Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Inquietações Primaveris ~


Jovens e Maduros

O conceito de Educação como o chamado de uma consciência para elevar ao seu nível uma consciência imatura, segundo René Hubert, coloca a questão no plano rousseauniano da educação individual para simplificá-la, mas aplica-se a todas as formas da educação colectiva. Rousseau mesmo usou essa táctica, pois não desejava reduzir a educação a um sistema privado de elite. A Educação como um acto de amor dirige-se a toda a Humanidade. Qualquer discriminação no processo educacional, seja por motivos raciais, sociais, nacionais ou outros, é uma deturpação do processo educativo e uma traição à sua finalidade básica, que é fazer de um ser biológico, como a criança ao nascer, ou de um ser social, como o adolescente e o jovem, um ser moral. As excessivas restrições de certos tipos de moral, como a vitoriana na Inglaterra e a das religiões da morte em todo o mundo, levaram a moral ao descrédito, pois a única virtude que produziram foi a hipocrisia. Quando se quer asfixiar a natureza humana, nas suas exigências vitais, o resultado é sempre o mesmo e as consequências futuras resultam na rebeldia total. Mas quando se trata de um ser moral, a expressão não se refere a esta ou àquela moral, e sim à Moralidade em termos pestalozianos. Nesse sentido, a Educação para a Morte abrange todas as idades da evolução biopsíquica do ser humano, que só atinge realmente os seus fins quando abrange as colectividades. Por isso, Pestalozzi deu ao seu sistema uma amplitude filantrópica. O simples facto de ministrarmos educação específica aos filhos de abastados, relegando as demais crianças e jovens aos azares da sorte, é uma imoralidade que atenta o princípio do amor, fundamental na educação. É precisamente neste ponto crucial do problema que a tríade Educação, Vida e Morte se resolve numa exigência única e, portanto, indivisível. Quem não educa não ajuda ninguém a viver e morrer. Isso equivale a dizer: Quem não distribui Educação em pé de igualdade para todos trai os objectivos existenciais do homem e da Humanidade. Por outro lado, o comércio puro e simples da Educação, mantido apenas com finalidade financeira, constitui-se num pecado ético muito mais grave do que o pecado mortal das igrejas.

Henri Bergson viu com precisão a unidade fundamental e substancial da Religião, da Moral e da Educação. Segundo a sua tese, a moral social funda-se na religião estática, fechada na sua dogmática exclusivista, dando-lhe, apesar desse exclusivismo, a designação de Moral Aberta, porque ela se abre no plano social. Opõe-se a ela a Moral Fechada, assim designada por ser individual, que não se subordina a nenhuma religião institucionalizada, mas apenas à consciência dos homens superiores. Essa é a moral que Pestalozzi chamou de Moralidade, colocando-a acima das religiões. Referiu-se também à religião animal, evidentemente primitiva, nascida da magia primitiva das selvas, que determina a moral tribal, da qual resulta, no processo evolutivo do homem, na moral social. Dessa maneira, o problema ético é o pivô de toda a Educação e de toda a Moral, tendo por expressão subalterna das exigências da natureza humana as formas possíveis da religião. Assim, Deus se faz humano e o homem se faz divino, na troca ingénua de favores mútuos entre o Céu e a Terra. Os jovens, recém-saídos da adolescência, acreditam-se dotados de poderes miríficos para transformar a realidade árida e caquéctica do mundo, renovando-a nos ardores de sua própria juventude. Quando um jovem decide entrar para a carreira eclesiástica é porque a sociedade o convenceu de que nela poderá usar os instrumentos sagrados, provenientes da magia das selvas e aprimorados na estética da civilização, para realizar, com os poderes terrestres e celestes em mistura o que o sacerdócio lhe faculta, as metamorfoses necessárias de toda a estrutura social para a implantação do Reino de Deus na Terra. Ao chegar, porém, ao plano dos adultos, amadurecendo no trato da mundanidade, em que imperam as ambições de poder e ganância, tão contrárias às perspectivas divinas dos seus sonhos que já pendem murchos à beira dos caminhos percorridos e marcados pelos rastos de amarguras, decepções e frustrações irremediáveis, vê que os instrumentos divinos, já agora inúteis nas suas mãos, nada mais são do que amuletos imaginários. Só lhe resta, então, rebelar-se contra si mesmo, negar-se na dialéctica dos sonhos e desenganos e ajustar-se ao comodismo da maturidade sem perspectivas. É nesse momento fatal do fim da juventude que as religiões entram em agonia. A crença ingénua e tecida de lendas piedosas transforma-se em paliativo ignóbil para os desesperos do mundo e os impulsos do antigo entusiasmo se revelam mortos e exangues como as serpentes de fogo da kundalini indiana que viraram cinzas e carvão triturado pelos anos. A Moral, que antes brilhava no céu das aspirações supremas da alma, é então um cadáver frio que serve apenas para defendê-lo das fraquezas inevitáveis do passado. No velório estúpido das carpideiras o herói fracassado, vencido por si mesmo, só encontra a consolação presente e duramente aviltante de acomodações. Qual a sua concepção da morte? A do túmulo, da podridão oculta no laboratório da terra para o aproveitamento na química dos resíduos impuros – o nada. O pivô poderoso que sustentava o giroscópio das aspirações supremas transformou-se apenas num pivô forjado por dentista de arrabalde, agora solto e inútil na boca desdentada de uma bruxa a que chamam pelo nome de Morte. Não há saída alguma nesse impasse final e definitivo. O homem se entrega então, sem ilusões ou esperanças possíveis, ao prazer mesquinho da bajulação e da subserviência, temperando os restos de sua existência perdida no calco amargo das humilhações. Essa é a tragédia das gerações que floresceram nos campos semeados pelas mentiras da Religião e da Moral que se cevam na hipocrisia. Por isso o Fim do Mundo, imaginado pelos teólogos e pregado pelos clérigos, nada mais é que o sabá funambulesco dos duendes sem esperanças. Os mortos ressuscitam para a vida eterna, mas o fazem nos seus corpos recuperados por um Deus sádico, que os retira do túmulo no estado precário em que morreram num passado longínquo, dando-lhes apenas o consolo de continuarem na eternidade a viver com as doenças e os aleijões de uma longínqua vida frustrada. Não seria preferível o caldeirão do Diabo, nesse caso, mais piedoso do que Deus?

É espantosa a inversão de valores produzida pela imaginação teológica do Cristianismo. Espremidos entre duas ordens de coisas, a humana e a divina, mas fatalmente apegados, por sua condição humana e pelo condicionamento das aspirações celestes, os teólogos fizeram tal confusão na suposta Ciência de Deus que herdaram das mitologias pagãs, que acabaram atribuindo virtudes de Deus ao Diabo e atribuindo a Deus as maldades deste. Disso resultou que Deus aparece muitas vezes no plano teológico vestido com a pele do Diabo, e este se atreve, não raro, a enfiar-se diabolicamente na pele de Deus. Claro que essa lamentável confusão levaria os homens, não aos caminhos do Céu nem às veredas do Inferno, mas ao deserto sem caravanas nem roteiros da descrença e do materialismo. Tanto papel impresso se gastou, em tomos inflados de sabedoria fantasiosa, que se tornou necessária a rede de dogmas inexplicáveis e invioláveis, até mesmo intangíveis, para se impedir o desmoronamento total das gigantescas estruturas teológicas. Mas não há prisão que escravize para sempre o pensamento, hoje reconhecido como a energia mais poderosa do universo. Esses prometeus de batina quiseram roubar o fogo do Céu sem escalar o monte Olimpo. Evitaram os raios de Zeus e de Júpiter, mas acabaram enrolados nas suas próprias trapaças. A Igreja não confiou nas sementes do Evangelho (que Lutero teve de arrancar à força de suas mãos azinhavradas) e semeou na Terra as sementes do Diabo, regadas a maldições e sangue, ao crepitar sinistro das fogueiras inquisitoriais. Essas mesmas fogueiras, porém, fizeram amadurecer a razão humana que explodiria em flores e frutos, em safras inesperadas nos fins da Idade Média e no Renascimento. Deus corrigia os teólogos.

As novas gerações são as últimas herdeiras da herança teológica e enfrentam os derradeiros embates com os defensores de uma tradição mentirosa e hipócrita. Essa posição exige dos jovens pesados ónus. Eles se sentem esmagados por aquelas exigências dos rabinos do Templo, que Jesus acusou de sobrecarregarem os homens com fardos esmagadores e não os ajudar sequer com a ponta dos dedos; amarrados a tradições da família e ao mesmo tempo atraídos pelas perspectivas de uma vida mais racional e justa em conflito consigo mesmo. O chamado conflito de gerações se acentua e complica, levando muitos jovens à revolta e ao desespero. Acabam rasgando os velhos protocolos dos Sábios de Sião e entregando-se à experiência, na busca de originalidades. Chegam à maturidade em plena confusão. Não conseguiram assimilar a cultura do passado e precisam integrar-se urgentemente nas condições de um mundo híbrido em que as opções se tornam embaraçosas. O anseio dos adultos, de se parecerem jovens, torna-os geralmente excêntricos, portanto desajustados. Nessa fase de transição a idade cronológica perde o seu antigo sentido, juventude e maturidade se confundem, gerando uma velhice insubordinada que tripudia sobre os valores antigos. Mas a força da idade acaba se impondo e obriga os velhos jovens a todos os compromissos da mentira e da hipocrisia. É por isso que parece, aos observadores atentos, como virados do avesso.

A Educação para a Morte os livraria dessas situações conflituosa, dando-lhes os instrumentos da compreensão da época, necessários à orientação segura para os tempos de insegurança. A morte nos espera e surpreende a todos, mas quando aprendemos que a morte não é a estação final da vida e sim um ponto de baldeação para outros destinos, reconhecemos a necessidade das fases de transição, que nos fazem conhecer o avesso do mundo. É nessas fases que a rotina das civilizações se quebra, se despedaça, para que o fluxo da evolução possa prosseguir nas civilizações subsequentes. As pessoas que não podem aceitar o princípio da reencarnação, que lhes parece absurdo, deviam pensar na rotina da vida, que nos fecha também na rotina das ideias feitas e aceitas sem análise. Num Universo essencialmente dinâmico, em que, como dizia Talles, não podemos entrar duas vezes num mesmo rio, pois enquanto saímos das águas o rio já se modificou, não é admissível aceitarmos que só o homem não possa mudar-se, transformar-se, e tenha de desaparecer com a morte. A regra é uma só, para todas as coisas e todos os seres. Desde que nascemos, até que morrermos, a nossa própria vida individual é uma constante mudança. Por isso perguntou o poeta mexicano Amado Nervo: “É mais difícil renascer do que nascer?”
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José Herculano Pires – Educação para a Morte, Jovens e Maduros, 14º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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