vida não experimentem alterações capazes de lhes variar os hábitos, caracteres e formas.” Finalmente, chega ele a concluir que, dos animais e plantas contemporâneas, nem um exemplar existe da criação primordial, sendo todos derivados de formas preexistentes, as quais, depois de se terem reproduzido, por séculos sem conta, seres semelhantes, teriam, finalmente, experimentado variações graduais e consequentes a mudanças de clima e do reino animal, adaptando-se às novas circunstâncias. Alguns, entretanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto do tipo original, que mereciam ser agora considerados novas espécies.

  Em apoio dessa opinião apresenta o contraste das plantas agrestes com as cultivadas, dos animais selvagens com os domésticos, a lembrar como e quanto se lhes modificam gradualmente a cor, a forma, a estrutura, os caracteres fisiológicos e até os instintos, em presença de novos inimigos e sob a influência da alimentação e do regime de vida diferentes.

  Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram constantemente submetidas a alterações, passando de um a outro período, mas, também, que houvesse um progresso constante do mundo orgânico, desde os primitivos aos tempos modernos, dos seres mais simples aos mais complexos, dos mais baixos aos mais altos instintos, e, finalmente, da mais rudimentar inteligência às maiores expressões do racionalismo humano. Para ele, o aperfeiçoamento teria sido moroso e constante, a própria raça humana ter-se-ia, enfim, desgalhado do grupo de mamíferos organicamente mais evoluídos. Um professor da Universidade de Cambridge (i) deu-nos um resumo conciso e racional desta teoria (iii).

  “Encontramos nos antigos depósitos da crosta terrestre – diz ele – o traço de uma progressão na organização das formas viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a ausência de mamíferos nos grupos mais antigos e as suas raras aparições nos grupos secundários mais recentes. Animais de sangue quente (em grande parte de géneros desconhecidos) encontram-se bastante espalhados em todas as velhas camadas terciárias e abundam (frequentemente com formas genéricas conhecidas) nas partes superiores da mesma série; e, por fim, temos que a aparição do homem na superfície do solo é um facto recente.”

  Esse desenvolvimento histórico, das formas e funções da vida orgânica em períodos sucessivos, parece-nos indiciar uma evolução gradativa da energia criadora, a manifestar-se por uma tendência progressiva para o tipo mais elevado da organização animal.

  Hugh Miller (iv) também nota o facto extraordinário de ser a ordem adoptada por Cuvier, no seu Reino Animal – a que coloca as quatro classes de vertebrados segundo as suas relações mútuas e categóricas – a mesma ordem cronológica que apresentavam. O cérebro, cujo volume em relação ao da medula está na razão de dois para um, é o do peixe, que foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe o que apresenta a relação média de dois e meio por um, ou seja, o réptil. Em seguida, vem a relação de três por um, que é a das aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos. Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de vinte e três por um, o cérebro do homem, que raciocina e calcula.

  O cérebro poderia não ser mais que uma florescência da espinal medula. – Nas espécies inferiores (rãs por exemplo) a faculdade de sentir pertence à medula, quanto ao cérebro. Sem dúvida, podem fazer-se sérias objecções à doutrina da progressividade, mostrando algumas plantas e animais menos perfeitos e surgidos posteriormente a espécies mais perfeitas, tais como o embrião monocotiledóneo e os vegetais endógenos, depois do embrião monocotiledóneo e dos vegetais exógenos (o das coníferas de caule glanduloso), bem como a perfeição das mais antigas criptogâmicas, o movimento retrogressivo dos répteis, o aparecimento da boa (jibóia) depois do iguanodonte, etc. Exemplos não faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não alcança a nossa tese da presença de “Deus na Natureza”, contudo, simpatizando com ela, em si mesma, nós a sustentaremos. Consideramo-la com Lyell, não apenas útil mas, no estado actual da Ciência, como hipótese indispensável, que, embora destinada a sofrer de futuro muitas e grandes modificações, jamais poderá ser absolutamente aniquilada.

  Sem dúvida, poderão julgar paradoxal que os mais firmes sustentáculos da transmutação (Darwin e Hooker, por exemplo) guardem singular reserva quanto à progressão e, que os maiores apologistas desta combatam, não raro com veemência, a transmutação. Não poderão ser verdadeiras e conciliarem-se essas duas teorias? Uma e a outra representam-nos em definitivo os tipos de vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso das idades, a partir do peixe, a mais simples forma, para os mamíferos placentários, até chegar ao último elo da série, aos mamíferos antropóides e, enfim, ao homem. Este último grau afigura-se, portanto, nesta hipótese, uma parte integrante da mesma série contínua de actos desenvolvidos, anel da mesma cadeia, coroamento da obra, por isso que entra na mesma e única série das manifestações da potência criadora.

  Passemos agora à teoria da origem das espécies por meio da selecção natural.

  Esta teoria apresenta-nos grosso modo a acção da Natureza, observada na criação e educação dos animais domésticos. Sabem os criadores de animais que é possível, ao fim de algumas gerações, obter uma nova classe de rebanhos, de chifre curto ou sem chifre, desde que tenham escolhido reprodutores de cornos menos desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a Natureza, alterando no curso das eras as condições da vida, os traços geográficos de um país, o seu clima, a associação de animais e plantas e, por consequência, a alimentação e os inimigos de uma espécie e o seu “modus vivendi”. E assim se vão elegendo certas variedades mais bem adaptáveis à nova ordem das coisas. Desse modo, podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo original de sua ascendência.

  Lamarck opinou que o pescoço longo da girafa procede de uma longa série de esforços para colher o alimento de árvores cada vez mais altas. Darwin e Wallace limitam-se a conjecturar que, na intercorrência de alguma calamidade sobreviveram os espécimes de pescoço comprido, por lhes ser possível pastarem em sítios inacessíveis aos outros.

 Graças a ligeiras modificações, multiplicadas no curso de milhares de gerações e à transmissão, por hereditariedade, das aquisições novas, supõe-se uma divergência cada vez maior do tipo primitivo, até resultar numa nova espécie, ou num novo género, se mais longo o tempo decorrido. O autor dessa explicação fisiológica da origem das espécies, Sr. Charles Darwin, expõe ele próprio (v), como se segue, os factos gerais em que se baseia.

 Na domesticidade, constata-se uma grande variabilidade, que parece devida ao facto de ser o sistema reprodutor muitíssimo sensível às mudanças de condições de vida, deixando de reproduzir exactamente a forma matriz. A variabilidade das formas específicas é governada por um certo número de leis muito complexas, tais como a utilização ou a falta de exercício dos órgãos e a acção directa das condições físicas da vida. As nossas espécies domésticas sofreram modificações profundas, que se transmitiram por hereditariedade, durante períodos muito longos. Assim, também, enquanto se mantiverem as mesmas condições de vida por períodos longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se uma modificação já adquirida durante uma série quase infinita de graus genealógicos. Por outro lado, está provado que a variabilidade, uma vez começando a manifestar-se, não cessa totalmente de operar, uma vez que novas variedades ainda se verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espécies domésticas mais antigas.

 Não é, porém, o homem que produz a variabilidade. Ele apenas expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres orgânicos a novas condições de vida. Então, a Natureza, agindo sobre o organismo, produz variações. Podemos escolher, então, essas variedades e as acumular na direcção que nos aprouver. Assim, adaptamos animais ou plantas às nossas conveniências e até aos nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistematicamente e mesmo sem objectivo preconcebido, qualquer, bastando que, sem propósito de alterar a raça, se conservem de preferência os indivíduos que, num dado tempo, lhe são os mais úteis. Certo é que se podem transformar os caracteres de uma espécie escolhendo-se de cada geração sucessiva as diferenças individuais; e esse processo selectivo foi o agente principal de produção das raças domésticas, mais distintas e mais úteis. Os princípios que actuaram com tanta eficácia, no estado de domesticidade, podem, igualmente, operar no estado de natureza. A conservação das raças e dos indivíduos favorecidos na luta perpétuamente renovada pelo meio ambiente, é factor poderosíssimo e, sempre activo, de selecção natural.

  A concorrência vital é uma consequência necessária da multiplicação, em razão geométrica mais ou menos elevada, de todos os seres organizados. A rapidez dessa progressão está provada não só pelo cálculo, como pela pronta multiplicação de muitos animais e plantas durante uma série de estações particulares, ou quando se aclimatavam em novas regiões. O número dos indivíduos que nascem excede sempre o dos que podem viver.

  Um grão na balança pode determinar a variedade que deve crescer e a que tenha de diminuir. Como os indivíduos da mesma espécie são os que mais concorrem entre si, em todos os sentidos, a luta torna-se para eles, em regra, mais severa. Ela é-o quase tanto entre as variedades da mesma espécie e, grave, ainda, entre as espécies do mesmo género. Mas a luta também pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados na escala da Natureza. A mais leve vantagem adquirida por um indivíduo, em qualquer idade ou estação, sobre o seu concorrente, ou uma melhor adaptação ao meio físico ambiente, o mais insignificante aperfeiçoamento, enfim, fará pender o prato da balança.

  Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa variação crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o naturalista, haverá guerra, as mais das vezes entre machos, para posse da fêmea. Os indivíduos mais vigorosos e os que lutaram com maior êxito contra as condições físicas ambientais, hão de deixar uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu êxito também dependerá, muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham, ou da sua mesma beleza e, ainda neste caso, a mínima vantagem lhes granjeará a vitória.

 Uma vez admitida a variabilidade, bem como a existência de um poderoso agente sempre pronto a funcionar, chegaremos a concluir, facilmente, que variações algo úteis ao indivíduo nas suas relações vitais possam ser conservadas, transmitidas e acumuladas? Se o homem pode, com paciência, escolher as variações que lhe sejam mais úteis, porque deixaria a Natureza de escolher as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a condições mutáveis da existência? Que limites poderíamos atribuir a esse poder, quando ele opera mediante períodos longos e escruta, rigorosamente, a estrutura, toda a organização e os hábitos de cada criatura, por favorecer o prestável e rejeitar o inútil? Parece não haver nenhum limite a esse poder, cujo efeito é a adaptação lenta e admirável de toda a forma às mais complexas relações da vida.

 Cada espécie, dada a progressão geométrica de reprodução que lhe é peculiar, tende a aumentar desordenadamente e, multiplicando-se os descendentes modificados de cada espécie, tanto mais quanto se diversificam, nos hábitos e na estrutura, a lei de selecção natural apresenta, por sua vez, uma tendência constante para conservar os descendentes mais divergentes, de qualquer espécie.

 Daí se segue que, durante o curso perseverante de sucessivas modificações, as mais leves diferenças características das variedades de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes diferenças que caracterizam espécies do mesmo género. Variedades novas e mais perfeitas suplantarão e exterminarão inevitavelmente as mais antigas, as menos perfeitas e intermediárias, e, daí, tornarem-se as espécies mais bem determinadas e mais distintas.

  Pode objectar-se que no presente ninguém percebe tais mudanças.

  O teórico responde, porém, que, operando a selecção natural somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas, não pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a passos lentos e curtos. Essa lei natural não existiria, sem dúvida, se cada espécie tivesse sido criada independentemente.

  O testemunho geológico apoia a teoria da descendência modificada. As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos sucessivos no cenário do mundo e, a soma das mudanças efectuadas em tempos iguais é muito diferente nos diversos grupos. A extinção de espécies e de grupos inteiros de espécies, que representou papel tão importante na história do mundo orgânico, é uma série quase inevitável do princípio de selecção natural, pois as formas antigas devem ser suplantadas por novas formas mais perfeitas. Nem as espécies isoladas, nem os grupos de espécies podem reaparecer, uma vez interrompida a cadeia das gerações regulares. A extensão gradual das formas dominantes e a lenta modificação dos seus descendentes concorrem, depois de tantos intervalos de tempo transcorrido, para fazer supor que as formas da vida tivessem mudado simultaneamente no mundo inteiro. O carácter intermediário dos fósseis de cada formação, comparados aos de formação inferiores e superiores, explica-se muito simplesmente pela posição média que eles ocupam na cadeia geológica. O grande facto constatado, de pertencerem todos os seres extintos ao mesmo sistema dos actuais, integrando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos intermediários, atesta o parentesco e a descendência originais.

  O autor invoca também em seu apoio a importância única dos caracteres embriológicos, observando que as afinidades reais dos seres organizados são devidas à hereditariedade e comunidade de origem. O sistema natural é uma árvore genealógica cujos lineamentos precisamos descobrir com o auxílio de caracteres mais permanentes, por leve que seja a sua importância vital.

  Não despreza ele, tampouco, a analogia. A disposição dos ossos é análoga na mão do homem, na asa do morcego, na membrana natatória da tartaruga e na perna do cavalo; o mesmo número de vértebras forma o pescoço da girafa e do elefante. Estes e outros factos semelhantes explicam-se por si mesmos na teoria da descendência lenta e sucessivamente modificada. A identidade de plano da asa e da perna do morcego, que, no entanto, servem a fins tão diferentes; mandíbulas e patas de caranguejo, pétalas, estame e pistilo de uma flor, explicam-se do mesmo modo pela modificação gradual de órgãos outrora semelhantes aos primitivos antepassados de cada classe.

  A falta de exercício, às vezes auxiliada pela selecção natural, tende, amiúde, a reduzir as proporções de um órgão, que a mudança de hábitos ou as condições de vida pouco a pouco tornaram inútil.

  Dessarte, é fácil conceber a existência de órgãos rudimentares.

  Pode, enfim, perguntar-se até onde se estende a doutrina da modificação das espécies.

 Todos os membros de uma classe podem ser religados em conjunto, pelos laços de afinidade e igualmente classificados, em virtude dos mesmos princípios, por grupos subordinados a outros grupos. Darwin não pode duvidar que a teoria da descendência não abranja todos os membros de uma classe. Ele pensa, até, que todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos primitivos, pelo menos e, o reino vegetal de um número igual ou mesmo inferior.

  A analogia – acrescenta –, levá-lo-ia um pouco mais longe, isto é, à crença de que todas as plantas e animais descendem de um protótipo único; mas, que a analogia pode ser um guia enganador. No mínimo, a verdade é que todos os seres vivos têm muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular, leis de crescimento e faculdade de serem afectados por influências nocivas.

  Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar pelos conhecimentos actuais, a vesícula germinativa é uma só. De sorte que, cada indivíduo organizado parte de uma mesma origem.

  Mesmo que consideremos as duas principais divisões do mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que certas formas inferiores apresentam caracteres intermédios assaz pronunciados, ao ponto de divergirem os naturalistas na sua respectiva classificação. O professor Cl. Gray notou que “os esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter possuído, de início, os caracteres da animalidade, passando depois a uma vida vegetal equívoca”. Assim, partindo do princípio da selecção natural com divergência de caracteres, torna-se crível que animais e plantas tenham de algum modo derivado de uma forma intermediária. Importa admitir também que, quantos seres lograram viver até hoje, podem descender de uma forma primordial e única. Tal consequência porém, funda-se principalmente na analogia e pouco importa seja ou não aceite. Outro tanto não se dá com as grandes classes, tais como os articulados, os vertebrados, etc., pois aí é nas leis da Homologia e da Embriologia que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma descendência única (vi).

  Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.

  Se, enfim, a nossa legítima curiosidade se atreve a aplicar essa teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de admiração e tristeza, que talvez descendamos dum exemplar de símio desaparecido. Indubitavelmente, a nossa dignidade se sente ofendida diante da só possibilidade de uma tal jerarquiamas, se observarmos a Natureza, sem ideias preconcebidas, não parece que façamos excepção à lei geral? Muitos de nós preferem descender de um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado. E contudo, a Natureza não nos consultou a respeito.

  Pelo que nos toca, nunca dedicamos escassas horas ao estudo da Embriologia, que não ficássemos muito impressionados com as suas abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões, em fases diferentes, que não víssemos neles um vestígio rudimentar das fases correspondentes, pelas quais a nossa humanidade haveria de ter passado em tempos anteriores.

  Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como no estado de esboço, os principais caracteres das quatro grandes classes do entroncamento, sem contudo passarem pelas formas dos outros troncos zoológicos. Desde o começo de sua existência secreta, a célula germinativa manifesta um sistema de desenvolvimento característico, sem tomar a forma do verme articulado, do molusco, ou do radiário. Sem dúvida, esta sucessão representa uma imagem das fases que, no curso das idades, a mesma classe de animais atravessou sucessivamente, avançando na escala dos seres. Quem já deixou de se surpreender com a semelhança que o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe, do réptil e da ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um passado longínquo?

  Não se ousa encarar de frente essa origem e, contudo, a questão é deveras importante para merecer um ímpeto de coragem. Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem na sua natureza terrena. Ao terminar este capítulo sobre a origem dos seres, esta perspectiva continuará a mostrar-nos um governo intelectual na marcha ascendente da Criação.

   A hipótese zoológica que encara o homem como descendente de uma raça símia, antropóide, não é imoral nem anti-espiritualista. Os que a abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram com o propósito de hostilizar o Cristianismo e por professarem doutrinas pagãs. Muito ao contrário, fizeram-no a despeito de grandes prevenções, favoráveis à superioridade dos nossos primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes abastardados. De resto, não compreenderíamos como sábios dignos desse nome pudessem afagar o prazer pueril de fazer graça com o Cristianismo. Pensamos que a Ciência deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos de fé.

  Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica do homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não se enquadra nas classificações da História Natural. Pela sua perfectibilidade, que se poderá atribuir à linguagem, pela inteligência racional, pelas suas faculdades espirituais, em suma, o homem domina toda a Natureza terrestre. O seu espírito não incide nos domínios do escalpelo. O seu valor não se afere pelo corpo, pelo esqueleto, pelo fígado ou pelos rins, mas, pelo seu carácter intelectual. Descenda, pois, de uma ou de outra fonte o nosso corpo, isso em nada nos afecta a alma. O mundo da inteligência não é o mundo da matéria. Não somos menores por isso, nem menos puros. Somente por estreiteza de espírito é que interferimos na filosofia psicológica imaginários temores, suscitados pela ciência zoológica. Se o nosso berço terrestre tivesse sido a manjedoura do estábulo rústico, qual o de Jesus de Nazaré, nem por isso a nossa vida e a nossa missão seriam menos santas e altaneiras. A superioridade está nas nossas faculdades intelectuais.

/…
(ii) Charles Lyell – The Antiquity of Man... A ancianidade do homem provada pela Geologia e anotações sobre a origem das espécies, por variação.
(iii) Professor Sedgwick – Discurse on the Studies of the University of Cambridge, 1850.
(iv) Edinburgh – Footprints of the Creator, 1849.
(v) On the Origine of Species by the mean of natural selection.
(vi) O tradutor francês de Darwin adverte, a propósito da unidade dos centros de criação específica, que seria extremamente rigorosa a acepção do termo “paternidade” única, por um só indivíduo, ou casal único. “Mais incrível, ainda, supor que toda a forma primordial, o antepassado comum e arquétipo absoluto da criação viva não tivesse sido representado senão por um único indivíduo. De onde teria provindo esse indivíduo único? Seria preciso, depois de eliminar tantos milagres, deixar que subsistisse um? Se um tal indivíduo existiu, ele só podia ser o planeta. Nada impede admitir tenha tido esta matriz universal, numa de suas fases existenciais, o poder de elaborar a vida. Mas, um só ponto da sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes? Ou deveremos crer lhe tivessem estes desabrochado do seu seio? Todas as analogias levam antes a supor a Terra fecunda em toda a sua superfície; que o seu invólucro aquoso fosse o primeiro laboratório e que inumerável fosse a produção dos germes, sem dúvida semelhantes. Células germinativas, nadando esparsas, em cachos ou em filamentos, nas águas, uma cristalização orgânica e nada mais. Evidentemente, um tipo, uma forma, uma espécie única, mas não um só indivíduo, do qual se formassem sucessivamente todos os organismos. Se se admitir a simplicidade desses germes primitivos, reconhece-se que as possibilidades de desenvolvimento deveriam apresentar-se entre um número considerável de seres. Em virtude do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento sucessivo da organização seguindo um certo número de séries típicas, paralelas ou mais ou menos divergentes, nada há de surpreendente ao princípio vital repousando em estado latente em cada germe. As leis gerais da vida seriam em primeiro lugar fixadas, nesta hipótese discutível, segundo as condições físicas peculiares do nosso planeta, ao mesmo tempo que começasse a divergência dos tipos necessariamente adaptados à diversidade pouco profunda dessas condições. À medida que as raças se tivessem fixado e aperfeiçoado, teriam diminuído de número, ao mesmo tempo em que cada qual visse diminuir os seus representantes. A posteridade crescente de um certo número de árvores primitivas deveria, sucessivamente, tomar o lugar das raças que sucumbiam na luta universal, por efeito da inferioridade orgânica relativa.


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (II de III), 23º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

domingo, 19 de janeiro de 2020

Deus na Natureza ~

~ a origem dos seres ~
(I de III)

  Será rebaixar a ideia de Deus, considerar o Universo como um gigantesco paralelo de uma obra única, cujas modalidades se manifestam sobre a forma de vários aspectos e cujos poderes se traduzem em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência hajam de irradiar esplendores; A luz, o calor, a electricidade, o magnetismo, a atracção, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao tempo de Pan, tocava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e prenuncia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.

  No amanhecer da Natureza terrestre, já os sóis resplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a gravitarem harmónicos nas suas órbitas, sob a regência da mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o primeiro dia da Terra. Solidões oceânicas, tempestades ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens viram chegar-lhes, ao fim, uma paz desconhecida. Raios de ouro atravessaram as nuvens; um céu azul tonalizou a atmosfera; um belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não eram dias e anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o berço. Os astros são jovens, ainda quando as miríades de gestação tenham sucumbido. As ilhas surgiram, então, do seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas praias o seu manto virginal. Muito tempo depois, dos galhos das vides rebentaram flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo profundo das florestas repercutiu o canto das aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos se cruzaram no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se dava aos espasmos da vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento, que a força orgânica, que hoje se transmite de geração a geração, tenha aparecido como uma resultante natural e inevitável das condições fecundas em que se encontrava a Terra quando soou a era da vida; suponhamos as primeiras células orgânicas diversamente constituídas, formando tipos primordiais distintos, ainda que simples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de sucessivas variedades; suponhamos, enfim, que todas as espécies vegetais e animais, inclusive a humana, sejam o resultado de transformações lentas, operadas sob condições progressivas do planeta, e perguntemos em que, e como, pode essa teoria nulificar a necessidade de um criador e organizador imanente? Quem deu essas leis ao Universo? Quem organizou essa fecundidade? Quem imprimiu à Natureza essa tendência perpetuamente progressiva? Quem deu aos elementos materiais a faculdade de produzir ou de receber a vida? Quem concebeu a arquitectura desses corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos quais todos os órgãos tendem para um mesmo fim? Quem presidiu à conservação dos indivíduos e das espécies na trama inimitável dos tecidos, dos arcaboiços, dos mecanismos – pelo dom previdente do instinto, por todas as faculdades, enfim, que possuem respectivamente todos os seres vivos e cada qual de acordo com o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força vital é uma força da mesma natureza das forças moleculares, insistamos em perguntar: – quem é o seu autor? Seria por não haver este autor concebido tudo com as próprias mãos, que haveríeis de o negar?

  De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever letra a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Académica, que a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, a entregou ao paginador, que, por sua vez, a confiou aos contramestres e aprendizes, etc.; e depois, ainda me obrigou a corrigir as provas – sem falarmos da escolha do papel, do formato, do número de páginas, da encadernação, tudo enfim que representa a factura de um livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor, bastando apenas querê-lo para que o plano instantaneamente se completasse? Acreditais que, por haver simplesmente coordenado certas regras, em virtude das quais a ideia expressa em tinta, papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, actuados sob a minha vigilância constante – se materializou em parte, tão invisivelmente quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído da legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão das provas, que, já o dizia Balzac, é o suplício infernal dos escritores. E se algum brincalhão de mau gosto apregoasse pelas ruas de Paris que o meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à gargalháda e não deixaria de me interessar por tão precioso privilégio.

  Fosse-me permitido o paralelo entre o livro da Natureza e o meu e, creio que faria coisa assim como comparar uma boneca mecânica à Venus de Milo, viva, ou, então, as rodas do relógio apresentado a Carlos Magno pelo califa Harun al-Rashid, ao mecanismo do sistema universal.

  Todavia, não sereis vós quem há de elevar o meu trabalho às alturas da Criação natural. Se a boneca mais insignificante e o mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam identificar um arquitecto na sublimada harmonia do edifício cósmico?

  Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário, imaginado em torno da acção sensível do Criador e mediante o qual pretendamos limitar a sua presença, a ideia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com singular subtileza. Essa propriedade particular da ideia do ser incriado manifesta-se em cada conclusão do nosso arrazoado!

  Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo acordo a consciência do naturalista eminente com as pretendidas consequências da sua teoria da selecção natural. De resto, o tradutor feminino da obra teve o cuidado de nos advertir que, “em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em nada contrário à ideia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima satisfação que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do autor da Origem das Espécies: “Não vejo em que possam as teorias expostas nesta obra melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por demonstrar quanto são inconscientes essas impressões, basta lembrar que a maior das descobertas humanas – a da lei de gravitação – foi hostilizada pelo próprio Leibnitz como subversiva da religião natural. Um notável autor sacro escreveu-me, em tempos, ter chegado gradativamente a convencer-se de que a criação divina das formas simples, originais, capazes de por si evoluírem e se transformarem em formas úteis, era a concepção mais justa e compatível com a majestade do Supremo Ser, do que presumir a necessidade de um novo acto criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcionamento das suas próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente satisfeitos com a hipótese da criação independente de cada espécie. A meu ver, o que conhecemos das leis impostas à matéria, pelo Criador, está mais de acordo com a formação e extinção dos seres presentes e passados por causas secundárias, semelhantes às que determinam o nascimento e a morte dos indivíduos. Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas como descendentes em linha directa de seres que viveram anteriormente aos depósitos do período Siluriano, eles me parecem enobrecidos.”

  Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:

  “Que interesse nos desperta o espectáculo de uma praia coberta de vegetação, pássaros a cantar, insectos a esvoaçar, anelídeos ou larvas rastejando no solo húmido, ao pensarmos que todas essas formas elaboradas com tanto cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de outras por uma série de relações complicadas, foram todas produzidas por leis de uma contínua actividade em torno de nós! Essas leis, tomadas no seu mais lato sentido, enumeramo-las aqui: – de crescimento e reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas precedentes; de variabilidade sob a acção directa ou indirecta das condições exteriores da vida, e do uso ou da falta de exercício dos órgãos; da multiplicação das espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência vital e a eleição natural e, daí, a divergência de caracteres e extinção das formas específicas.

  “É assim que, da guerra natural, da fome e da morte, resulta o mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a formação lenta dos seres superiores. No encarar a vida e as suas potências animando originariamente algumas ou uma única forma simples, ao influxo do Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com as leis fixas da gravitação, formas inumeráveis, cada vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolverão, mediante uma evolução sem fim”. (*)

  Declarações interessantes que importa registar, para opô-las aos nossos materialistas.

 Pretendem estes que a doutrina da geração espontânea, sustentada pelo Sr. Pouchet e a da origem das espécies, amparada pelo Sr. Darwin, destroem, ambas, a ideia de Deus, e eis que, nem um nem o outro admite essa acusação e protestam contra a ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais, são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim, como novos dados, este duplo e valioso facto. Em primeiro lugar, os materialistas não têm o direito de se apoiarem na geração espontânea para concluir pela não existência de Deus:

  1º – porque essa geração não está provada, e

  2º – porque, se o estivera, não acarretaria uma tal consequência.

  Em segundo lugar, não têm o direito de afectar ao seu ponto de vista o sistema do transformismo das espécies, já porque tal sistema não está provado, e já porque ele não afecta a questão dominante das origens da vida.

  Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores são formados por geração espontânea, no âmago da matéria inorgânica, haveria grandes probabilidades para crer que assim sucedesse e, com maioria de razão, com a origem das espécies. Os partidários das transformações específicas chegaram mesmo a apoiar-se na doutrina das gerações espontâneas para explicar a existência, ainda hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar da tendência das espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ainda hoje se encontra nesse intervalo. Era a opinião de Lamarck. Cumpre observar que o chefe do movimento actual não compartilha tais ideias e nem mesmo acredita na geração espontânea. “A selecção natural – diz Darwin – não afecta nenhuma lei necessária e universal de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer variação que se apresenta, quando vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho apenas necessidade de aqui dizer – declara ele mais à frente – que a Ciência no seu estado actual não admite, em geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio da matéria inorgânica.”

  Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores, que proclamam as doutrinas por nós combatidas e sim pretensos filósofos, que, apoderando-se dos estudos científicos daqueles, querem, a toda a força, tirar conclusões repudiadas pelos próprios cientistas. Temos o dever de lhes desmascarar o jogo e demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores ilustres, que, se o sistema materialista se obstina ingenuamente a exibi-los em público, assentes no seu palco teatral, não passa isso de mero efeito fantasmagórico, pura ilusão óptica.

  Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Frémy, que pensou ter notado corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como porta-bandeira do materialismo para a hipótese da geração espontânea. Pois vejamos o que disse este químico no Instituto:

  “Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a ideia de geração espontânea, tomada no sentido da produção de um ser organizado, por mais simples que seja, com elementos que não possuem a força vital. A síntese química permite, sem dúvida, reproduzir grande número de princípios imediatos de origem vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma barreira intransponível às reproduções sintéticas. Ao lado dos princípios imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há outras substâncias menos estáveis que as precedentes, mas também muito mais complexas quanto à sua constituição e que podem ser designadas sob o título genérico de corpos semi-organizados.

  “Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização, com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a putrefacção, quase no mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às influências do ar, do calor e da humidade.

  “Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas também podem sair desse estado à custa da própria substância, sob os elementos de organização, desde que as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”

  Na actualidade não se pode, portanto, cientificamente, depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada está longe de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o facto. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, nas asas de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, uma vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objectam os gracejadores, lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Um súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.

  “E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse Deus, então: Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que voem acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a terra.

  “E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus disse, então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito”. (**)

  Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De resto, os Santos Padres professaram essa doutrina. Alexander von Humboldt achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o povoamento das ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea (Generatio aequivoca apontanea atst primaria). “Se os anjos ou os caçadores do continente – diz esse Pai da Igreja – não transportaram animais a essas ilhas afastadas, é forçoso admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por que encerrar na Arca animais de toda a espécie?” Dois séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compêndio de Trogue Pompée, já estabelecida a propósito da dissecação primitiva do mundo antigo, do planalto asiático, analogia com a geração espontânea ou, seja, uma ligação semelhante à que se depara na teoria de Linnaeus, acerca do paraíso da Terra, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa.

  Quanto ao mais, sem que pese à energia dos seus discursos, estes Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente, em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão lançam sobre o mistério o véu dos talvez; em vão se entretêm a imaginar mil metamorfoses

  Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui glosar para edificação do auditório. “Enigma insolúvel – diz B. Cotta – que não podemos deixar de atribuir à potência imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgânicos.” Eis uma confissão digna de um espiritualista. Büchner, por outro lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um papel mais importante nos tempos primitivos com relação aos actuais, visto não se poder negar que ela tenha engendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo: “Verdade é que nos faltam provas e mesmo conjecturas plausíveis dos pormenores desses espécimes, o que estamos longe de negar.” E, voltando à ideia dominante, declara imediatamente que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem intervenção de qualquer força exterior”.

  Karl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças físico-químicas conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem dos organismos. Todo o ser vivo, vegetal ou animal, tem a sua origem essencial na célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem essencial foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é que começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse sucedido uma única vez – diz o autor das Lições sobre o Homem – mediante acção simultânea de factores diversos, que não conhecemos, é lícito concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos químicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificação devesse determinar imediata modificação no objecto produzido, isto é, na célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre toda a superfície terrestre, as mesmas causas tenham actuado e ainda actuem nas mesmas condições e com a mesma energia, na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessariamente, que as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de desenvolvimento diferentes.”

  Virchow não explica melhor a questão de origem. “Em certa fase de desenvolvimento da Terra – diz – sobrevieram condições anormais, sob as quais, entrando nas novas combinações, os elementos recebiam o movimento vital, donde as condições ordinárias se tornaram vitais.”

  Quanto a Charles Darwin, em vão temos rebuscado a sua opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se ele com o explicar a variabilidade possível dum certo número de tipos primitivos e, é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate absolutamente dessa origem!

  O problema é obscuro: a distância do nada a alguma coisa é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem as nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas, todos perseguimos o inexplicável mistério da vida. Porque não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos voltar à questão e fácil nos seria pôr todas as vantagens do nosso lado; poderíamos impor Deus aos adversários, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a Ciência que as afinidades da matéria possam criar a vida, o papel do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que o demonstrasse, a origem e o entretenimento da vida deixam ver claramente a existência de uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto.

  Tal, porém, é a força da nossa estratégica, que jamais queremos abusar de uma posição privilegiada e preferimos combater sempre em paridade de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos adversários, para sua edificação momentânea e baixando, logo a seguir, das alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da organização da vida, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo problema dessa mesma vida. Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da organização, a existência do Ser inteligente não esteja soberanamente demonstrada. Ainda mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar espontaneamente em dadas circunstâncias materiais e, ainda que os seres primários se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma prova irrefutável da soberania da força coordenada. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o que faz. Assim, também, chegasse o homem a descobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou dos vermes intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, apenas, constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes superiores aos seus e mediante processos que, a despeito de sua inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (supondo que lá chegasse).

  Mas, finalmente, nem por isso a causa da razão divina restaria mais esclarecida.

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(*) Da Origem das Espécies. Últimas notas.
(**) Génese


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (1 de 3), 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)