Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (III)

  Para um desses redutos, onde agora sofria o duque as ásperas agruras de que Girólamo se tornara responsável, é que ele conduziu o sobrinho, a fim de produzir na sua memória espiritual o choque inicial do horror, por meio do qual a sincronização com a região da treva faria o culpado começar a pagar o pesado e duro tributo da regeneração impostergável.

  Inerme, descomposto, o espírito encarnado foi arrastado ao núcleo de punição devida e, quando sentiu a atmosfera asfixiante e se pôde dar conta do espectro que o vituperava, foi acometido de tão pungente sofrimento que o corpo, no leito distante, traduzia a dor em gritos, estertores e agitação penosos…

  O dia marchava alto e a cidade estava em bulha crescente. Sobressaltada pela atroada que vinha da peça do hóspede e estando a sós àquela hora, sem sopitar o desejo que a fazia fremir, Lucrécia, a anfitriã desassisada, resolveu afrontar os códigos da moral e experimentar o risco de qualquer dano, correndo precípite pela recâmara, e, vendo o hóspede agónico, avançou, audaciosa, e o despertou com agitação.

  Atraído ao corpo, – sublime refúgio para os viciados e culpados –, Girólamo ergeu-se, descorado, trémulo, a custo recobrando o controle dos sentidos estiolados. Vencida a primeira etapa do despertamento amargo, dando-se conta da presença da bela mulher, apressou-se em explicar o grave incidente.

  – Devo estar enfermo, – gaguejou, estremunhado. – Desde a saída do meu solar venho sendo vítima de pesadelos incessantes. Em lucidez, sinto-me acoimado por demónios vingadores e, agora, dormindo, sinto-me arrastado ao inferno…

  – Meu belo forasteiro – retrucou a arisca, em leviandade imperdoável –, seu mal deve ter outra origem…

  Sorriu, generosa, provocante. Acercou-se do moço alucinado, ainda, pelo receio e as sedas fartalhantes roçaram o corpo venal do rapaz. Dela se desprendiam os aromas fortes, luxuriosos, então em voga. Atraente, sabia como utilizar a arma da sensualidade. Curvando-se sobre ele, com o pretexto aparente de enxugar-lhe o suor, levou as mãos à face vincada por olheiras, que Girólamo apresentava, e acariciou-o. Subitamente abrasado, insensível a qualquer sentimento de gratidão ou respeito ao lar que o acolhia, espicaçado nos sentimentos inferiores, aos quais muito facilmente dava campo, o ardente senense arrebatou-a e, fogoso, na volúpia de mais um cometimento sórdido, beijou-a demorada, sofregamente.

  O tempo não lhes tinha significação, nem o local, que deveria ser sagrado, na condição de um santuário doméstico legalmente constituído. Na paixão que os desgovernava, iam dar curso ao atentado à dignidade, quando o moço, febril pelo desejo e lapso pelas perversões contínuas do corpo, escutou a estrídula gargalhada explodir dentro da cabeça.

  Fulminante pelo desespero, empurrou Lucrécia sobre o leito, segurou a cabeça com as duas mãos e chocou-a contra as pedras da parede, como se a desejasse arrebatar. A mulher, surpreendida pelo inesperado insucesso, recuou, amedrontada, ao fitar o moço repentinamente possuído pela demência. Horrorizada, desceu a escada, para buscar o esposo no andar térreo da habitação nabada e explicar-lhe o desalinho do hóspede.

  Informado do súbito mal-estar do companheiro, Francesco, que se encontrava no pátio interno do palácio, subiu a escada com celeridade e pôde impedir que o amigo enceguecido culminasse, naquele transe, numa tragédia imprevisível.

  – Talvez te tenhas perturbado com o áugure, falou-lhe, tentando acalmá-lo. – Não te deveria ter conduzido àquele local. Estavas agitado e talvez as informações e magias do louco te tivessem afectado. Mandarei um servo chamar o médico e logo mais estarás pronto para enfrentar o dia quente, para nós promissor.

  Ante a naturalidade do amigo, Girólamo aquiesceu e acalmou-se, prometendo asserenar-se.

  Não podia, porém, compreender o que se passava. Sempre pudera dominar os impulsos nos momentos oportunos, dissimulando os estados íntimos, mesmo quando comandado por emoções violentas. Até ali era tido por cidadão honrado e nobre respeitado. O seu título aureolava-o de prestígio e, como cavaleiro, caminhava em destaque ao lado das personalidades de preeminência da cidade. Deveria estar enlouquecendo e a providência de chamar o médico parecia-lhe acertada. Aguardara aquele momento, reflexionava, para viver intensamente a vida nocturna de Siena, nos dias da Festa, e aquela enfermidade parecia disposta a impedi-lo. Não procurára os sogros por desejar que a sua presença passasse despercebida. Planejava visitá-los após o prazer exacerbado, quando já estivesse de retorno, defendendo, com esse acto, a retaguarda. No entanto…

  Pudesse, porém, o leviano ver além da barreira orgânica e enxergaria, contraído e carrancudo, o duque di Bicci, irreconhecível na sua deformação exterior, agressivo, tendo Assunta a debater-se nas suas mãos poderosas, enquanto blasfemava, vingador, insaciável, desforçando-se naquela que ajudara o amante a arrojá-lo no couto da amargura. As expressões mais sórdidas, que escapavam dos lábios contorcidos de Assunta, traduziam a fúria de que se via possuída e o superlativo desejo de vingança que a vergastava, a alucinava. Ameaçava o antigo companheiro, em ímpar agonia. Desejando libertar-se, entrou, também, em agressão, mas, impotente para tanto, por ser responsável consciente pelos delitos de que agora se tornava vítima, renhiu demoradamente e desmaiou nas garras poderosas que a lancinavam…

  Chegando o médico, este surpreendeu-se com a palidez do cliente. Fez-lhe um exame superficial, como era comum na época, e prescreveu-lhe vários duches, aplicando-lhes uma rápida sangria descongestionante e mais alguns medicamentos, cujas fórmulas elaborou. Sugeriu repouso, depois do que poderia tomar um bom cálice de vinho…

  Os sorrisos varreram a preocupação, encerrando a gravidade da doença.

  O dia transcorreu morno e activo. Saindo a pé com Francesco, para ligeiras visitas a amigos, ambos retornaram cedo ao palácio, afim de retemperaram as forças para o baile-de-máscaras que o duque di Médici preparara para aquela noite, em homenagem às comemorações do dia imediato.

  Os convites distribuídos anteriormente foram dirigidos a mais de duzentos ruidosos senenses e visitantes, empolgados com os surpreendentes prazeres que os aguardavam.

  O Palácio Médici, em situação privilegiada da cidade, era uma imensa fortaleza, no acme de uma colina, entre árvores vetustas e cercado de largo fosso, que resguardava os jardins exóticos, de rosas variadas, protegido pela Viale dei Mille.

  A construção, erguida por Cosme I (Médici), é vetusta e sobranceira, donde se tem a visão da cidade engalanada.

  Os salões da herdade seriam abertos, na oportunidade, ao grande público, para uma alucinante festa de prazer, das que a fizeram célebre noutros tempos. Já não desfrutando do mesmo prestígio do passado, desde a anexação da Toscana à Áustria, os Médici entregavam-se ao gozo, recuperando em dissipação o que perderam em destaque político. As autoridades governamentais, por motivos óbvios, receberam convite especial, com o justo destaque que a sua condição impunha. Ao lado das comemorações programadas para o dia imediato. Não apenas a nobreza e os convidados especiais, mas o povo também, que normalmente se comprimia nos arredores, foi convocado podendo adentrar-se pelos jardins, ao ensejo abertos a todos, para ver o desfile da grandeza e do luxo, enquanto nos seus lares escasseavam o pão e a paz…

  Conquanto Girólamo fosse considerado persona-non-grata no Palácio Médici, por motivos compreensíveis, a instâncias de Francesco e da esposa, que receberam honrosa solicitação, resolveu participar, desde que seria um baile de máscaras, em que se poderia ocultar o carácter sórdido da aparência social, na dissimulação pelo disfarce.

  Lucrécia, abalada e ansiosa, ante o estado do homem cobiçado, com quem não pudera consumar a leviandade, gastou o dia nos aprestos superficiais para o baile.
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 3 de 4, 24º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

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