Jovens e Maduros
O conceito de Educação como o chamado de uma consciência
para elevar ao seu nível uma consciência imatura, segundo René Hubert, coloca a
questão no plano rousseauniano da educação individual para simplificá-la, mas
aplica-se a todas as formas da educação colectiva. Rousseau mesmo usou essa táctica,
pois não desejava reduzir a educação a um sistema privado de elite. A Educação
como um acto de amor dirige-se a toda
a Humanidade. Qualquer discriminação no processo educacional, seja por motivos
raciais, sociais, nacionais ou outros, é uma deturpação do processo educativo e
uma traição à sua finalidade básica, que é fazer de um ser biológico, como a
criança ao nascer, ou de um ser social, como o adolescente e o jovem, um ser moral. As excessivas restrições
de certos tipos de moral, como a vitoriana na Inglaterra e a das religiões da
morte em todo o mundo, levaram a moral ao descrédito, pois a única virtude que
produziram foi a hipocrisia. Quando se quer asfixiar a natureza humana, nas
suas exigências vitais, o resultado é sempre o mesmo e as consequências futuras
resultam na rebeldia total. Mas quando se trata de um ser moral, a expressão
não se refere a esta ou àquela moral, e sim à Moralidade em termos
pestalozianos. Nesse sentido, a Educação para a Morte abrange todas as idades
da evolução biopsíquica do ser humano, que só atinge realmente os seus fins
quando abrange as colectividades. Por isso, Pestalozzi deu ao seu sistema uma
amplitude filantrópica. O simples facto de ministrarmos educação específica aos
filhos de abastados, relegando as demais crianças e jovens aos azares da sorte,
é uma imoralidade que atenta o princípio do amor, fundamental na educação. É
precisamente neste ponto crucial do problema que a tríade Educação, Vida e Morte se resolve numa exigência única e, portanto,
indivisível. Quem não educa não ajuda ninguém a viver e morrer. Isso equivale a
dizer: Quem não distribui Educação em pé de igualdade para todos trai os objectivos
existenciais do homem e da Humanidade. Por outro lado, o comércio puro e
simples da Educação, mantido apenas com finalidade financeira, constitui-se num
pecado ético muito mais grave do que o pecado mortal das igrejas.
Henri Bergson viu com precisão a unidade fundamental e
substancial da Religião, da Moral e da Educação. Segundo a sua tese, a moral
social funda-se na religião estática, fechada na sua dogmática exclusivista,
dando-lhe, apesar desse exclusivismo, a designação de Moral Aberta, porque ela
se abre no plano social. Opõe-se a ela a Moral Fechada, assim designada por ser
individual, que não se subordina a nenhuma religião institucionalizada, mas
apenas à consciência dos homens superiores. Essa é a moral que Pestalozzi
chamou de Moralidade, colocando-a acima das religiões. Referiu-se também à religião
animal, evidentemente primitiva, nascida da magia primitiva das selvas, que
determina a moral tribal, da qual resulta, no processo evolutivo do homem, na
moral social. Dessa maneira, o problema ético é o pivô de toda a Educação e de
toda a Moral, tendo por expressão subalterna das exigências da natureza humana
as formas possíveis da religião. Assim, Deus se faz humano e o homem se faz
divino, na troca ingénua de favores mútuos entre o Céu e a Terra. Os jovens,
recém-saídos da adolescência, acreditam-se dotados de poderes miríficos para
transformar a realidade árida e caquéctica do mundo, renovando-a nos ardores de
sua própria juventude. Quando um jovem decide entrar para a carreira
eclesiástica é porque a sociedade o convenceu de que nela poderá usar os instrumentos
sagrados, provenientes da magia das selvas e aprimorados na estética da
civilização, para realizar, com os poderes terrestres e celestes em mistura o
que o sacerdócio lhe faculta, as metamorfoses necessárias de toda a estrutura
social para a implantação do Reino de Deus na Terra. Ao chegar, porém, ao plano
dos adultos, amadurecendo no trato da mundanidade, em que imperam as ambições
de poder e ganância, tão contrárias às perspectivas divinas dos seus sonhos que
já pendem murchos à beira dos caminhos percorridos e marcados pelos rastos de
amarguras, decepções e frustrações irremediáveis, vê que os instrumentos
divinos, já agora inúteis nas suas mãos, nada mais são do que amuletos
imaginários. Só lhe resta, então, rebelar-se contra si mesmo, negar-se na dialéctica
dos sonhos e desenganos e ajustar-se ao comodismo da maturidade sem
perspectivas. É nesse momento fatal do fim da juventude que as religiões entram
em agonia. A crença ingénua e tecida de lendas piedosas transforma-se em
paliativo ignóbil para os desesperos do mundo e os impulsos do antigo
entusiasmo se revelam mortos e exangues como as serpentes de fogo da kundalini
indiana que viraram cinzas e carvão triturado pelos anos. A Moral, que antes
brilhava no céu das aspirações supremas da alma, é então um cadáver frio que
serve apenas para defendê-lo das fraquezas inevitáveis do passado. No velório
estúpido das carpideiras o herói fracassado, vencido por si mesmo, só encontra
a consolação presente e duramente aviltante de acomodações. Qual a sua
concepção da morte? A do túmulo, da podridão oculta no laboratório da terra
para o aproveitamento na química dos resíduos impuros – o nada. O pivô poderoso
que sustentava o giroscópio das aspirações supremas transformou-se apenas num
pivô forjado por dentista de arrabalde, agora solto e inútil na boca desdentada
de uma bruxa a que chamam pelo nome de Morte. Não há saída alguma nesse impasse
final e definitivo. O homem se entrega então, sem ilusões ou esperanças
possíveis, ao prazer mesquinho da bajulação e da subserviência, temperando os
restos de sua existência perdida no calco amargo das humilhações. Essa é a
tragédia das gerações que floresceram nos campos semeados pelas mentiras da
Religião e da Moral que se cevam na hipocrisia. Por isso o Fim do Mundo,
imaginado pelos teólogos e pregado pelos clérigos, nada mais é que o sabá
funambulesco dos duendes sem esperanças. Os mortos ressuscitam para a vida
eterna, mas o fazem nos seus corpos recuperados por um Deus sádico, que os
retira do túmulo no estado precário em que morreram num passado longínquo,
dando-lhes apenas o consolo de continuarem na eternidade a viver com as doenças
e os aleijões de uma longínqua vida frustrada. Não seria preferível o caldeirão
do Diabo, nesse caso, mais piedoso do que Deus?
É espantosa a inversão de valores produzida pela imaginação
teológica do Cristianismo. Espremidos entre duas ordens de coisas, a humana e a
divina, mas fatalmente apegados, por sua condição humana e pelo condicionamento
das aspirações celestes, os teólogos fizeram tal confusão na suposta Ciência de
Deus que herdaram das mitologias pagãs, que acabaram atribuindo virtudes de
Deus ao Diabo e atribuindo a Deus as maldades deste. Disso resultou que Deus
aparece muitas vezes no plano teológico vestido com a pele do Diabo, e este se
atreve, não raro, a enfiar-se diabolicamente na pele de Deus. Claro que essa
lamentável confusão levaria os homens, não aos caminhos do Céu nem às veredas
do Inferno, mas ao deserto sem caravanas nem roteiros da descrença e do
materialismo. Tanto papel impresso se gastou, em tomos inflados de sabedoria
fantasiosa, que se tornou necessária a rede de dogmas inexplicáveis e
invioláveis, até mesmo intangíveis, para se impedir o desmoronamento total das
gigantescas estruturas teológicas. Mas não há prisão que escravize para sempre
o pensamento, hoje reconhecido como a energia mais poderosa do universo. Esses
prometeus de batina quiseram roubar o fogo do Céu sem escalar o monte Olimpo.
Evitaram os raios de Zeus e de Júpiter, mas acabaram enrolados nas suas
próprias trapaças. A Igreja não confiou nas sementes do Evangelho (que Lutero
teve de arrancar à força de suas mãos azinhavradas) e semeou na Terra as
sementes do Diabo, regadas a maldições e sangue, ao crepitar sinistro das
fogueiras inquisitoriais. Essas mesmas fogueiras, porém, fizeram amadurecer a
razão humana que explodiria em flores e frutos, em safras inesperadas nos fins
da Idade Média e no Renascimento. Deus corrigia os teólogos.
As novas gerações são as últimas herdeiras da herança teológica
e enfrentam os derradeiros embates com os defensores de uma tradição mentirosa
e hipócrita. Essa posição exige dos jovens pesados ónus. Eles se sentem
esmagados por aquelas exigências dos rabinos do Templo, que Jesus acusou de
sobrecarregarem os homens com fardos esmagadores e não os ajudar sequer com a
ponta dos dedos; amarrados a tradições da família e ao mesmo tempo atraídos
pelas perspectivas de uma vida mais racional e justa em conflito consigo mesmo.
O chamado conflito de gerações se acentua e complica, levando muitos jovens à
revolta e ao desespero. Acabam rasgando os velhos protocolos dos Sábios de Sião
e entregando-se à experiência, na busca de originalidades. Chegam à maturidade
em plena confusão. Não conseguiram assimilar a cultura do passado e precisam
integrar-se urgentemente nas condições de um mundo híbrido em que as opções se
tornam embaraçosas. O anseio dos adultos, de se parecerem jovens, torna-os
geralmente excêntricos, portanto desajustados. Nessa fase de transição a idade
cronológica perde o seu antigo sentido, juventude e maturidade se confundem,
gerando uma velhice insubordinada que tripudia sobre os valores antigos. Mas a
força da idade acaba se impondo e obriga os velhos jovens a todos os
compromissos da mentira e da hipocrisia. É por isso que parece, aos observadores
atentos, como virados do avesso.
A Educação para a Morte os livraria dessas situações conflituosa,
dando-lhes os instrumentos da compreensão da época, necessários à orientação
segura para os tempos de insegurança. A morte nos espera e surpreende a todos,
mas quando aprendemos que a morte não é a estação final da vida e sim um ponto
de baldeação para outros destinos, reconhecemos a necessidade das fases de
transição, que nos fazem conhecer o avesso do mundo. É nessas fases que a
rotina das civilizações se quebra, se despedaça, para que o fluxo da evolução
possa prosseguir nas civilizações subsequentes. As pessoas que não podem
aceitar o princípio da reencarnação, que lhes parece absurdo, deviam pensar na
rotina da vida, que nos fecha também na rotina das ideias feitas e aceitas sem
análise. Num Universo essencialmente dinâmico, em que, como dizia Talles, não
podemos entrar duas vezes num mesmo rio, pois enquanto saímos das águas o rio
já se modificou, não é admissível aceitarmos que só o homem não possa mudar-se,
transformar-se, e tenha de desaparecer com a morte. A regra é uma só, para
todas as coisas e todos os seres. Desde que nascemos, até que morrermos, a nossa
própria vida individual é uma constante mudança. Por isso perguntou o poeta
mexicano Amado Nervo: “É mais difícil renascer do que nascer?”
/…
José Herculano Pires – Educação para a Morte, Jovens e Maduros, 14º fragmento da
obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe
Bouguereau)
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