Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O Mundo Invisível e a Guerra ~


VII
O Dia de Finados na Trincheira

|2 de novembro de 1916|

   O céu está sombrio e uma imensa tristeza envolve a Terra. As almas dos que caíram lutando pela pátria pairam no espaço em incontáveis legiões.

   Nas casas solitárias, mulheres em luto pranteiam os desaparecidos.

   Os órfãos da guerra, cujos pais repousam debaixo da terra, nas planícies da região de Flandres ou nos bosques da Lorraine, vão lentamente para os cemitérios, para ornar de flores os túmulos das mães que os sofrimentos e os desgostos mataram.

   Bem ao longe, na trincheira, um jovem soldado vigia atentamente e lança os olhos em seu derredor.

   As linhas inimigas estão silenciosas e o canhão já se calou. A calma da natureza sucedeu ao tumulto da peleja e às conversas ruidosas dos acampamentos da retaguarda, porque aqui o perigo fez emudecer todas as conversações inúteis. A perspectiva da morte impõe a todos um grave recolhimento e os profundos pensamentos sobem dos corações aos cérebros.

   Aquele jovem soldado é um intelectual, um sensitivo e um espírita, e faz um ano que está na linha de frente, entrando em vários combates e vendo os colegas mortos pela metralha.

   De que depende a sua própria vida? Ela não é como um argueiro, uma palha, no meio da tormenta? Todavia, ele sabe que está sobre a sua cabeça uma protecção oculta e percebe que uma força desconhecida o ampara.

   Como todos aqueles cuja vida interior é intensa, agrada-lhe ficar só e a solidão é para ele a grande escola inspiradora, a causa das revelações, e nela se concretiza a comunhão de sua alma com Deus. Complacentes, os seus olhos repousam sobre a floresta próxima, que o Outono vestiu com as suas tintas de ouro e de púrpura.

   Até ele chega a canção de um regato, as colinas que cercam o horizonte desaparecem no pálido clarão do poente. Desse espectáculo da natureza emana uma serena paz que nada, nem o pensamento do perigo nem o receio da morte, consegue perturbar.

   Entre as cruentas visões da guerra, é bastante uma hora de contemplação para lembrar que a soberana beleza da vida e a eterna beleza do mundo superam todas as hecatombes humanas e que as guerras são impotentes para destruir qualquer parcela de embrião da alma.

   A noite se estende sobre a planície e, entre as nuvens, as estrelas projectam sobre a Terra os seus raios trémulos como provas de amor, testemunhos da imensa fraternidade que liga todos os seres e todos os mundos.

   Com a paz, a confiança e a esperança atingem o seu coração. Certamente ele saberá sempre cumprir o seu dever, batendo-se em defesa da pátria invadida, por cujo amor suportará todas as privações e trabalhos, porém as violências da guerra não lhe abafarão o sentimento superior da ordem e da harmonia universais.

   Assim como para os celtas (seus antepassados), os cadáveres estendidos pelo chão não são mais para eles, do que corpos despedaçados que a terra se prepara para receber no seu seio maternal.

   No mais profundo recesso de cada um de nós permanece um princípio imperecível contra o qual nada podem fazer todos os furores do ódio e todos os assaltos da força bruta.

   É dali, desse santuário íntimo, que renascerá, após a borrasca, o anseio humano pela justiça, a piedade e a bondade.
/…



LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VII –  O Dia de Finados na Trincheira, 1 de 2, 20º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

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