Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (III)

  Para um desses redutos, onde agora sofria o duque as ásperas agruras de que Girólamo se tornara responsável, é que ele conduziu o sobrinho, a fim de produzir na sua memória espiritual o choque inicial do horror, por meio do qual a sincronização com a região da treva faria o culpado começar a pagar o pesado e duro tributo da regeneração impostergável.

  Inerme, descomposto, o espírito encarnado foi arrastado ao núcleo de punição devida e, quando sentiu a atmosfera asfixiante e se pôde dar conta do espectro que o vituperava, foi acometido de tão pungente sofrimento que o corpo, no leito distante, traduzia a dor em gritos, estertores e agitação penosos…

  O dia marchava alto e a cidade estava em bulha crescente. Sobressaltada pela atroada que vinha da peça do hóspede e estando a sós àquela hora, sem sopitar o desejo que a fazia fremir, Lucrécia, a anfitriã desassisada, resolveu afrontar os códigos da moral e experimentar o risco de qualquer dano, correndo precípite pela recâmara, e, vendo o hóspede agónico, avançou, audaciosa, e o despertou com agitação.

  Atraído ao corpo, – sublime refúgio para os viciados e culpados –, Girólamo ergeu-se, descorado, trémulo, a custo recobrando o controle dos sentidos estiolados. Vencida a primeira etapa do despertamento amargo, dando-se conta da presença da bela mulher, apressou-se em explicar o grave incidente.

  – Devo estar enfermo, – gaguejou, estremunhado. – Desde a saída do meu solar venho sendo vítima de pesadelos incessantes. Em lucidez, sinto-me acoimado por demónios vingadores e, agora, dormindo, sinto-me arrastado ao inferno…

  – Meu belo forasteiro – retrucou a arisca, em leviandade imperdoável –, seu mal deve ter outra origem…

  Sorriu, generosa, provocante. Acercou-se do moço alucinado, ainda, pelo receio e as sedas fartalhantes roçaram o corpo venal do rapaz. Dela se desprendiam os aromas fortes, luxuriosos, então em voga. Atraente, sabia como utilizar a arma da sensualidade. Curvando-se sobre ele, com o pretexto aparente de enxugar-lhe o suor, levou as mãos à face vincada por olheiras, que Girólamo apresentava, e acariciou-o. Subitamente abrasado, insensível a qualquer sentimento de gratidão ou respeito ao lar que o acolhia, espicaçado nos sentimentos inferiores, aos quais muito facilmente dava campo, o ardente senense arrebatou-a e, fogoso, na volúpia de mais um cometimento sórdido, beijou-a demorada, sofregamente.

  O tempo não lhes tinha significação, nem o local, que deveria ser sagrado, na condição de um santuário doméstico legalmente constituído. Na paixão que os desgovernava, iam dar curso ao atentado à dignidade, quando o moço, febril pelo desejo e lapso pelas perversões contínuas do corpo, escutou a estrídula gargalhada explodir dentro da cabeça.

  Fulminante pelo desespero, empurrou Lucrécia sobre o leito, segurou a cabeça com as duas mãos e chocou-a contra as pedras da parede, como se a desejasse arrebatar. A mulher, surpreendida pelo inesperado insucesso, recuou, amedrontada, ao fitar o moço repentinamente possuído pela demência. Horrorizada, desceu a escada, para buscar o esposo no andar térreo da habitação nabada e explicar-lhe o desalinho do hóspede.

  Informado do súbito mal-estar do companheiro, Francesco, que se encontrava no pátio interno do palácio, subiu a escada com celeridade e pôde impedir que o amigo enceguecido culminasse, naquele transe, numa tragédia imprevisível.

  – Talvez te tenhas perturbado com o áugure, falou-lhe, tentando acalmá-lo. – Não te deveria ter conduzido àquele local. Estavas agitado e talvez as informações e magias do louco te tivessem afectado. Mandarei um servo chamar o médico e logo mais estarás pronto para enfrentar o dia quente, para nós promissor.

  Ante a naturalidade do amigo, Girólamo aquiesceu e acalmou-se, prometendo asserenar-se.

  Não podia, porém, compreender o que se passava. Sempre pudera dominar os impulsos nos momentos oportunos, dissimulando os estados íntimos, mesmo quando comandado por emoções violentas. Até ali era tido por cidadão honrado e nobre respeitado. O seu título aureolava-o de prestígio e, como cavaleiro, caminhava em destaque ao lado das personalidades de preeminência da cidade. Deveria estar enlouquecendo e a providência de chamar o médico parecia-lhe acertada. Aguardara aquele momento, reflexionava, para viver intensamente a vida nocturna de Siena, nos dias da Festa, e aquela enfermidade parecia disposta a impedi-lo. Não procurára os sogros por desejar que a sua presença passasse despercebida. Planejava visitá-los após o prazer exacerbado, quando já estivesse de retorno, defendendo, com esse acto, a retaguarda. No entanto…

  Pudesse, porém, o leviano ver além da barreira orgânica e enxergaria, contraído e carrancudo, o duque di Bicci, irreconhecível na sua deformação exterior, agressivo, tendo Assunta a debater-se nas suas mãos poderosas, enquanto blasfemava, vingador, insaciável, desforçando-se naquela que ajudara o amante a arrojá-lo no couto da amargura. As expressões mais sórdidas, que escapavam dos lábios contorcidos de Assunta, traduziam a fúria de que se via possuída e o superlativo desejo de vingança que a vergastava, a alucinava. Ameaçava o antigo companheiro, em ímpar agonia. Desejando libertar-se, entrou, também, em agressão, mas, impotente para tanto, por ser responsável consciente pelos delitos de que agora se tornava vítima, renhiu demoradamente e desmaiou nas garras poderosas que a lancinavam…

  Chegando o médico, este surpreendeu-se com a palidez do cliente. Fez-lhe um exame superficial, como era comum na época, e prescreveu-lhe vários duches, aplicando-lhes uma rápida sangria descongestionante e mais alguns medicamentos, cujas fórmulas elaborou. Sugeriu repouso, depois do que poderia tomar um bom cálice de vinho…

  Os sorrisos varreram a preocupação, encerrando a gravidade da doença.

  O dia transcorreu morno e activo. Saindo a pé com Francesco, para ligeiras visitas a amigos, ambos retornaram cedo ao palácio, afim de retemperaram as forças para o baile-de-máscaras que o duque di Médici preparara para aquela noite, em homenagem às comemorações do dia imediato.

  Os convites distribuídos anteriormente foram dirigidos a mais de duzentos ruidosos senenses e visitantes, empolgados com os surpreendentes prazeres que os aguardavam.

  O Palácio Médici, em situação privilegiada da cidade, era uma imensa fortaleza, no acme de uma colina, entre árvores vetustas e cercado de largo fosso, que resguardava os jardins exóticos, de rosas variadas, protegido pela Viale dei Mille.

  A construção, erguida por Cosme I (Médici), é vetusta e sobranceira, donde se tem a visão da cidade engalanada.

  Os salões da herdade seriam abertos, na oportunidade, ao grande público, para uma alucinante festa de prazer, das que a fizeram célebre noutros tempos. Já não desfrutando do mesmo prestígio do passado, desde a anexação da Toscana à Áustria, os Médici entregavam-se ao gozo, recuperando em dissipação o que perderam em destaque político. As autoridades governamentais, por motivos óbvios, receberam convite especial, com o justo destaque que a sua condição impunha. Ao lado das comemorações programadas para o dia imediato. Não apenas a nobreza e os convidados especiais, mas o povo também, que normalmente se comprimia nos arredores, foi convocado podendo adentrar-se pelos jardins, ao ensejo abertos a todos, para ver o desfile da grandeza e do luxo, enquanto nos seus lares escasseavam o pão e a paz…

  Conquanto Girólamo fosse considerado persona-non-grata no Palácio Médici, por motivos compreensíveis, a instâncias de Francesco e da esposa, que receberam honrosa solicitação, resolveu participar, desde que seria um baile de máscaras, em que se poderia ocultar o carácter sórdido da aparência social, na dissimulação pelo disfarce.

  Lucrécia, abalada e ansiosa, ante o estado do homem cobiçado, com quem não pudera consumar a leviandade, gastou o dia nos aprestos superficiais para o baile.
/…



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 3 de 4, 24º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O Espiritismo na Arte ~


Sétima lição

(Acção do pensamento na literatura e na oratória)

|27 de Janeiro de 1922|

“Esta noite vamos abordar o domínio artístico, que tem por veículo puro o pensamento, o pensamento na literatura e na oratória. Na nossa última conversa mostramos como, sob o ponto de vista artístico, o reflexo do pensamento podia, graças a meios maravilhosamente subtis, ligar-se a moléculas fluídicas e, por meio de cores variadas, representando ideias, compor quadros nos quais a arte da cor reproduz cenas tendo o belo por símbolo; isso dito em forma de transição. E agora, qual será a acção do pensamento na arte?

O pensamento é, antes de tudo, um dom de observação. O ser humano, encarnado ou desencarnado, pode explorar, em pensamento, todos os meios. Deixaremos de lado os seres que têm o carácter essencialmente material e levam os seus pensamentos para mundos onde reina o espírito do lucro ou da luxúria.

Porém, no ser evoluído, o pensamento se elevará muito mais alto.

Vós sabeis que, na vossa Terra, esse pensamento se liga à pintura dos costumes, à análise dos caracteres, e se traduz em escritos que revestem formas mais ou menos simbólicas. No espaço, o pensamento torna-se naturalmente muito mais livre; ele possui em si mesmo o reflexo exacto de todos os sentimentos que, anteriormente, nele puderam imprimir-se e impressioná-lo em graus diversos. O espírito, quando está liberto da matéria e chegou a uma certa elevação, pode transmitir o seu pensamento directamente a seres ainda encarnados. Daí os fenómenos da inspiração.

Tomemos, por exemplo, um ser espiritual muito evoluído e que professe o culto da beleza perfeita. Ele reconhecerá na Terra os seres humanos cujo pensamento já se traduz em feixes luminosos. Ele sentir-se-á atraído para esses seres e o seu próprio pensamento irá misturar-se ao deles; as suas moléculas fluídicas vivificarão, de uma forma intensa, as moléculas materiais geradoras que brotam do cérebro do ser que vive no vosso mundo.

Os espíritos escritores se aproximarão dos artistas da pena; os antigos oradores sentir-se-ão atraídos para os mestres da palavra.

Eis a transmissão do espaço para um mundo. Porém, no ser evoluído, o desejo de fazer irradiar o seu pensamento através do espaço não é menor que aquele que o atrai em direcção aos mundos habitados. Tomemos, por exemplo, um grande pensador da Terra; de regresso ao espaço, ele revelará aos espíritos que o cercam a própria essência das virtudes adquiridas. Depois, lendo nos cérebros dos seres encarnados, ali projectará ondas impregnadas de todas as qualidades do seu pensamento.

É uma obra imperecível esta transmissão através dos corpos fluídicos, porque quando a irradiação do pensamento é intensa, ela impressiona os cérebros de tal maneira que estes guardam sempre a marca da impressão recebida.

Existe uma estreita correlação entre os pensadores da Terra e os do espaço. Certos espíritos passam a sua existência no espaço recolhendo essas impressões. Quando, por sua vez, se sentem capazes de fazer os seres menos evoluídos aproveitarem essas impressões, eles retornam à Terra e então vêm a ser esses grandes escritores, esses grandes poetas e essas pessoas ilustres que ganham a respectiva admiração daqueles que os cercam.

A arte da eloquência forma-se da mesma maneira, porém com mais subtileza. No orador, as vibrações do espaço são poderosamente sentidas através do organismo, em consequência de um trabalho mais intenso, efectuado antes do nascimento, e pela acção de uma vontade muito mais forte. Cada orador, em graus diferentes, possui o dom da intuição, mais ou menos desenvolvido. Em geral, as qualidades de um mestre da eloquência resultam de uma preparação realizada no espaço, graças à soma das impressões recebidas nesse meio.

Segundo a disposição das moléculas materiais, a arte, no homem de letras ou no orador, é mais ou menos pura. Tendes a prova desse facto considerando-se as diferentes classes de escritores, de poetas, de oradores. No escritor comum, o pensamento ainda é carregado de um materialismo grosseiro. No poeta, o ideal, o símbolo, distinguem-se mais e quanto mais puros mais admiráveis eles são. O mesmo acontece com o orador que, profano ou sacro, consagra o seu órgão físico à defesa e à difusão das máximas e dos preceitos que emanam quase de Deus.

As formas de exteriorização do pensamento são tão múltiplas quanto os indivíduos. As categorias de pensadores podem distinguir-se no espaço pela intensidade luminosa que se desprende do seu ser fluídico. A vossa palavra, de natureza absolutamente material, é algo desconhecido no espaço; assim sendo, quando um ser retorna a essa vida, ele deve submeter-se a uma nova adaptação e a sua linguagem tornar-se-á a da interpretação das cores. Na cor há uma gama de tal modo subtil e variada que as menores modulações podem representar as menores flutuações do pensamento.

Um ser apaixonado pela arte poderá receber e transmitir pensamentos de uma delicadeza infinita e eu vos asseguro que, em minha opinião, a arte no pensamento se aproxima mais de Deus do que as outras artes.

Que delícia é para nós, no espaço, sentir as vibrações de um ser tendo o carácter de uma pureza, de uma elevação notáveis e que se traduzem por radiações de uma tonalidade maravilhosamente rica em átomos fluídicos.

Não retornarei aqui à análise de todos os domínios do pensamento. Eu quis simplesmente dar-vos o mecanismo da transferência da arte da Terra ao espaço e o seu princípio fundamental no meio das camadas fluídicas. Acrescentarei, e insisto em vos dizer, que o pensamento é, para nós, a coisa mais fácil de se transmitir, porque temos uma verdadeira alegria em ajudar na iluminação moral dos seres que vos cercam.

Os vossos cérebros humanos, fechados às sublimes ideias emanadas do Ser Divino, não podem, actualmente, compreender o encadeamento das forças em acção no Universo. Que vos baste saber que o pensamento de Deus atinge todos os seres e todas as coisas, que nenhuma das suas radiações é perdida, e que o nosso papel, de nós, pobres libélulas, é transmitir o melhor de nós mesmos àqueles que nos podem compreender. A arte vem ajudar-nos nisso. Portanto, dediquem-se a pensar com arte. Amai aqueles que pensam bem. Porque, estejam certos disto, a própria essência desse pensamento é um reflexo da vida no espaço; lamentem aqueles que não sabem pensar. A arte é uma das formas da beleza e, como o pensamento, ela deve ser o seu veículo, porque a beleza encerra em si mesma os princípios da bondade, da grandeza e da justiça.
/…



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IV – Sétima lição / Acção do pensamento na literatura e na oratória, 18º fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Da sombra do dogma à luz da razão ~


NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA (IV)

   Todas as ciências se encadeiam e se sucedem numa ordem racional; nascem umas das outras à medida que vão encontrando um ponto de apoio nas ideias e nos conhecimentos anteriores. A astronomia, uma das primeiras a ter sido cultivada, permaneceu nos erros da infância até ao momento em que a física veio revelar a lei da força dos agentes naturais; a química, nada podendo sem a física, iria suceder-lhe de perto, para depois caminharem as duas em conjunto, apoiando-se uma na outra. A anatomia, a fisiologia, a zoologia, a botânica, a mineralogia, só passaram a ser ciências sérias com a ajuda das luzes trazidas pela física e depois pela química. A geologia, nascida ontem, sem a astronomia, a física, a química e todas as outras, teria tido a falta dos seus verdadeiros elementos de vitalidade; só podia ter surgido depois.

   A ciência moderna fez justiça aos quatro elementos primitivos dos Antigos e, de observação em observação, chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as transformações da matéria; mas a matéria, em si, é inerte; não possui vida, nem pensamento, nem sentimentos; precisa da união com o princípio espiritual. O Espiritismo não descobriu nem inventou este princípio, mas foi o primeiro a demonstrá-lo por provas irrecusáveis; estudando-o, analisando-o, tornou-lhe a acção evidente. Ao elemento material veio acrescentar o elemento espiritual. Elemento material e elemento espiritual; eis os dois princípios, as duas forças vivas da natureza. Pela união indissolúvel destes dois elementos, explicam-se sem dificuldade uma quantidade de factos até então inexplicáveis |*.

   O espiritismo, tendo por finalidade o estudo de um dos dois elementos constituintes do Universo, toca na maior parte das ciências; só poderia aparecer depois da sua elaboração e nasceu, pela força das coisas, da impossibilidade de tudo se explicar somente com a ajuda das leis da matéria.

   Acusa-se o espiritismo de parentesco com a magia e com a feitiçaria, mas esquecemos que a astronomia tem como antepassada a astrologia judiciária, que não está assim tão longe de nós; que a química é filha da alquimia, com que nenhum homem de juízo se atreveria a ocupar-se nos dias de hoje. No entanto, ninguém nega que esteve na astrologia e na alquimia o germe das verdades de onde saíram as ciências actuais. Apesar das suas fórmulas ridículas, a alquimia abriu o caminho para o estudo dos corpos simples e para a descoberta da lei das afinidades; a astrologia, apoiando-se na posição e no movimento dos astros que tinha estudado; mas na ignorância das verdadeiras leis que regem o mecanismo do Universo, os astros eram, para o comum, entes misteriosos a que a superstição atribuía uma influência moral e um sentido revelador. Quando GalileuNewton ou Kepler deram a conhecer estas leis, quando o telescópio rasgou o véu e mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que certas pessoas consideram indiscreto, os planetas apareceram-nos como simples mundos semelhantes ao nosso e a pirâmide do maravilhoso desmoronou-se.

   Passa-se o mesmo com o Espiritismo em relação à magia e à feitiçaria; estas também se apoiavam na manifestação dos astros; mas, na ignorância das leis que regem o mundo espiritual, misturavam nessa relação práticas e crenças ridículas a que o espiritismo moderno, fruto da experiência e da observação, fez justiça. Com toda a certeza, a distância que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é maior do que a existe entre a astronomia e a astrologia, a química e a alquimia; querer confundi-las é provar que desconhecemos tudo.

  Só o facto de existir a possibilidade de comunicarmos com os seres do mundo espiritual tem consequências incalculáveis da maior gravidade; é todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais importância quanto atinge todos sem excepção. Este conhecimento não pode deixar de causar, ao generalizar-se, uma modificação profunda nos costumes, no carácter, nos hábitos e nas crenças, que têm uma tão grande influência nas relações sociais. É uma total revolução que se opera nas ideias, tanto maior e tão mais poderosa quanto atinge o coração de todas as classes, todas as nacionalidades, todos os cultos.

   É portanto com razão que o Espiritismo é considerado a terceira grande revelação. Vejamos em que diferem essas revelações e por que laço se ligam umas às outras.

   MOISÉS, como profeta, revelou aos homens o conhecimento de um Deus único, Senhor Supremo e Criador de todas as coisas; promulgou a lei do Sinai e estabeleceu os fundamentos da fé verdadeira; como homem, foi o legislador do povo através do qual esta fé primitiva que, depurada, se viria um dia a espalhar por toda a Terra.

   CRISTO, retirando da lei antiga o que é eterno e divino e rejeitando o que era só transitório, puramente disciplinar e de concepção humana, acrescenta a revelação da vida futura, de que Moisés não tinha falado, a dos castigos e recompensas que esperam o homem depois da morte (ver Revista Espírita, 1861, pp. 90 e 280).

   A parte mais importante da revelação de Cristo, no que ela é de fonte primeira, pedra angular de toda a sua doutrina, é o ponto de vista totalmente novo sob o qual dá a aperceber a Divindade. Já não é o Deus terrível, ciumento, vingativo de Moisés, o Deus cruel e impiedoso que rega a Terra com sangue humano, que ordena o massacre e o extermínio dos povos, sem exceptuar as mulheres, as crianças e os velhos, que castiga os que poupam as vítimas; já não é o Deus injusto que castiga um povo inteiro pelo erro do seu chefe, que se vinga do culpado na pessoa do inocente, que fere as crianças devido ao erro do pai; mas um Deus clemente, soberanamente justo e bom, pleno de brandura e de misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido e dá a cada um consoante as suas obras; já não é o Deus de um só povo privilegiado, o Deus dos exércitos a presidir aos combates para sustentar a sua própria causa contra o deus dos outros povos, mas o Pai comum do género humano, que estende a Sua protecção a todos os Seus filhos e os chama todos a si; já não é o Deus que recompensa e castiga com os bens da Terra, que faz com que a glória e a felicidade consistam na submissão dos povos rivais e na multiplicidade da progenitura, mas que diz aos homens: «A vossa verdadeira pátria não é neste mundo, mas no reino celeste; é aí que os de coração humilde serão elevados e os orgulhosos serão rebaixados.» Já não é um Deus que faz da vingança uma virtude e manda que se troque olho por olho, dente por dente; mas o Deus de misericórdia que diz: «Perdoai as ofensas se quereis que vos sejam perdoadas; devolvei o bem contra o mal; não façais aos outros o que não quereis que vos façam.» Já não é o deus mesquinho e meticuloso que impõe, sob os mais rigorosos castigos, a forma como deseja Ser adorado, que Se ofende com a inobservância de uma fórmula; mas o Deus grande que considera o pensamento e não se honra com a forma. Já não é, enfim, o Deus que quer ser temido mas o Deus que quer ser amado.
/…

|* A palavra elemento não é aqui aplicada no sentido de corpo simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no de parte constituinte de um todo. Neste sentido, podemos dizer que o elemento espiritual tem parte activa na economia do Universo, tal como dizemos que o elemento civil e o elemento militar figuram no montante de uma população; o elemento religioso entra na educação; que, na Argélia, existe o elemento árabe e o elemento europeu. (N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 17 a 23, 6º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Inquietações Primaveris ~


Jovens e Maduros

O conceito de Educação como o chamado de uma consciência para elevar ao seu nível uma consciência imatura, segundo René Hubert, coloca a questão no plano rousseauniano da educação individual para simplificá-la, mas aplica-se a todas as formas da educação colectiva. Rousseau mesmo usou essa táctica, pois não desejava reduzir a educação a um sistema privado de elite. A Educação como um acto de amor dirige-se a toda a Humanidade. Qualquer discriminação no processo educacional, seja por motivos raciais, sociais, nacionais ou outros, é uma deturpação do processo educativo e uma traição à sua finalidade básica, que é fazer de um ser biológico, como a criança ao nascer, ou de um ser social, como o adolescente e o jovem, um ser moral. As excessivas restrições de certos tipos de moral, como a vitoriana na Inglaterra e a das religiões da morte em todo o mundo, levaram a moral ao descrédito, pois a única virtude que produziram foi a hipocrisia. Quando se quer asfixiar a natureza humana, nas suas exigências vitais, o resultado é sempre o mesmo e as consequências futuras resultam na rebeldia total. Mas quando se trata de um ser moral, a expressão não se refere a esta ou àquela moral, e sim à Moralidade em termos pestalozianos. Nesse sentido, a Educação para a Morte abrange todas as idades da evolução biopsíquica do ser humano, que só atinge realmente os seus fins quando abrange as colectividades. Por isso, Pestalozzi deu ao seu sistema uma amplitude filantrópica. O simples facto de ministrarmos educação específica aos filhos de abastados, relegando as demais crianças e jovens aos azares da sorte, é uma imoralidade que atenta o princípio do amor, fundamental na educação. É precisamente neste ponto crucial do problema que a tríade Educação, Vida e Morte se resolve numa exigência única e, portanto, indivisível. Quem não educa não ajuda ninguém a viver e morrer. Isso equivale a dizer: Quem não distribui Educação em pé de igualdade para todos trai os objectivos existenciais do homem e da Humanidade. Por outro lado, o comércio puro e simples da Educação, mantido apenas com finalidade financeira, constitui-se num pecado ético muito mais grave do que o pecado mortal das igrejas.

Henri Bergson viu com precisão a unidade fundamental e substancial da Religião, da Moral e da Educação. Segundo a sua tese, a moral social funda-se na religião estática, fechada na sua dogmática exclusivista, dando-lhe, apesar desse exclusivismo, a designação de Moral Aberta, porque ela se abre no plano social. Opõe-se a ela a Moral Fechada, assim designada por ser individual, que não se subordina a nenhuma religião institucionalizada, mas apenas à consciência dos homens superiores. Essa é a moral que Pestalozzi chamou de Moralidade, colocando-a acima das religiões. Referiu-se também à religião animal, evidentemente primitiva, nascida da magia primitiva das selvas, que determina a moral tribal, da qual resulta, no processo evolutivo do homem, na moral social. Dessa maneira, o problema ético é o pivô de toda a Educação e de toda a Moral, tendo por expressão subalterna das exigências da natureza humana as formas possíveis da religião. Assim, Deus se faz humano e o homem se faz divino, na troca ingénua de favores mútuos entre o Céu e a Terra. Os jovens, recém-saídos da adolescência, acreditam-se dotados de poderes miríficos para transformar a realidade árida e caquéctica do mundo, renovando-a nos ardores de sua própria juventude. Quando um jovem decide entrar para a carreira eclesiástica é porque a sociedade o convenceu de que nela poderá usar os instrumentos sagrados, provenientes da magia das selvas e aprimorados na estética da civilização, para realizar, com os poderes terrestres e celestes em mistura o que o sacerdócio lhe faculta, as metamorfoses necessárias de toda a estrutura social para a implantação do Reino de Deus na Terra. Ao chegar, porém, ao plano dos adultos, amadurecendo no trato da mundanidade, em que imperam as ambições de poder e ganância, tão contrárias às perspectivas divinas dos seus sonhos que já pendem murchos à beira dos caminhos percorridos e marcados pelos rastos de amarguras, decepções e frustrações irremediáveis, vê que os instrumentos divinos, já agora inúteis nas suas mãos, nada mais são do que amuletos imaginários. Só lhe resta, então, rebelar-se contra si mesmo, negar-se na dialéctica dos sonhos e desenganos e ajustar-se ao comodismo da maturidade sem perspectivas. É nesse momento fatal do fim da juventude que as religiões entram em agonia. A crença ingénua e tecida de lendas piedosas transforma-se em paliativo ignóbil para os desesperos do mundo e os impulsos do antigo entusiasmo se revelam mortos e exangues como as serpentes de fogo da kundalini indiana que viraram cinzas e carvão triturado pelos anos. A Moral, que antes brilhava no céu das aspirações supremas da alma, é então um cadáver frio que serve apenas para defendê-lo das fraquezas inevitáveis do passado. No velório estúpido das carpideiras o herói fracassado, vencido por si mesmo, só encontra a consolação presente e duramente aviltante de acomodações. Qual a sua concepção da morte? A do túmulo, da podridão oculta no laboratório da terra para o aproveitamento na química dos resíduos impuros – o nada. O pivô poderoso que sustentava o giroscópio das aspirações supremas transformou-se apenas num pivô forjado por dentista de arrabalde, agora solto e inútil na boca desdentada de uma bruxa a que chamam pelo nome de Morte. Não há saída alguma nesse impasse final e definitivo. O homem se entrega então, sem ilusões ou esperanças possíveis, ao prazer mesquinho da bajulação e da subserviência, temperando os restos de sua existência perdida no calco amargo das humilhações. Essa é a tragédia das gerações que floresceram nos campos semeados pelas mentiras da Religião e da Moral que se cevam na hipocrisia. Por isso o Fim do Mundo, imaginado pelos teólogos e pregado pelos clérigos, nada mais é que o sabá funambulesco dos duendes sem esperanças. Os mortos ressuscitam para a vida eterna, mas o fazem nos seus corpos recuperados por um Deus sádico, que os retira do túmulo no estado precário em que morreram num passado longínquo, dando-lhes apenas o consolo de continuarem na eternidade a viver com as doenças e os aleijões de uma longínqua vida frustrada. Não seria preferível o caldeirão do Diabo, nesse caso, mais piedoso do que Deus?

É espantosa a inversão de valores produzida pela imaginação teológica do Cristianismo. Espremidos entre duas ordens de coisas, a humana e a divina, mas fatalmente apegados, por sua condição humana e pelo condicionamento das aspirações celestes, os teólogos fizeram tal confusão na suposta Ciência de Deus que herdaram das mitologias pagãs, que acabaram atribuindo virtudes de Deus ao Diabo e atribuindo a Deus as maldades deste. Disso resultou que Deus aparece muitas vezes no plano teológico vestido com a pele do Diabo, e este se atreve, não raro, a enfiar-se diabolicamente na pele de Deus. Claro que essa lamentável confusão levaria os homens, não aos caminhos do Céu nem às veredas do Inferno, mas ao deserto sem caravanas nem roteiros da descrença e do materialismo. Tanto papel impresso se gastou, em tomos inflados de sabedoria fantasiosa, que se tornou necessária a rede de dogmas inexplicáveis e invioláveis, até mesmo intangíveis, para se impedir o desmoronamento total das gigantescas estruturas teológicas. Mas não há prisão que escravize para sempre o pensamento, hoje reconhecido como a energia mais poderosa do universo. Esses prometeus de batina quiseram roubar o fogo do Céu sem escalar o monte Olimpo. Evitaram os raios de Zeus e de Júpiter, mas acabaram enrolados nas suas próprias trapaças. A Igreja não confiou nas sementes do Evangelho (que Lutero teve de arrancar à força de suas mãos azinhavradas) e semeou na Terra as sementes do Diabo, regadas a maldições e sangue, ao crepitar sinistro das fogueiras inquisitoriais. Essas mesmas fogueiras, porém, fizeram amadurecer a razão humana que explodiria em flores e frutos, em safras inesperadas nos fins da Idade Média e no Renascimento. Deus corrigia os teólogos.

As novas gerações são as últimas herdeiras da herança teológica e enfrentam os derradeiros embates com os defensores de uma tradição mentirosa e hipócrita. Essa posição exige dos jovens pesados ónus. Eles se sentem esmagados por aquelas exigências dos rabinos do Templo, que Jesus acusou de sobrecarregarem os homens com fardos esmagadores e não os ajudar sequer com a ponta dos dedos; amarrados a tradições da família e ao mesmo tempo atraídos pelas perspectivas de uma vida mais racional e justa em conflito consigo mesmo. O chamado conflito de gerações se acentua e complica, levando muitos jovens à revolta e ao desespero. Acabam rasgando os velhos protocolos dos Sábios de Sião e entregando-se à experiência, na busca de originalidades. Chegam à maturidade em plena confusão. Não conseguiram assimilar a cultura do passado e precisam integrar-se urgentemente nas condições de um mundo híbrido em que as opções se tornam embaraçosas. O anseio dos adultos, de se parecerem jovens, torna-os geralmente excêntricos, portanto desajustados. Nessa fase de transição a idade cronológica perde o seu antigo sentido, juventude e maturidade se confundem, gerando uma velhice insubordinada que tripudia sobre os valores antigos. Mas a força da idade acaba se impondo e obriga os velhos jovens a todos os compromissos da mentira e da hipocrisia. É por isso que parece, aos observadores atentos, como virados do avesso.

A Educação para a Morte os livraria dessas situações conflituosa, dando-lhes os instrumentos da compreensão da época, necessários à orientação segura para os tempos de insegurança. A morte nos espera e surpreende a todos, mas quando aprendemos que a morte não é a estação final da vida e sim um ponto de baldeação para outros destinos, reconhecemos a necessidade das fases de transição, que nos fazem conhecer o avesso do mundo. É nessas fases que a rotina das civilizações se quebra, se despedaça, para que o fluxo da evolução possa prosseguir nas civilizações subsequentes. As pessoas que não podem aceitar o princípio da reencarnação, que lhes parece absurdo, deviam pensar na rotina da vida, que nos fecha também na rotina das ideias feitas e aceitas sem análise. Num Universo essencialmente dinâmico, em que, como dizia Talles, não podemos entrar duas vezes num mesmo rio, pois enquanto saímos das águas o rio já se modificou, não é admissível aceitarmos que só o homem não possa mudar-se, transformar-se, e tenha de desaparecer com a morte. A regra é uma só, para todas as coisas e todos os seres. Desde que nascemos, até que morrermos, a nossa própria vida individual é uma constante mudança. Por isso perguntou o poeta mexicano Amado Nervo: “É mais difícil renascer do que nascer?”
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José Herculano Pires – Educação para a Morte, Jovens e Maduros, 14º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)